PROCURAR POR
 NESTA EDIÇÃO
  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Vilela: "Violeiro que se preza não carrega a viola debaixo do braço"

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Algumas violas de Ivan Vilela: pescoção (de bambu), marreca, de cocho, de dez cordas e portuguesa (da esquerda para a direita)



A
viola é o Brasil. Sobretudo o Brasil do campo. O Brasil caipira. Por isso se chama viola caipira. A de cinco ordens, ou cinco pares de cordas. Dez, portanto. De metal, mas podem ser de náilon ou de tripa de mico. Pela origem, a viola é, também, a síntese de muitas culturas: “A viola tinha pais portugueses, o violão tinha pais espanhóis, ambos eram netos de mouros e bisnetos de hebreus”, escreveu o violeiro e compositor Gustavo Pinheiro Machado (pai da aviadora Grésia Pinheiro Machado). E a viola caipira, que faz algum tempo freqüenta novelas e dá ares nacionais a bandas de rock, agora ganha status universitário com um curso de graduação na forma de Bacharelado em Instrumento, no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP de Ribeirão Preto. Curso pioneiro no Brasil e no mundo. Começa no primeiro semestre de 2005, com seleção de candidatos nas próximas provas da Fuvest.

O primeiro professor será Ivan Vilela, “o grande nome da viola, com mestrado brilhante na Unicamp, que soube como ninguém assimilar as diferentes linguagens do instrumento”, na definição do professor Rubens Ricciardi, responsável pelo departamento e também compositor. Vilela foi aprovado com distinção em concurso público, concluído dia 27 de julho, que tinha na banca examinadora três feras da cultura popular brasileira — José de Souza Martins, “a maior autoridade sobre sociologia rural, em especial cultura caipira”, na opinião do próprio candidato; Edelton Gloeden, professor de violão na ECA; e Lenita Nogueira, professora de história da música, também da ECA.

Segundo Ricciardi, com a criação da habilitação em viola caipira a Universidade de São Paulo atende a uma função social: a viola caipira é um dos instrumentos mais difundidos no Brasil, é a voz do povo, e o curso se torna alternativa de desenvolvimento acadêmico e profissional para um numeroso grupo de violeiros; significa também um resgate histórico: com as novas pesquisas relacionadas com o curso de viola caipira inicia-se a recuperação e difusão de obras da cultura musical nacional, com edição de partituras e gravação de CDs, abrangendo do período colonial ao atual; a iniciativa tornará possível ainda o aprimoramento das práticas interpretativas: em especial, amplo desenvolvimento de recursos técnico-estilísticos na performance da viola; finalmente, trata-se de incentivo à criação de novos repertórios, iniciando-se um processo de inclusão da viola caipira no universo erudito.


Itajubense

Recuperando-se em casa, no bairro Barão Geraldo, em Campinas, de pancadas que recebeu em acidente em estrada no início de agosto, Ivan Vilela acompanha na viola caipira uma composição com arranjo de Renato Kiev — formado em composição na UFMG e professor do Conservatório de Música de Pouso Alegre, e executada pela orquestra da cidade. Se nada dissesse, nem tocasse mais nada, a entrevista já teria valido a pena. Mas diz e toca. E tudo vale dobrado.

