A arte na rua: artistas mostram suas cores em espaços públicos,
despertando um novo olhar sobre a cidade
De graça... Como o céu, o sol e a alegria
de sonhar e criar. Neste ano, o público pode conhecer, de
graça, o trabalho de 136 artistas de 62 países de
todos os continentes. Com entrada franca no Território
Livre, a expectativa é de que a 26a Bienal Internacional
de São Paulo atraia mais de 1 milhão de pessoas.
Em 2002, a 25a Bienal recebeu 670 mil visitantes e foi a exposição
de arte contemporânea mais visitada no mundo. Diante desse
movimento, 56 artistas brasileiros e 80 especialmente convidados
marcam presença, criando novos trabalhos e ocupando o espaço
generoso, com 25 mil metros quadrados, do pavilhão de Oscar
Niemeyer. Em homenagem aos 450 anos de São Paulo, vamos
presentear a população com a entrada franca,
diz Manoel Francisco Pires da Costa, presidente da Fundação
Bienal. Para tanto, acertamos várias parcerias como
a iniciada, no ano passado, durante a Bienal Internacional de Arquitetura,
com a Fundação Armando Álvares Penteado. Estamos
contando também com o Centro de Estudos e Memória
da Juventude para ajudar a selecionar e preparar os cerca de 400
monitores que vão orientar o público durante a mostra.
Diversos eventos estão programados, como palestras de artistas
internacionais, seminários e apresentação musical,
entre outros. A mostra se estenderá durante mais de 80 dias
(até 19 de dezembro). O curador é o alemão
Alfons Hug, assistido por Jacopo Crivelli. O design da mostra é
do arquiteto Isay Weinfeld.
Terra
de ninguém
O tema proposto por Alfons Hug tem várias dimensões:
físico-geográfica, político-social e estética.
O território livre da Bienal é onde o mundo
convencional termina, justifica. Designa aquele espaço
onde a realidade e a imaginação estão em conflito.
Os artistas são os guardiões das fronteiras de um
reino situado além da sociedade administrada, em paragens
não mais alcançadas pelo poder interpretativo das
instâncias política e econômica. Enquanto todos
brigam incessantemente em torno da pergunta sobre o que pertence
a quem, a arte define as relações de propriedade à
sua maneira. No domínio da estética, tudo é
de todos. Nesse questionamento, a Bienal tenta, através
das obras dos artistas, mostrar como as devastações
do mundo real e das relações interpessoais se condensam
na arte.
Esse conceito pretende chegar ao público por infinitos caminhos
da imaginação. Porém, o importante não
é tentar racionalizar ou buscar sentidos. Vale caminhar por
esse território livremente com o olhar atento e o coração
leve. Sem preconceitos. E se deixar envolver pelos ventos da arte
contemporânea.
Um mundo do vazio, do silêncio, da parada reflexiva. O artista,
na proposta do curador Hug, rompe as fronteiras materiais e se torna
um contrabandista de imagens. A Bienal teve especial atenção
com a distribuição espacial. Levaram-se em conta critérios
conceituais, estéticos e técnicos. O ponto de partida
de todas as considerações foi a arquitetura do prédio,
que é um ícone cosmopolita da arquitetura moderna,
feito de concreto armado, aço e vidro, inserindo as obras
em um contexto de modernidade.
Hug acentua que a sede da Bienal de São Paulo é a
mais bela dentre todos os espaços das bienais do mundo. Todos
ficam admirados com o vão de aérea leveza e a rampa
de elegância barroca que corta os três pavimentos em
espirais.
"O território livre da Bienal é
onde o mundo convencional termina. Designa aquele espaço
onde a realidade e a imaginação estão em conflito",
diz o curador
Alfons Hug
Obras
no espaço
A distribuição espacial foi planejada com muito critério,
mas levou em conta que a arquitetura do prédio sugere um
agrupamento espacial de suportes. No pavimento térreo, com
um pé-direito de mais de 7 metros e uma visão geral
para o Parque do Ibirapuera, está o Parque das Esculturas,
com obras tridimensionais de grande porte. No vão central
estão as esculturas de Artur Barrio, Cai Guo Quiang e David
Batchelor que se elevam até o terceiro andar, reforçando
o sentimento de coesão entre as diversas partes da exposição.
