Os
projetos de criação da Agência Nacional do Cinema
e do Audiovisual (Ancinav), lançado pelo Ministério
da Cultura, e do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), encaminhado
ao Congresso Nacional pelo presidente Lula, dividem as opiniões
e têm provocado um acalorado debate nos meios de comunicação.
Na terça-feira da semana passada, dia 10, o ministro da Cultura,
Gilberto Gil, rebateu as críticas à Ancinav na aula
magna da Cidade do Conhecimento, na sala do Conselho Universitário
da USP (leia texto na página seguinte). Para muitos, a agência
e o conselho representam possibilidades de intervenção
do governo sobre a criação e a veiculação
de produtos culturais e jornalísticos. O Jornal da USP ouviu
a opinião da comunidade acadêmica sobre as duas propostas.
Pesquisadores do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão
da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP dizem
que há exagero nas críticas à formulação
da Ancinav. O professor Ismail Xavier afirma que a estigmatização
não leva a nada e qualifica como histeria
as reações contra o texto. Comparações
que não se encaixam no modelo social brasileiro foram feitas
de má-fé, disse ao USP Online. A professora
e crítica de TV Esther Hamburger ressalta que, mesmo sem
ter lido o projeto, acredita que as críticas são
vagas e equivocadas. Também ao USP Online, a professora
salientou que discutir sobre a criação da Ancinav
é enriquecedor. Não cabe desmerecer a criação
da agência antes de analisá-la ponto a ponto.
Para o pesquisador e professor Rogério Christofoletti, que
defendeu tese de doutorado na semana passada na ECA, tanto no caso
da Ancinav quanto do CFJ, não está havendo jornalismo,
mas sim uma cobertura apaixonada e uma campanha contrária.
Professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), em
Santa Catarina, e vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas de
Santa Catarina, Christofoletti afirma que o tom negativo da cobertura,
principalmente no caso da Ancinav, se deve a negócios privados.
Especialmente no caso da Globo, que agora não tem interesses
apenas na radiodifusão, mas também na difusão
de conteúdo audiovisual para cinema, ressalta. O pesquisador
reconhece que o projeto tem algumas derrapadas que podem criar
brechas perigosas, mas lembra que o próprio Juca
Ferreira, secretário executivo do Ministério, já
disse que há disposição para rever o texto.
Disciplina
Se o projeto da Ancinav ainda não foi enviado ao Congresso
Nacional, o que cria o CFJ chegou à Comissão de Trabalho
da Câmara na terça-feira da semana passada. O texto
diz que cabe ao CFJ e aos Conselhos Regionais orientar, disciplinar
e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista
e da atividade de jornalismo; institui os tribunais de ética
e disciplina e também dá ao jornalista o direito de
recusar-se a realizar trabalho que afronte a lei, a ética
profissional ou as suas convicções pessoais.
Os integrantes do primeiro conselho seriam escolhidos pela Federação
Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e teriam mandato máximo
de dois anos, sendo substituídos depois pelos eleitos em
cada Conselho Regional.
Para o professor José Marques de Melo
um dos mais respeitados pesquisadores brasileiros na área,
titular da Cátedra Unesco de Comunicação na
Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) , a polêmica
está um pouco fora do lugar. Está-se
confundindo o exercício da profissão com a liberdade
de imprensa. Marques de Melo acredita que muitas críticas
aos projetos têm origem política, o que está
prejudicando o debate sobre o CFJ e a Ancinav. Acho as duas
medidas positivas. O governo não está impondo. Numa
medida democrática, está levando ao Congresso Nacional,
que é a instância adequada.
