Por
trás dos pratos supertemperados da culinária baiana
existe ou seria coincidência? um pouco da história
do império português. No auge do seu poderio, os portugueses
dominavam o comércio de produtos de especiaria do Oriente,
especialmente da Índia, garantindo o sabor nas mesas próprias
e de outros países da Europa. Mas, no final do século
17, o caldo começa a entornar, quando outros colonizadores,
os holandeses e os ingleses, passam a dominar os mares orientais
e a fechar as rotas para os navios lusitanos.
O que fazer? Sem canela, cravo-da-índia, pimenta, noz-moscada,
gengibre e óleo de dendê que graça tem a cozinha?
Foi então que o governo de d. João IV (1640-1656)
se lembrou que tinha colônias também do outro lado
do mundo, na América, e que a solução poderia
estar lá. Afinal, o clima brasileiro era favorável
ao cultivo de plantas asiáticas. Jesuítas e diplomatas
já sugeriam essa saída. O padre Antonio Vieira discursava
sobre a capacidade da natureza americana de compensar as perdas
sofridas no Oriente e o jurista e diplomata Duarte Ribeiro de Macedo
apontava a natureza da colônia como tesouro capaz de produzir
os mesmos frutos das Índias orientais.
E assim foi feito: Portugal começou a trazer para o Brasil
sementes de plantas de especiarias e até estacas para sustentar
as espécies em crescimento. O local escolhido para experimentação
era a Bahia, mais especificamente a Quinta do Tanque, perto de Salvador,
uma das fazendas dos jesuítas a Igreja era o braço
direito do Império. Em outros sítios, não de
padres, não dava muito certo: um inimigo miúdo e teimoso,
as formigas, arrasava as culturas. Só os jesuítas
sabiam lidar com saúvas. Os jesuítas e os indianos;
estes ainda conheciam outras técnicas de cultivo e poderiam
ajudar os brasileiros. Foi então que d. João IV começou
a transferir sábios da Índia para a Bahia e a lhes
pagar oito vinténs por dia de trabalho. Apesar disso, os
resultados ficaram aquém do que o Império esperava;
o Brasil nunca conseguiu ser grande produtor de especiarias. Mas
as espécies vingaram e provavelmente às trocas com
a Índia se deve a especificidade da culinária baiana.
A saga da pimenta, da canela e de outros produtos de tempero está
sendo contada por uma pesquisadora do IEB (Instituto de Estudos
Brasileiros) da USP, Márcia Moisés Ribeiro. Estagiária
de pós-doutorado, essa mineira de Uberaba, transplantada
para São Paulo quando tinha um mês de vida, toca há
dois anos o projeto Jornadas no Ultramar, a Circulação
do Conhecimento Científico no Império Colonial Português
1650-1800, e vai precisar de mais dois anos para concluir o estudo.
Ela explica que a experiência portuguesa não se limitou
à cozinha; alcançou e modificou a paisagem brasileira.
A manga, a jaca, a amoreira e o coqueiro, este considerado símbolo
brasileiro, são testemunhas da presença oriental no
Brasil. Diz Márcia que os exemplos da transferência
de conhecimentos agrícolas e de técnicas são
abundantes. Um autor não identificado escreveu para o vice-rei
da Índia, em 1692, que as caneleiras se multiplicaram na
Bahia, mas não eram tão boas como as da Índia.
Para melhorar a espécie seria necessário importar
técnicos especializados nesse cultivo. O governador do Maranhão,
Francisco de Sá Menezes, recebeu em 1694 ordem do governo
português para plantar mais cem pés de cravo, tomando
o cuidado de seguir rigorosamente os conselhos dos peritos indianos.
Práticos vindos de Goa estavam encarregados de fazer os coqueiros
brasileiros produzirem tanto quanto na Ásia.
Lá as folhas de palmeira eram usadas para fazer esteiras,
cobrir casas e embarcações e na fabricação
de uma bebida destilada chamada urraque. Aqui, os coqueiros produziam
menos líquido e eram inadequados para fabricação
do destilado. A missão dos técnicos era conseguir
esse melhoramento. O auge da transferência de plantas do Oriente
para o Brasil deu-se no final do século 17 e início
do 18. A partir de 1750 não se fala mais em especiarias.
Medicina
Antes do projeto Jornadas no Ultramar, ainda no mestrado, Márcia
pesquisou a medicina no século 18 e, em Londres, encontrou
uma coleção de receitas de Goa. Comparando com tratados
de medicina no Brasil, constatou fortes semelhanças. Descobriu
que o Brasil recebeu da Índia produtos para botica, como
óleo de elefante e de rinoceronte, recomendados pelas farmacopéias
oficiais. Isso a estimulou a ampliar o estudo para outras áreas.
O próximo passo do projeto atual será aprofundar a
atividade dos jesuítas em relação à
transferência de conhecimento e à prática deles
no cultivo de plantas. Márcia espera encontrar boa documentação
no arquivo da Companhia de Jesus em Roma. É para lá
que iam as cartas e os relatórios anuais que os jesuítas
eram obrigados a fazer todos os anos, contando a situação
das missões em todos os continentes onde atuavam. O arquivo
estava fechado até janeiro. A pesquisadora ressalta a ampla
participação dos religiosos: nas suas fazendas experimentais,
como na famosa Quinta do Tanque, na Bahia, ou nos colégios
espalhados pela colônia, os jesuítas foram agentes
importantes no processo de transmissão do poder médico
e botânico pelos diversos pontos do império português.
Através das cartas ânuas (os relatórios) e das
farmacopéias (receitas de remédios), a Companhia de
Jesus funcionou como elo entre os diversos povos do império
colonial português no que diz respeito à cultura e
à prática científica.
A viagem de Márcia para Roma ainda é necessária,
mas a atividade dos pesquisadores brasileiros e portugueses foi
grandemente facilitada graças ao Projeto Resgate: um mutirão
de cientistas catalogou, a partir de 1994, três séculos
de documentação sobre o Brasil do Arquivo Histórico
Ultramarino. Microfilmados, os documentos agora estão nos
principais institutos de pesquisa do Brasil e de Portugal. Estão
também no IEB.
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