Solicitamos
e recebemos da Prefeitura do campus da USP, em São Paulo,
o Registro de Ocorrências atendidas pela Guarda Universitária
entre os meses de janeiro de 2002 até junho de 2003. Durante
esses 18 meses foram realizados 45 Registros de Ocorrência
(RO).
Registros
de Ocorrência
O Registro de Ocorrência contém os seguintes dados:
1. Número, código e natureza da ocorrência,
unidade, local, data e hora da comunicação, data e
hora do fato;
2. Informação sobre os envolvidos: tipo de envolvimento,
nome, documento, nascimento, endereço, tipo de vínculo
do envolvido com a USP e descrição do veículo
(quando houver).
3. Histórico da ocorrência, com informações
mais detalhadas sobre os fatos.
Como nosso interesse eram os Registros de Ocorrências em que
mulheres estivessem envolvidas, resultaram, para análise,
24 ROs, com um total de 54 pessoas: 29 mulheres e 25 homens.
A Guarda Universitária classificou a natureza das 24 ocorrências
da seguinte maneira: 12 casos de agressão, 8 atentados ao
pudor, 1 ato obsceno, 2 estupros, 1 tentativa de homicídio.
Comparando o histórico dos casos, observamos que a classificação
poderia ser distinta, levando-se em consideração a
descrição mais detalhada da ocorrência, além
de declarações das vítimas e testemunhas.
Citemos alguns casos:
Foram classificados como agressão:
Um caso de discussão, ou desavença, em que a atitude
do autor em relação à vítima foi de
ameaçá-la, ofendê-la, acusando-a de ter
provocado a sua saída do emprego (ou seja, agressões
verbais).
Igualmente foi classificado como agressão um caso (RO 305/03)
em que a vítima foi espancada a ponto de ter um dente quebrado
e depois trancada em seu quarto pelo agressor (espancamento e cárcere
privado).
Como se vê, embora sejam casos distintos, ambos foram classificados
da mesma forma pela Guarda.
Outros dois casos, classificados como atentado ao pudor, merecem
o mesmo reparo:
l O RO 1.054/02 relata que a vítima foi estuprada.
l Os ROs 26/03 e 596/03 relatam que casais foram encontrados praticando
sexo dentro do automóvel.
São ocorrências de natureza distinta já
que uma trata de um estupro e a outra de relações
sexuais consentidas. Deveriam, pois receber distinta classificação.
A partir de uma análise qualitativa dos casos e levando em
conta o histórico e os atos praticados, chegamos a uma classificação
que evita ambigüidades. A essa nova classificação
chamamos classificação sociológica,
cujo objetivo é o de facilitar medidas preventivas para orientação
da Guarda por parte da Coseas.
Classificação
sociológica
Com relação aos casos de agressão, separamos
aqueles sem agressão física (os quais classificamos
como discussão) dos casos com agressão física.
Estes, por sua vez, foram divididos em três grupos: agressão
entre homem e mulher, agressão entre mulheres, e agressão
entre membros de um casal (ou ex-casal). Também distinguimos
os casos de tentativa de estupro dos casos de casais praticando
relações sexuais consentidas. Mantivemos as categorias
de atentado ao pudor, estupro e tentativa
de homicídio.
Como resultado dessa nova classificação identificamos:
3 casos de discussão (sem agressão física),
2 agressões envolvendo homem e mulher, 2 agressões
entre mulheres, 4 agressões entre casais (ou ex-casais),
1 tentativa de homicídio, 3 estupros, 5 tentativas de estupro,
2 atentados ao pudor, 2 casos de casais praticando relações
sexuais consentidas.
Quanto aos envolvidos, nas 24 ocorrências há 54 pessoas:
21 vítimas, 22 autores e outras 11 pessoas que foram classificadas
como parte pela Guarda, por estarem envolvidas em casos
de agressão mútua ou em casos em que não era
possível distinguir quem é vítima de quem é
autor.
Sobre os autores: entre os 22 autores há 18 homens e 4 mulheres.
Entre os homens, 4 não tinham nenhum vínculo com a
Universidade (representando o grupo mais numeroso entre as autorias
conhecidas), 2 eram alunos, 1 ex-funcionário, 1 prestador
de serviços e 2 usuários, além dos 8 casos
de autores sem informação sobre o vínculo.