Rogério Christofoletti concorda. Não há
no projeto nenhuma arbitragem ou orientação para cercear
a liberdade de expressão, afirma o professor, que compara
o caso da imprensa com o direito. O exercício da advocacia
precisa de pessoas habilitadas, assim como o exercício do
jornalismo mas o acesso à Justiça é
para todos, assim como a liberdade de expressão. Outro
ponto destacado pelo pesquisador é que passa a existir a
possibilidade de cassação do registro profissional,
como aconteceu nos casos do cirurgião plástico Marcelo
Caron, que matou oito pessoas e teve seu registro cassado pelo Conselho
Federal de Medicina, e do ex-deputado Sérgio Naya, também
descredenciado pelo Conselho de Engenharia e Arquitetura.
O professor Francisco Karam, coordenador do curso de Jornalismo
da Universidade Federal de Santa Catarina e ex-integrante da Comissão
de Ética e Liberdade de Imprensa da Fenaj, diz que o
CFJ não é uma proposta do governo, ao contrário
do que está sendo entendido por parte da sociedade e da imprensa,
mas um projeto aprovado pela categoria no congresso da Fenaj em
Manaus, há dois anos, e que vem sendo costurado e discutido
desde então. É um projeto amadurecido, mas lamentavelmente
a forma como parte da imprensa tem tratado do assunto é irresponsável.
Para Karam, o CFJ de nenhuma forma prejudica a informação,
pelo contrário tenta dar à informação
um patamar de regularização que é compatível
com outros países. É da natureza do jornalismo
ouvir a infinitude de fontes que existem em cada área, e
essas fontes sob nenhuma forma estão impedidas de se manifestar,
continua. O impedimento a elas se dá por outras formas,
inclusive proporcionadas por pessoas que hoje são contra
o conselho.
Tom autoritário
O chefe do Departamento de Jornalismo e Editoração
da ECA, professor José Coelho Sobrinho, lembra que a criação
de um órgão de classe gerido pelos próprios
jornalistas era uma idéia defendida já há muitos
anos pelo professor Freitas Nobre. Gostaríamos de fazer
voltar a idéia de Freitas Nobre de termos uma Ordem dos Jornalistas,
não um Conselho Federal, que é um cartório,
afirma. Para o professor, uma entidade como os conselhos que regem
outras profissões não é o modelo mais adequado
para os jornalistas. No jornalismo, temos que pensar não
só numa atividade profissional, mas antes numa atividade
que mexe muito mais com a sociedade do que outras profissões
que trabalham com indivíduos, diz Coelho Sobrinho.
O professor Manuel Carlos Chaparro, também da ECA, chama
a atenção para o interesse do governo federal nos
dois projetos. Em artigo publicado no site Comunique-se, Chaparro
diz que o empenho palaciano em criar mecanismos de controle
de conteúdos, no jornalismo como na cultura, tem motivação
política na cascata de denúncias que há meses
vem atingindo o governo Lula, a partir de gravações
clandestinas (caso de Waldomiro Diniz) e de vazamentos de informações
(caso de Henrique Meirelles) que violam direitos individuais a sigilos
constitucionalmente protegidos. Para o professor, a
discussão é complexa, mas chega a ser assustador
o tom autoritário dos arrazoados de quem, pelo governo,
fala em nome da ética.
As exigências do ano eleitoral e os interesses de muitos parlamentares
na área afinal, boa parte deles possui negócios
em comunicação em seus Estados devem fazer
com que a decisão sobre o CFJ só saia no ano que vem.
Vale lembrar que repousa nas gavetas do Congresso o texto da nova
Lei de Imprensa, que já passou por todas as comissões
e há sete anos está pronto para ser votado. José
Marques de Melo, da Umesp, lembra que democracia se faz com
debate, com discussão e negociação e
que, em todo esse contexto, o que é fundamental é
melhorar a qualidade do jornalismo. Estamos vivendo
uma conjuntura em que a mídia, de um modo geral, está
em turbulência e se buscarmos um consenso vamos nos sair bem,
continua. É preciso pensar sempre na sociedade brasileira,
e não nos interesses individuais dos praticantes do jornalismo
ou das empresas que monopolizam essa atividade no Brasil.
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