Vilela é o caçula de onze irmãos. Família de Itajubá, Minas. Cresceu tocando violão; aos 21 anos conheceu a viola e já perto dos 30 (portanto, não faz muito tempo) passou a se dedicar exclusivamente a ela. O marco dessa transição é a Ópera Caipira, que compôs sobre libreto de Jehovah Amaral, poeta regionalista de Capivari, obra de 33 árias escrita na pura tradição dos romances medievais, que exalta os valores e a cultura do homem do campo. Em dois atos e duas horas e meia de duração, a ópera conta e canta um romance de amor e contendas — toda a tradição dos ritmos do gênero caipira baseia-se no romance, explica Vilela; cururu, moda de viola, tudo é romance. O compositor mescla instrumentos de uma orquestra tradicional com instrumentos encontrados em festas populares. A orquestra caipira que montou para executar a obra tem 2 flautas, clarinete, 2 acordeões, rabeca, bandolim, 2 percussões, 2 violas caipiras, violão e contrabaixo. “Inseri citações de clássicos famosos da música caipira para cada gênero visitado e elegi a música Tristezas do Jeca, de Angelino de Oliveira, como tema reincidente em grande parte do musical”, diz o autor. Mas chega de ópera. Vilela tem muitas outras composições, anteriores e posteriores à Ópera Caipira, que merecem citação (leia ao lado).

Viola e violão, um pouco de história. A viola tem 800 anos; o violão, entre 200 e 250. E a diferença principal entre os dois instrumentos é que o violão tem 6 cordas simples, contra os cinco pares — mas podem ser até 5 triplas — da viola. No Brasil existem até com 12 cordas, 3 pares e 2 triplas. As cinco ordens é que não podem faltar.

O violão é a evolução (termo que Ivan Vilela não aprecia, porque mais próprio para a teoria darwinista; prefere desenvolvimento) da guitarra barroca e do e’ud, de origem persa. “A viola é neta desse primeiro instrumento árabe, que chegou à Península Ibérica e deu origem ao alaúde e a todos os instrumentos de cordas dedilhadas, com braço que permite mudar as notas”, explica o agora professor de Música da USP. Na Europa existiam cítaras greco-latinas e harpas celtas. Instrumentos sem braço. “O e’ud se engraça com a cítara e dá origem à guitarra latina no século 13. A guitarra latina é a mãe da viola. O violão é o desdobramento da guitarra barroca, depois do violão.”

Sagrado e profano

Folcloristas asseguram que entre o violeiro e sua viola há sempre uma relação passional, de amor e ciúmes. Vilela confirma e comenta. As comunidades rurais são o meio onde a viola se desenvolveu preferencialmente, por conta da necessidade de haver música para festejar o sagrado e o profano — as festas da Igreja, as colheitas, os casórios. A música tornou-se o grande elemento mediador das pessoas dessas comunidades e o violeiro ganhou fama e importância. É ele que faz o trânsito do profano para o sagrado e vice-versa. Faz o pacto com o capeta e toca na Folia de Reis. Transita com desenvoltura e nem por isso rivaliza com o grupo onde vive.

O domínio sobre a viola sempre esteve ligado com o sobrenatural. O violeiro tem o domínio sobre cobras, sobre entidades maléficas e as domina. E sobre os mortos também. Aos poucos foi se criando em torno dele uma aura mística e ele criou status e se fez importante e necessário na comunidade. Eleito, passou a reinar e a escolher os pupilos aos quais passaria o
s segredos do instrumento de poder, e a mais ninguém. Desde então, todo violeiro se considera selecionado e se intitula “o maior violeiro do mundo”. Na comunidade vizinha também mora “o maior violeiro do mundo”.

Se a viola é instrumento de poder, o violeiro tudo faz para protegê-la. O professor piracicabano Alceu Maynard de Araújo, bacharelado na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, membro do Instituto Histórico e Geográfico e da Sociedade Brasileira de Folclore, apresentador de programas de televisão quando a TV apenas engatinhava no Brasil, e estudioso do folclore nacional, afirma em ensaio sobre a viola caipira publicado nos anos 50, e para o qual diz ter consultado 818 tocadores, que o bom violeiro jamais deixa sua viola com as cordas encostadas à parede porque ela “constipa”: a umidade enlouquece a corda. E duas coisas fazem a viola sofrer: calor ou frio intensos. No entanto, ela é mais sensível a mau-olhado e inveja, que destemperam a viola, que jamais pegará afinação. Os bons violeiros são sempre invejados; tocar viola é uma coisa tão almejada que chegam a fazer pacto com o diabo na Sexta-Feira Santa. Contra quebranto, protegem o instrumento com galhinho de arruda colocado na caixa de ressonância; para dar maior eletricidade e sonoridades às cordas, amarram guiso de cascavel. Quer ver violeiro contrariado, é um estranho tocar em sua viola ou pedir licença para arranhar as cordas. Ivan Vilela confirma os melindres, mas no seu caso só não permite que mexam na sua viola antes de qualquer apresentação. Não porque acredite em mau olhado, quebranto ou invejas maléficas; mas porque a viola é um instrumento muito sensível e perde facilmente a afinação quando manuseado descuidadamente.