Entre as autoras mulheres, 2 eram alunas e outras 2 não possuíam
nenhum tipo de vínculo com a Universidade.
Sobre as vítimas: no grupo das vítimas, havia 3 homens
e 18 mulheres. Das vítimas masculinas 1 era aluno, 1 era
funcionário e 1 era prestador de serviço (note-se
que todas as vítimas masculinas tinham algum tipo de vínculo
com a USP). Das vítimas femininas 7 eram alunas, 3, funcionárias,
2, prestadoras de serviço, 1, usuária, 4 não
tinham vínculo com a Universidade e 1, sem informação
em relação ao vínculo.
Portanto, a maioria das vítimas tinha vínculo com
a USP.
Locais
das ocorrências dos casos
Agrupamos considerando a proximidade dos locais da ocorrência.
Resultaram os seguintes pontos críticos: Portaria 1; Cepeusp;
Crusp/Reitoria; Saída São Remo/HU; Poli; Física;
Saída Fepasa; Antiga Reitoria; ICB/Estrada do Mercadinho
e Avenida Professor Mello de Moraes (o RO não especifica
em qual altura da avenida houve a ocorrência).
Os locais, em sua maioria, têm em comum a pouca movimentação
de pedestres, são avenidas ou caminhos de pouca visibilidade
(como a Estrada do Mercadinho); são mal iluminados face à
intensa arborização. Alguns situam-se próximos
às saídas da USP, o que facilita a fuga dos autores.
Nas ocorrências em que constam a rota de fuga do autor (6
em 24 casos), pode-se verificar que quatro eram saídas da
USP e as outras duas eram locais de fácil esconderijo ou
em que o agressor poderia passar despercebido entre os transeuntes.
À primeira vista, os casos não se concentram em nenhum
dia da semana; os horários também são bastante
variados, exceto, aparentemente, nos casos de estupro em fins de
semana.
Providências da Guarda Universitária: dos 24 casos,
9 foram encaminhados para a 93º DP (sete registraram ocorrência);
em 4 casos, as vítimas foram levadas para o Hospital Universitário
(HU), 7 foram registrados pela Guarda e feita a orientação
das partes e, em 1 caso, a Polícia Militar foi acionada.
Dos crimes sexuais, em 3 casos houve registro da ocorrência
na Delegacia de Defesa da Mulher.
Observações e sugestões:
1. Comparando os ROs nº 440/03 e 441/03, observa-se que ambos
os casos apontam tentativas de estupro, no mesmo dia, com horários
próximos (às 19:15 e às 22:05), atendidas pela
mesma ronda (Nilson e Vagner). A descrição do autor
é idêntica (taxista de monza branco, aparentando ter
meia-idade). Nenhuma providência foi tomada e nenhum aviso
foi feito aos demais postos de vigilância. A Guarda classificou
os casos como atentado violento ao pudor e agressão, respectivamente.
É de vital importância que haja maior comunicação
entre o pessoal da Guarda e os postos de vigilância, para
que estejam atentos à descrição de eventuais
suspeitos. Prevenida, a Guarda poderia evitar novas ocorrências,
por vezes cometidas pelo mesmo autor, como no caso acima citado,
além de evitar que agressores circulem livre e impunemente
pelo campus, sem serem percebidos e identificados pela Guarda.
2. Três casos de crimes sexuais (dois estupros
e uma tentativa de estupro, respectivamente ROs 935/02, 821/02 e
1.043/02) possuem semelhanças com relação aos
procedimentos do autor. Sua rota de fuga é a mesma (Portão
Fepasa Praça Panamericana), a abordagem é semelhante
(sempre aborda as vítimas pelas costas) e a arma utilizada
em dois dos casos é semelhante (estilete, canivete). Após
os estupros ou tentativas, o autor ainda tenta roubar o cartão
bancário das vítimas e suas senhas. Os casos ocorreram
com um mês de diferença entre cada um (25.09.02, 27.10.02
e 27.11.02). É recomendável que haja um policiamento
mais ostensivo na região do Portão Fepasa, que é
uma entrada da USP bastante utilizada e muito insegura. Recomenda-se,
em particular, atenção nos finais de semana, quando
essa entrada é utilizada pelas/os moradores do Crusp.
3. Uma vítima foi perseguida e intimidada na região
da Praça do Cavalo (RO 1.105/02). A partir da descrição
feita por ela, a Guarda localizou o suspeito e quis colocá-lo
frente a frente com a vítima para que ela o reconhecesse.
