Aqui planejamos até o bom dia. E foi planejando
e executando, nos últimos 15 anos, que os municípios
e empresas consorciados das bacias dos rios Piracicaba, Capivari
e Jundiaí conseguiram firmar-se como referência nacional
no gerenciamento de recursos hídricos, tratamento de esgotos,
recuperação de matas ciliares e campanhas do meio
ambiente nas escolas. Mas, se aos poucos os peixes voltam aos rios
e a população de mais de 60 cidades, com aproximadamente
4 milhões de habitantes, se une em torno de uma política
comum de saneamento, é certo também que a cada obstáculo
vencido se apresenta novo desafio, em vista do crescimento populacional
superior à média brasileira, da escassez de recursos
e ainda da inacabada regulamentação estadual e nacional
das leis referentes aos rios e manejo das águas. A cúpula
do consórcio acredita que a solução definitiva
esteja na regulamentação da cobrança da água
captada para uso industrial, desde que os recursos assim arrecadados
sejam integralmente aplicados na própria região. O
melhor exemplo disso está na França, país com
o qual o consórcio mantém contato e troca de experiências
permanentes.
Para o êxito de ações já promovidas,
como a instalação de estações de tratamento
de esgotos (ETE), em algumas cidades com capacidade para atender
100% das necessidades, muito têm contribuído as universidades,
a USP em particular, por intermédio de professores e técnicos
da Escola de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), de Piracicaba,
do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), ligado à
Esalq, e, sobretudo, do Departamento de Saneamento e Hidráulica
da Escola de Engenharia em São Carlos.
Vitório Humberto Antoniazzi, prefeito de Valinhos e presidente
pela segunda vez do Consórcio Intermunicipal das Bacias dos
Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, acaba de entregar a
estação Capuava de tratamento de esgotos, que custou
R$ 11 milhões, financiada em parte a fundo perdido pela Agência
Nacional de Águas (ANA), pelo Fundo Estadual de Recursos
Hídricos (Fehidro), órgão ligado à Secretaria
de Recursos Hídricos, e o restante pelo próprio município,
uma cidade endividada, portanto sem condições
de pleitear empréstimos. Embora entregue oficialmente,
a estação ainda está em fase de ajustes, o
que significa que por mais um ou dois meses nem um metro cúbico
de esgoto passará por tratamento. O estranho é que
a cidade já possuía rede de esgoto e uma estação
em operação, mas foi desativada em outra administração.
O projeto atual é do professor José Roberto Campos
(USP São Carlos) e usa equipamentos com tecnologia
holandesa, conforme explica a química Luciana Arantes de
Andrade, responsável pela operação da ETE.
Uma curiosidade: no sistema anaeróbio (tratamento com bactérias
que não consomem oxigênio), um dos problemas na estação
é o acúmulo de cabelos, que formam uma teia e impedem
a passagem dos líquidos, obrigando a colocação
de peneiras na entrada dos esgotos e a remoção contínua
dessa massa capilar. Entre as vantagens da nova tecnologia estão
a redução do tamanho das estações e
a quase ausência de maus odores nas cercanias, graças
à instalação de potentes exaustores. A capacidade
de tratamento é de 250 litros por segundo e a vida útil
da unidade vai até 2010, mas com pequenas ampliações
poderá operar até 2018. Assim que a ETE entrar em
operação, Valinhos, com cerca de 73 mil habitantes,
terá 96% de esgoto tratado (os 4% restantes referem-se a
residências rurais, que continuarão com o sistema de
fossas sépticas). Esse serviço vem se juntar a outras
obras de saneamento na região e que atualmente representam
37% de esgoto tratado, número que deve se elevar para 55%
até o final de 2005. Campinas, a grande cidade consorciada,
tratava, 15 anos atrás, apenas 7% de seu esgoto, já
passou de 50% e até o fim do ano espera tratar mais de 70%.
Vinhedo, vizinha de Valinhos, tem uma estação em operação
e está para iniciar a construção de rede coletora
em outra bacia hidrográfica, exatamente a que compreende
a maior parte dos condomínios, a principal característica
da cidade.
