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A delinqüência não expressa apenas problemas econômicos, mas também a deterioração de valores sociais e culturais

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Direitos humanos incluem condições para uma vida plena e acesso ao que há de melhor, como educação, cultura, convivência e paz

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Q
ualidade de vida, direitos humanos, ambiente físico e social dependem de fatores culturais e educacionais, da existência de um campo ético comum, que se sobrepõe às legislações e às melhores prescrições legais, tornadas ineficazes quando alheias ou inadequadas ao contexto de vida das pessoas.

Nos grandes centros urbanos, os interesses de mercado, da propaganda e da comunicação de massa legitimam uma cultura desumanizada, despersonalizada e reificada, em que medram condutas ferozes e violentas, ao arrepio dos meios tradicionais de controle (família, escola, Igreja, polícia etc.)

Direitos humanos não conseguem prosperar em um entorno adverso. Em muitas cidades latino-americanas, uma guerra civil não declarada faz vítimas diárias, solapando a confiança mútua na sociedade como um todo, devido à crescente criminalidade e a toda sorte de injúria física, mental e social.

A crise atual assemelha-se a um complexo novelo, cujos fios estão tão emaranhados que, na tentativa de desembaraçá-los, mais intrincada torna-se a meada. Na guerra da sociedade contra si mesma, o inimigo se incorpora ao próprio sistema e escapa à detecção em qualquer sítio em particular.

A segurança, a sustentabilidade e a estabilidade dependem de um sistema de valores que se consolida ao longo de séculos. As estratégias correntes de “desenvolvimento” tendem a ignorar, subestimar e solapar valores e ambientes naturais e construídos, essenciais ao desenvolvimento humano.

Os fenômenos de delinqüência expressam não apenas problemas econômicos, mas também a deterioração de valores sociais e culturais. Coartada em seu desenvolvimento, a população buscará, a qualquer preço, os simulacros oferecidos pelos interesses de mercado.

Crimes são cometidos não apenas devido à ausência do pão, mas em virtude de um modus vivendi desastroso na sociedade como um todo, que repercute de forma cruel sobre os menos privilegiados, a prática da democracia sendo confundida com um laissez-faire comandado pelos mais espertos.

Enquanto se buscam respostas na onipotência da tecnologia, deteriora-se a qualidade de vida. Espaços públicos necessários à cidadania, segurança, trabalho, convivência e lazer ficam à mercê de interesses que exploram as carências culturais e educacionais, sem elevar a qualidade da demanda.
Nas sociedades atuais, a confiança mútua, como estrutura portadora das relações humanas, é indelevelmente prejudicada pela imposição, às vezes sutil, às vezes brutal, dos mais variados interesses. J. Lang, ex-ministro da Cultura da França, os assemelhou a “vorazes raposas a tomar conta de um galinheiro”.

A ecologia social implica diferentes áreas de interação, incluindo produção e consumo, relações interpessoais, comunicação e um sistema cultural subjacente legitimador. Os valores gerados em um sistema refletem o próprio sistema (valor sistêmico), não podendo ser analisados isoladamente (valor intrínseco).

Direitos humanos não são uma questão meramente legislativa. Uma ampla gama de direitos depende das condições em que se entrelaçam as dimensões íntima, interativa, social e biofísica de estar-no-mundo. Os direitos humanos precisam ser sustentados por um modelo ecossistêmico de cultura.

Um complexo e delicado equilíbrio mantém essas dimensões em uma condição de apoio mútuo ou de ruptura. Para viver melhor em um mundo melhor é preciso entender que o que “está fora” e o que “está dentro” são faces de uma mesma moeda, uma porta giratória a gerar toda sorte de eventos.

O sujeito que percebe e aquilo que é percebido são produto de uma realidade primordial, de uma matriz subjacente, de um tecido misterioso, no qual identidades, corpos e ambientes são extensões recíprocas, em que o microcosmo e o macrocosmo são contínuos e se interpenetram em uma rede complexa.

Em um contexto cultural manipulado, políticas públicas concentradas nos aspectos tecnológicos, nas estratégias de mercado e de propaganda, na cultura de massa, vêm privando os mais jovens de experiências essenciais para sua formação integral e desenvolvimento, como seres humanos e como cidadãos.

Jovens estacionam carros com “som” em alto volume, “queimam” os pneus e promovem distúrbios nas ruas noite adentro. Questionados, tornam-se violentos e apedrejam moradora que regava seu jardim (gotas d’água os atingiram). Se a “rua era pública”, teriam todos os “direitos” sobre ela.
Enquanto questões como essas não forem tratadas em termos de direitos e deveres e persistir a deterioração do meio ambiente físico e social (inclusive pela ausência de logradouros públicos adequados às diferentes faixas etárias), injúrias e iniqüidades como essas estarão na raiz de eventos de maior gravidade.

Direitos humanos não se referem apenas à eqüidade política e econômica, mas às condições para uma vida plena, ao acesso ao que há de melhor na herança da humanidade, o que inclui os direitos à educação, à cultura, à beleza, em um clima de criatividade, convivência, tranqüilidade e paz.

Direitos humanos não podem ser simplesmente “colados” em contextos de vida desfavoráveis para torná-los, por milagre, favoráveis. É preciso cuidar do caldeirão efervescente, das iniqüidades e dos abandonos, para que os projetos não se restrinjam às “bolhas-problema” que estouram na superfície.

Existe uma profunda diferença entre o que se chamou de educação humanista no século 19 e a concepção míope de educação do final do século 20, apoiada na esteira tecnológica, no desenvolvimento de “habilidades” e “competências” pessoais, menosprezando questões éticas e culturais básicas.

Nos nichos socioculturais de ensino-aprendizagem, a educação precisa estimular o desenvolvimento de novas formas de estar-no-mundo, envolvendo cidadania e participação, mediante contextos significativos de experiência, cognição, afeto e ação, não se devendo limitar apenas a uma pretensa análise crítica.

O compromisso com a qualidade de vida, a curiosidade sobre o mundo, a sensibilidade face à beleza, o respeito pelos outros, a convivência, a liberdade e a responsabilidade dependem de experiências na família, escola, trabalho e lazer, na medida em que possam se constituir como espaços diferenciados.

As grandes obras do pensamento, ausentes ao longo dos anos de formação, não deixam lastro ético ou estético se restritas a versões reduzidas para exames vestibulares; seu aspecto formativo deve transcender as diferentes áreas do conhecimento, sejam as ciências humanas, exatas ou biológicas.

O que caracterizaria o Homo sapiens? Penso, logo existo, dizia Descartes. Aqueles que admiram o “primeiro mundo” deveriam saber que as humanidades integram seu sistema fundamental de ensino e que através dele os jovens europeus têm acesso aos clássicos da literatura e conhecem filosofia.

André Francisco Pilon é professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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