Maneiras de segurar a viola existem duas, de acordo com a pesquisa do estudioso piracicabano: a profana e a sagrada. Na primeira, a viola fica apoiada no ventre, ou repousa na coxa do tocador quando sentado; na posição sagrada, é tocada em pé, com o queixo do tocador repousando sobre ela. “Violeiro que se preza não carrega viola debaixo do braço e sim na mão, segurando-a pelo seu braço. Viola é mulher e quem sai com ela na rua, vai de braço dado. Violeiro de meia-pataca é que põe a viola debaixo do braço. O sovaco é lugar de encostar a muleta, não a viola.” Mas se a viola está sujeita a muitas “doenças”, também tem poder de cura. Além de arrumar casamento para moças temerosas de ficar para tias, cura reumatismo e cura as doenças dos homens tristes, como a harpa de Davi, na Bíblia.

A viola caipira é normalmente feita de madeira — cedro ou jacarandá da Bahia, segundo Maynard de Araújo. Dizem que a madeira deve ser cortada na lua minguante de mês que não tem “r” para durar mais, ser flexível e não carunchar. Um fabricante entrevistado pelo pesquisador disse que usava tábuas de caixões comprados em funerária e deixadas para secar durante dois ou mais anos, “pra ficá cum mais alma”. Outros materiais podem substituir a madeira excepcionalmente. Outro fabricante ouvido pelo folclorista exibiu uma viola de 14 cordas, cuja caixa de ressonância era feita com carcaça de tatu. De tatu, não, mas de bambu Ivan Vilela tem um exemplar com boa sonoridade.
Se no Brasil a viola se afirma a cada dia como principal porta-voz do homem do campo e se expande para a cidade, a juventude roqueira, as telenovelas e o ensino acadêmico, em Portugal caminha para a extinção. Dos cinco tipos de viola que os portugueses conhecem, uma já não é tocada, a viola beiroa, do centro do país. Duas razões existem para isso: o rompimento com os ritos de tradição, como as festas de Folia de Reis, que, deixando de existir, tiram também a razão de ser do instrumento; e a não convivência saudável da tradição com a modernidade. Os jovens portugueses são pressionados a tocar à maneira dos antigos, e os antigos não gostam nada de inovações. Balada na região do Tejo (sul) é reprimida.

Não era assim antigamente. No século 15, e sobretudo a partir do século 16, a viola era largamente difundida pelo povo, em especial nas zonas ocidentais. À época dos descobrimentos, o instrumento possui configurações e nomes próprios, relativos às localidades onde é fabricado ou utilizado, como viola braguesa, amarantina, beiroa, toeira e campaniça. Em 1582, no reino de D. Afonso V, apresentaram representação contra o uso disseminado da viola, argumentando que trazia muitos males. O historiador Philipe de Caverel, em relato do ano 1582, afirma que dez mil “guiterres” (provavelmente violeiros) acompanharam os portugueses na jornada de Alcácer Quibir. Ao Brasil a viola veio com as caravelas e aos poucos foi se adaptando e aclimatando aos sons da nova terra, a ponto de se transformar num instrumento cada vez mais presente nas manifestações musicais do País. No século 18 foi principalmente instrumento de música erudita, conforme observa o professor José de Souza Martins. Segundo Ivan Vilela, que acabou de gravar um disco de canções caipiras dos anos 40 a 60 com uma cantora de vanguarda (Suzana Salles) e um tenor lírico (Lenine Santos), tem grande potencial camerístico.