Plantio de mata ciliar em Ipeúna: participação
dos proprietários é fundamental para o sucesso do
projeto
Na
primeira gestão de Antoniazzi à frente do consórcio
foi criado o programa de investimento através do qual dez
municípios da bacia do rio Piracicaba repassam à entidade
um centavo por metro cúbico de água consumida. Uma
espécie de taxa de clube, que no final do ano
rende aproximadamente R$ 1 milhão, que financia obras de
proteção de mananciais e recuperação
de matas ciliares. O prefeito defende a cobrança pela água
sempre que usada para fins industriais, argumentando que não
se trata de mais um imposto, mas de pagamento por um insumo, muitas
vezes o mais importante da indústria. Cita o caso das cervejas
e dos refrigerantes. Quem fabrica sabão paga pela oleína,
pelo sebo, pela soda; quem faz tijolo paga pelo barro; por que o
fabricante de cerveja, que 90% é água, não
pagaria? Acontece que o projeto de lei que regulamenta a cobrança
de água está parado na Assembléia Legislativa
há sete anos. O governo do Estado também tem seus
interesses e pretendia centralizar a cobrança, para depois
redistribuir entre as agências de água (ainda também
sem existência legal) parte dos recursos assim arrecadados.
Os municípios discordam, pleiteando o retorno à região
do total arrecadado. Falta ainda a regulamentação
no âmbito federal, fato relevante levando-se em conta que
rios que percorrem dois ou mais Estados são considerados
federais. Quem cobrará pela água e quem vai receber?
As próprias bacias dos rios Piracicaba e Capivari, que são
afluentes do Tietê, compreendem, além de 51 cidades
paulistas, quatro mineiras.
França
O professor Francisco Carlos Castro Lahóz, engenheiro civil
com mestrado na Esalq, especialização em Recursos
Hídricos na Escola de Engenharia de São Carlos e secretário
executivo do consórcio, conhece bem a cooperação
com a França e a Espanha, porque participa do processo desde
a década de 90. Foi com a colaboração da França,
mais especificamente com a Agência de Águas Sena-Normandia,
que ele e outros técnicos ligados ao consórcio se
especializaram em gestão, que pressupõe planejamento,
implantação e continuidade da cobrança pela
água.
Os franceses começaram o planejamento em 1964, quando o país
enfrentava grave desemprego em razão da falta de água
para o setor produtivo. A saída era investir no tratamento
de esgotos, limpar os rios. Mas com que dinheiro e com que tecnologia?
Era preciso encontrar um sistema de gestão que criasse seus
próprios recursos, sem depender do Estado. O exemplo estava
na Alemanha e os franceses, passando por cima de rivalidades históricas,
foram lá para aprender e adaptar a tecnologia às suas
próprias condições. Em 1964 nasceu o projeto
piloto francês, mas só entrou em operação
em 68, e modestamente. A cobrança pela água rendeu-lhes
no primeiro ano US$ 200 mil; hoje arrecadam US$ 1,5 bilhão.
Como foi possível? Primeiro, envolvendo todos os interessados
na água, onde paga um, pagam todos. Embora de
início tenham isentado da taxa os produtores agrícolas,
depois passaram a cobrar deles também, pois é sabido
que a agricultura francesa vive de subsídios oficiais e o
que o agricultor entrega com uma mão retira com a outra.
Deram preferência ao uso e cobrança de água
em solos férteis, próximos das condições
ideais de produção, onde até os ventos
colaboram para que a alface cresça, relegando a segundo
plano as culturas do asfalto, em terras pobres. Tomaram
ainda o cuidado de cobrar pelo valor mais baixo da moeda, centavos
de franco (na época). Cientes de que o governo não
financiaria o processo a longo prazo, embora não recusasse
recursos esporádicos, buscaram estruturar um sistema que
se autofinanciasse, modelo que se pretende implantar no Brasil.
Lahóz não se cansa de apontar a lisura dos franceses
quando se trata da colaboração com o Brasil; nunca
vieram para cá falando de quanto vai custar a assessoria,
abriram as portas de seus escritórios e laboratórios
e não negaram nenhuma informação.
A colaboração se deu de várias formas. Uma
primeira experiência foi no Vale do Rio Doce, assumida pelo
Ministério do Meio Ambiente do Brasil, num modelo de cooperação
típica internacional. Com o consórcio de bacias foi
diferente: o primeiro passo consistiu em permitir que uma delegação,
incluindo o professor Lahóz, fosse visitá-los, em
1991. Eram 17 prefeitos da região e o ex-secretário
adjunto de Recursos Hídricos de São Paulo Rui Brasil
Assis. Segundo o professor, os franceses fizeram uma coisa
fantástica: mostraram as qualidades e os defeitos do sistema.