A vítima, temendo por sua segurança, se recusou.
A Guarda deve evitar situações em que a vítima
fique vulnerável a futuras ameaças do suspeito/autor
ou constrangida com a situação. Deve-se usar outras
formas de identificação dos suspeitos para garantir
a segurança das vítimas.
4. Embora classificado como atentado ao pudor (RO 1.054/02) pela
Guarda, o histórico indicou que a vítima foi molestada
sexualmente. Esse foi um caso notório de estupro do
ano de 2002, cometido por um marinheiro identificado pela mochila
preta, como foi relatado pela Folha de S. Paulo de 3.12.2002.
A incorreta classificação dos casos traz confusão
e faz parecer que o ocorrido é de menor ou maior gravidade.
É importante perceber que no próprio RO foi dito que
a vítima precisou ser socorrida pelo HU e que foi fazer laudo
no IML e DDM, procedimentos usados em casos de estupro.
5. Observamos que algumas frases e palavras contidas nos históricos
dos ROs como supôs uma provável tentativa
de estupro (ROs 894/02 e 801/02) demonstram um descrédito
quanto à palavra das vítimas. No RO 894/02, por exemplo,
observamos que, apesar de a vítima ter se declarado vítima,
foi qualificada no RO como parte. Cabe à Guarda
registrar os fatos e evitar pré-julgamentos.
6. Dos 10 casos de violência sexual (estupro, tentativa de
estupro etc.), as principais vítimas são alunas
em 5 dos 10 casos.
7. O Crusp é um local que merece a maior atenção,
pois nele e nas suas imediações houve grande número
de ocorrências (7 das 24), e nele residem 9 dos 54 envolvidos.
Das 14 ocorrências de agressão, 4 se deram dentro do
Crusp, geradas por conflitos de convivência.
Dois dos estupros envolviam, de alguma forma, o Crusp. Um deles
ocorreu no estacionamento (Travessa 8); no outro, a vítima
era moradora do Crusp e foi abordada na ponte Fepasa num domingo
à noite.
O trajeto entre o Portão Fepasa e o Crusp é muito
utilizado pelos moradores e moradoras; é muito inseguro (principalmente
nos finais de semana), pois é deserto e pouco iluminado.
Conclusão
O Campus da USP é freqüentado por cerca de 80 mil pessoas
diariamente e não escapa dos problemas de segurança
que ocorrem na cidade de São Paulo em geral. Dada sua peculiaridade
de ser um local de ensino e pesquisa, é freqüentado
sobretudo por jovens de ambos os sexos. Além destes, há
professoras/es, pesquisadoras/es e todo um corpo administrativo
e funcional. Dispõe de moradia para estudantes e inúmeros
edifícios destinados a variadas atividades.
1. Assim sendo, é de grande importância que haja um
treinamento específico da Guarda no trato da violência
sexual seja a pertencente à USP, seja a que presta
serviços. Esse treinamento, que já foi feito alguns
anos atrás, alerta a Guarda para sinais de abordagem em casos
de crimes sexuais cuja prevenção é fundamental.
2. A composição da Guarda incluindo mulheres e homens
facilita o trabalho do pessoal da segurança, assim como o
contato com as vítimas. Sugere-se que a composição
da Guarda seja composta por igual número de mulheres e homens.
3. Os zeladores dos edifícios devem receber um treinamento
específico, sendo orientados na prevenção dos
problemas de seus freqüentadores fixos ou eventuais.
4. Os difíceis problemas de iluminação num
campus tão grande devem ser considerados prioritariamente.
5. Os pontos críticos para a segurança de alunas e
alunos que moram no Crusp como o portão da Fepasa
devem ter um posto permanente de controle.
Esperamos que a presente análise sirva para melhorar a qualidade
de vida e a segurança de todas e todos que freqüentam
o campus da USP na Cidade Universitária.
Colaboraram
nesta pesquisa a aluna Jackeline Aparecida Ferreira Romio e o aluno
Danilo Sales do Nascimento França, ambos com bolsa-trabalho
da Coseas.
Eva
Alterman Blay é professora titular de Sociologia da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenadora-científica
do Núcleo de Estudos da Mulher em Relações
Sociais de Gênero (Nemge) da USP
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