Curso

Todo violeiro é amante das tradições, afirma o primeiro professor de viola do Brasil, e a idéia que presidiu a criação na USP de Ribeirão Preto do Bacharelado em Instrumento com Habilitação em Viola Caipira era incentivar a pesquisa sobre a inclusão desse instrumento no universo erudito da música, do período colonial até a fase contemporânea. O uso da viola no ambiente popular já é bem desenvolvido e conhecido. Nas palavras do professor Rubens Ricciardi — que está escrevendo uma peça para orquestra sinfônica com viola —, com o curso pretende-se valorizar uma cultura genuinamente brasileira, uma vez que a viola caipira é tocada de Norte a Sul do País.

O concurso do Departamento de Música fugiu um pouco do padrão da USP, que normalmente exige dos candidatos a professor o nível de doutor. Neste caso podiam concorrer candidatos com apenas mestrado e isso em razão do reduzidíssimo número de especialistas em viola caipira. Violeiro tem pouca chance de estudar em universidade. Por sinal, Ivan Vilela foi o único a se apresentar e durante dois dias enfrentou com competência um júri exigente. Depois da prova de memorial (sua carreira), teve de discorrer sobre possibilidade de reconstituição de repertórios históricos, depois tocar o instrumento. Comentário final: “Aprendi muito”.


Composição e andanças

Ivan Vilela integrou o grupo Anima, com quem fez várias gravações; apresentou-se em vários países da Europa e mais recentemente no Colóquio sobre Sonoridades da Língua Portuguesa, promovido pela Universidade de Lisboa. Organizou e dirige a Orquestra Filarmônica de Campinas; participou da expedição de pesquisa organizada pelo antropólogo Carlos Rodrigues Brandão ao norte de Minas Gerais, que percorreu lugares e reconstituiu cenários das viagens e da obra de Guimarães Rosa e entrevistou companheiros de viagem daquele autor. Fez também pesquisas no Vale do Jequitinhonha. Este ano gravou CD infantil em parceria com Rubem Alves, filósofo, historiador da ciência, educador cronista e autor do primeiro livro sobre teologia da libertação, tema de sua tese de doutoramento.

Uma amostra da discografia de Ivan Vilela: Vereda Luminosa (2004) com Andréa Teixeira; Caipira (2004), com Suzana Salles e Lenine Santos; Quatro Estórias (2002), texto de Rubem Alves; Retratos em vários compassos (2002), com a Oficina de Cordas; Teatro do Descobrimento (1999), com o grupo Anima e a cantora Anna Maria Keiffer; Rumos Musicais (1999), coletânea em duo com Toninho Ferragutti; Paisagens (1998), solo de viola indicado na categoria Revelação Instrumental para o Prêmio Sharp 98/99; Violeiros do Brasil (1997), CD gravado ao vivo no Sesc Pompéia com outros violeiros do Brasil; Espiral do Tempo (1997), com o grupo Anima, recebeu os prêmios Movimento de Música Popular Brasileira 97/98, na categoria Melhor Disco Instrumental do Ano da APCA; Trilhas (1994), com os grupos Anima e Trem de Corda, duas indicações para o Prêmio Sharp 94/95; Hortelã (1985), em parceria com a cantora Pricila Stephan.

Na direção musical produziu: Vereda Luminosa (2004); Retratos em Vários Compassos (2002), com José Eduardo Gramani; Viola Cósmica (1998) do violeiro Pereira da Viola; Beira Mar Novo (1997) do coral Trovadores do Vale; Crisálida (1996) do violeiro Roberto
Corrêa, com José Eduardo Gramani.

 

 

ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]