Combinamos então que nos anos ímpares nós mandaríamos
uma delegação para a França e nos pares eles
retribuiriam. Ficou também acertado que, quando o consórcio
tivesse recursos para construir estações de tratamento
de esgoto, eles dariam assessoria técnica.
Nesse caso não se trata apenas de cortesia francesa; ajudando
a tratar esgoto ganham dinheiro indiretamente, porque 90% das estações
incorporam equipamentos importados, de 30% a 40% da França.
Em 1993, os franceses permitiram que os brasileiros aplicassem um
programa consagrado no seu país, a parte mais difícil
da gestão de recursos hídricos, que é dar continuidade
ao processo quando o peixe volta aos rios. De fato,
dez anos depois de o sistema francês estar implantado, os
peixes voltaram aos rios e as indústrias já trabalhavam
a todo vapor, com água à vontade. Então aconteceu
de muita gente começar a questionar a cobrança pela
água. Se está tudo bem, temos água e
emprego, por que essa despesa? Foi quando a França
fez uma coisa espantosa: do US$ 1 bilhão e 500
milhões arrecadados anualmente com a cobrança da água,
destinou US$ 750 milhões para campanhas de educação
ambiental e formação de opinião. Entre outras
providências, distribuíram milhões de exemplares
de uma engenhoca de papel e vidro, que perguntava na capa Quem
é o responsável pela conservação dos
nossos rios? Vire. Virando, o leitor aparecia num espelho.
O responsável era ele.
Campanhas foram tentadas também no Brasil, informa o professor
Lahóz, mas no começo não deram certo. Foram
contratados professores universitários para montar programas
ambientais, que fracassaram porque ninguém sabia nada de
gestão de recursos hídricos e as lições
eram sobre jacaré-do-papo-amarelo, ariranha-azul, mico-leão-dourado,
e outros temas que tinham pouco a ver com a finalidade principal
da proposta.
Com recursos escassos, outros modelos franceses de campanha foram
aqui adaptados, desta vez com sucesso. Um exemplo, as Classes de
Água das escolas francesas serviram de piloto para a Semana
da Água criada pelo consórcio que de semana
só tem o nome, porque todos os anos, e já faz dez,
mobiliza milhares de alunos e professores de março a outubro,
já tendo atingido 700 mil estudantes. A experiência
brasileira entusiasmou os franceses. Outra iniciativa pioneira,
porque se antecipou à proposta PPP do governo federal, foi
a criação em 1994 da parceria público-privada,
pela qual professores e técnicos treinados visitam grandes
empresas, para convencê-las a apoiar projetos ambientais e
liberar recursos. Entre outras coisas os franceses aprenderam que
publicidade também se faz com bonés e camisetas que
levam gravados os nomes das empresas patrocinadoras. Aprenderam
ainda que as campanhas não precisam ter caráter oficial
e podem ser baratas. Cada estação de tratamento de
esgoto do consórcio custa US$ 100 por habitante, contra os
US$ 500 do modelo francês.
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Educação
ambiental: crianças aprendem a preservar as águas
dos rios |
Estação
de tratamento em Valinhos: 96% do esgoto da cidade será
tratado |
Colaboração também existe com a Espanha
bacia do rio Jucar, Valência. Com os espanhóis os técnicos
brasileiros aprenderam especialmente a lidar com poços artesianos,
que lá só entram em operação em horários
de pico e as bombas funcionam apenas por poucos minutos, economizando
energia elétrica e mantendo as reservas subterrâneas
de água. Eles captam e tratam a água da chuva e ainda
injetam as sobras nos poços. Em compensação,
os brasileiros ensinaram aos espanhóis como criar comitês
de bacias. O importante na cooperação é
se despojar de segredinhos (menos de algumas cartas da manga),
ensina Lahóz, que adianta: quando dispuser de R$ 50 milhões
por ano, provenientes da cobrança da água, vai contratar
espanhóis para ganhar tempo e mais tecnologia.
Mata
ciliar
Atividade importante patrocinada pelo consórcio refere-se
à recomposição da mata ciliar, a que acompanha
as margens dos rios. Nas bacias dos rios Piracicaba, Capivari e
Jundiaí foram plantadas 1 milhão e 800 mil mudas,
e recuperadas muitas nascentes extintas por uso incorreto do solo.