A primeira metade do segundo andar foi reservada para um Salão
de Pintura, desfrutando da luz que se espalha por todo o espaço,
incidindo do leste e do oeste e difusamente de cima para baixo.
A outra metade desse andar médio, onde a luz não chega,
foi reservada para um Multiplex de Instalações, um
planetário onde o observador pode afundar no cosmos das imagens
digitalmente geradas. Essa divisão facilita a orientação
do público.
A fotografia permeia todo o território, estendendo-se como
uma corrente ou um fio vermelho pela exposição inteira,
sugerindo as suas relações diretas e indiretas com
a pintura, escultura e o vídeo. Uma linguagem que se destaca
por reunir temas e artistas de países distintos, como Alec
Soth (Estados Unidos) e Zwelethu Mthetwa (África do Sul)
ou Simryn Gill (Austrália) e Veronica Zapletalova (República
Tcheca).
O design da exposição manteve as janelas livres para
priorizar a visão de São Paulo, possibilitando um
diálogo entre as obras de arte e a própria cidade.
Em perspectiva histórica, a Bienal e a cidade são
efetivamente inseparáveis. Uma condiciona a outra. Cresceram
no mesmo ritmo, geraram a mesma energia e foram vitimadas ocasionalmente
pelas mesmas crises, diz Hug.
No Brasil, não faltaram tentativas de criar territórios
livres, afirma Alfons Hug. A fundação
de Brasília e a Fundação Bienal de São
Paulo são dois exemplos. E ambas são aliadas naturais
por brotarem do mesmo espírito esclarecido e compartilharem
a vocação para o recomeço. Foram concebidas
como fonte de imagens novas, pavimentando o caminho do País
na direção da modernidade.
A Bienal, segundo o curador, é uma área extraterritorial
onde os artistas erigem as suas povoações utópicas.
É o espaço onde se acumulam a massa crítica
e a energia positiva que permitem o surgimento do pressuposto da
transformação da sociedade e a intuição
de novas formas do convívio humano, observa. Cada
geração de artistas é chamada a fazer novamente
o levantamento topográfico dessa terra de ninguém
e traçar-lhe os contornos.
Melhor
é se perder
Apesar do esforço da curadoria em planejar e facilitar a
compreensão do espaço, melhor mesmo é se perder.
Ficar livre por todo o território, mesmo porque a Bienal
exige uma segunda ou terceira visita. Não se preocupe em
observar tudo de uma vez. Vá devagar pelos pavimentos, deixando-se
levar pela criatividade desses 136 artistas. Veja as salas especiais
de Artur Barrio (Portugal/Brasil), Cai Guo Quiang (China), Eugenio
Dittborn (Chile), Beatriz Milhazes (Brasil), Thomas Struth (Alemanha)
e Luc Tuymans (Bélgica). Importante também visitar
a sala especial em homenagem a Cândido Portinari. Observe
especialmente a sala do pernambucano Paulo Bruscky, que trouxe uma
mostra de seu ateliê na rua Cândido Lacerda, no Recife.
Expõe os objetos, livros e lembranças que colecionou
nos últimos 40 anos. Há pilhas de recortes de jornal
amontoados pelo chão. Pastas cuidadosamente empilhadas, onde
guarda as suas correspondências com artistas de todo o mundo.
Cavalete empoeirado, várias paletas com manchas de tinta
e as ferramentas que utiliza no dia-a-dia.