O segredo que garante sucesso nessa tarefa é dar ao proprietário
do terreno um projeto e as mudas, deixando que ele mesmo plante
e cuide. Se receber tudo de mão beijada tenderá a
abandonar a mata nascente e a colocar gado para pastar ali. Isso
se não botar fogo.
Segundo Lahóz, a previsão que se fazia quando da instalação
do comitê era de caos na região até o ano 2005,
se nada ou pouco fosse feito em relação ao meio ambiente.
Alguma coisa foi feita e mesmo assim o caos se antecipou em algumas
cidades. Sumaré, por exemplo, não dispõe de
água potável de qualidade. Ainda bem que as grandes
indústrias estão conscientes dos riscos e a maioria
trata a água que usa, e que o problema do sistema Cantareira
para abastecimento da capital paulista foi satisfatoriamente resolvido,
com a participação decisiva do consórcio. Agora
a gestão é compartilhada e foi criado um banco de
águas, prevendo-se ainda a construção de novo
reservatório até 2010. Na opinião do professor,
o Estado precisa tomar a dianteira na questão ambiental e
investir pesado. Beijar o pé de santo pode ajudar a
chover, mas não resolve o problema; são necessárias
obras.
O saneamento e a questão da água preocupa não
apenas municípios; preocupa Estados e países. Daí
que se criaram redes de organismos de bacias em âmbito municipal,
nacional, latino-americano e mundial. Lahóz, um homem metódico
que, segundo diz, planeja até o bom dia, participa de encontros
periódicos promovidos por essas entidades. Já representou
o consórcio em Martinica, Canadá e Polônia,
sempre levando projetos brasileiros e trazendo experiências.
A formação do rio Piracicaba, em
Americana: ambiente mais limpo
A
mão da universidade
As
universidades deram sua contribuição ao consórcio,
tanto no que diz respeito a reflorestamento como ocupação
do solo e consultoria técnica para tratamento de esgoto.
Ao perceber que muitas nascentes estavam secando, técnicos
do consórcio foram buscar parceria com uma ONG do Paraná,
que tinha atuado no reflorestamento de reservatórios,
e com ela aprenderam como trabalhar com os agricultores, passando-lhes
parte da responsabilidade pelo replantio da mata. Implantado
com êxito um projeto piloto em duas bacias, um professor
da Esalq, Paulo Kajiama, hoje consultor do Ministério
do Meio Ambiente, abriu as portas da escola para pesquisas
com espécies nativas da bacia do Piracicaba. Nós
crescemos e ele passou a ter um laboratório vivo,
diz Lahóz. Atualmente o consórcio adquire sementes
da Esalq, por preços acessíveis, e muitos ex-alunos
da USP são coordenadores de programas do consórcio.
No campo da ocupação do solo e gestão
de recursos hídricos estabeleceu-se colaboração
com a Unicamp, principalmente com o pessoal do setor agronômico.
Mas a grande experiência com universidade, acentua Lahóz,
não se fez com nenhuma instituição da
bacia do Piracicaba. Fez-se com o Departamento de Saneamento
e Hidráulica da Escola de Engenharia da USP de São
Carlos, representado principalmente pelo professor José
Roberto Campos, respeitado internacionalmente como especialista
em tratamento de esgotos. O consórcio procurou ajuda
ainda em 1989 e acabou assinando convênio com a Escola
de Engenharia, passando a receber assessoria de vários
professores, entre outros Campos e Marcelo Pereira de Souza.
Nós devemos toda a nossa tradição
de tratamento de esgotos à Escola de Engenharia,
agradece o secretário-executivo do consórcio,
informando ainda que em São Carlos há mais estudos
sobre a região de Piracicaba do que nas próprias
cidades consorciadas. Sobre uma obra de Campos Técnicas
e tratamento de esgotos Lahóz diz que se trata
de obra-prima, apesar de não passar de 60 páginas.
Na sede do consórcio, em Americana, dois andares de
um prédio central, o jornalista Marcelo Batista dirige
o jornal Água Viva e cuida da produção
audiovisual da entidade. Na opinião do professor Lahóz,
Marcelo Batista é o único jornalista brasileiro
especializado em assuntos relacionados com gestão de
recursos hídricos.
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