Outra montagem imperdível é a curiosa expedição
do pintor austríaco Thomas Ender no Brasil. Esse trabalho
foi coordenado pelos artistas e pesquisadores Mark Dion e Robert
Wagner, que contaram com uma equipe de estudiosos alemães,
austríacos e brasileiros. Ender, professor da Academia de
Belas Artes de Viena, foi enviado ao Brasil para documentar o casamento
da princesa austríaca Leopoldina com D. Pedro. Ao chegar,
retratou prédios e os arredores da cidade do Rio, incluindo
uma vista de 360 graus da Baía de Guanabara. Em 1818, reuniu-se
a uma expedição de oficiais da embaixada austríaca,
que visitou cidades como Santa Cruz, Itaguaí, São
João Marcos e Areais. Ao voltar ao Rio, o artista adoeceu
gravemente e retornou ao seu país. O último inventário
da sua obra, feito por Robert Wagner, registrou 763 folhas de aquarelas
e desenhos.
A
arte invade as ruas
É
a vez da arte sem limites. E o Território Livre,
que se projetará para além do Pavilhão
da Bienal, com artistas mostrando sua arte pela cidade, invade
também as avenidas com as cores de Claudio Tozzi. O
artista que, em meados da década de 60, movimentava
os muros da periferia com cartazes de protesto e o rosto de
Che Guevara, está de novo pelas ruas, grafitando uma
nova ordem: integrar a arte à cidade.
No mesmo dia da abertura da Bienal (25 de setembro), Tozzi
iria inaugurar painéis nos muros e viadutos de dois
importantes eixos viários de São Paulo, as avenidas
Rubem Berta e Bandeirantes. Uma arte que ocupa cerca de 26
mil metros quadrados entre muros e grades instaladas, além
de 11 viadutos. Esse trabalho integra o Projeto Arte Urbana,
patrocinado por uma empresa de tintas. Essa ação
procura organizar o espaço através da pintura,
da forma e também dos elementos do local. Queremos
mostrar que a arte projeta-se no espaço e vive com
ele.
Essas avenidas agora encontram, na pintura de Tozzi, uma nova
referência. Os desenhos dos painéis são
compostos por faixas paralelas pintadas em tonalidades diversas
de uma mesma cor. Utilizei a linguagem urbana das faixas
como as de pedestres e de estacionamento, explica o
artista. As cores também foram escolhidas em
sintonia com a paisagem, procurando destacar os desenhos do
painel e do próprio entorno.
Na região do Jabaquara, a opção foi pelos
tons azuis, valorizando a visão generosa do céu.
Para a região do Ibirapuera, favorecida pelos tons
das árvores e da vegetação, o artista
trabalhou com o verde. Na região próxima ao
Aeroporto de Congonhas onde se destaca, em cor laranja,
a torre de sinalização do Ministério
da Aeronáutica, Tozzi optou pelo amarelo. Esses
tons vão se diferenciar e, ao mesmo tempo, se integrar
à cor da torre, observa. A preocupação
do trabalho não é formar apenas um painel, mas
um conjunto harmônico com a paisagem da cidade.
Tozzi começou a mudar o visual dessas avenidas em julho.
Apesar de o trânsito continuar intenso, os motoristas
passaram a contar com a leveza das cores. Um trabalho que
exigiu a criatividade do artista e a paciência do professor
e arquiteto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU)
da USP. Procurei observar o movimento e a velocidade
dos carros para poder desenvolver a percepção
visual dos desenhos dos painéis, afirma. Tentei
aplicar a mesma linguagem do cinema, só que nas avenidas
os espectadores estão em movimento e a imagem está
parada. Assim, dependendo da velocidade do carro, os motoristas
e os passageiros terão uma visão diferente.
Para integrar a arte à cidade, foram disponibilizados
cerca de 25 mil litros de tintas. Tozzi contou com a colaboração
de 30 pintores e também de professores de arte para
garantir que a transposição dos desenhos, em
sua concepção original, fosse feita corretamente
na dimensão dos muros. Estou muito satisfeito
por estar nas ruas. E feliz pela receptividade. Quando
a região do viaduto Jabaquara começou a ser
colorida, a escola de samba Barroca da Zona Sul, que tem sede
na área, procurou o artista para que ele pintasse os
seus muros também. Tozzi desenhou um projeto especial
inspirado nas cores rosa e verde da escola e no ritmo dos
sambistas. Criar assim, sob o olhar da cidade e junto
com a população, é uma oportunidade única.
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