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Seguidores da seita do reverendo Jim Jones participam de suicídio coletivo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Pinsky: respostas a problemas atuais

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Faces do fanatismo, organização de Jaime Pinsky, editora Contexto, 288 páginas, R$ 39,90, lançamento no início de outubro

Criança morrendo no gueto de Varsóvia, 1941 Adultos e crianças da Ku Klux Klan nos anos 40 do século 20


Fanatismo é a manifestação de um grupo de pessoas que se consideram detentoras de uma verdade indiscutível e querem colocar essa verdade em prática, custe o que custar, morra quem tenha que morrer. Pois a partir de 4 de outubro um livro da editora Contexto vai analisar quatro aspectos do fanatismo: religioso, racista, político e esportivo. Proposta editorial e organização de Jaime Pinsky e Carla Bassanezzi Pinsky, Faces do Fanatismo dá seqüência ao projeto de fazer história com pés plantados no presente e em parceria com especialistas em cada tema. Desta vez, colaboram, além dos organizadores, sete professores, vários da USP: Peter Demant (Fundamentalismo islâmico), José Rivair Macedo (Cruzadas), José Alves de Freitas Neto (Caça às bruxas), Cláudio Camargo (Seitas contemporâneas); Maria Luiza Tucci Carneiro (Ku Klux Klan/Racismo nazista/Neonazismo); Marco Mondaini (Expurgos stalinistas/Ação camicase/Macartismo/Revolução cultural maoísta/Terrorismo político); Carlos Alberto Pimenta (Hooligans/Torcidas organizadas). A obra chega às livrarias dois ou três meses depois de Práticas de cidadania, dos mesmos organizadores e no mesmo sistema de colaboração, que teve ampla repercussão nacional, precedido por sua vez, em 2003, por História da cidadania.

Pinsky, um sorocabano com doutorado e livre-docência na USP e professor aposentado da Unicamp, afirma que ser historiador é conhecer os processos históricos para entender o presente. E não se refere apenas ao presente econômico e político, refere-se também ao presente social e cultural. Ser historiador, segundo o professor, é chamar a atenção das pessoas para o fato de elas serem detentoras de um patrimônio cultural inestimável. É lastimar o fato de muita gente se esquecer que fazemos parte da espécie humana. Significa também conhecer Beethoven, Mozart, os filósofos gregos... Pois o historiador não lida apenas com as grandes guerras e com os grandes fatos políticos; lida com a cultura.

Um dia, conta Pinsky, perguntaram-lhe qual era, na sua opinião, a maior figura do século 20. Respondeu, para espanto dos interlocutores, que considerava Albert Sabin esse homem. Por quê? Porque ajudou a acabar com a poliomielite — “sou da geração em que muitas crianças iam à escola com paralisia” — e teve a delicadeza de lembrar que as crianças não gostam de tomar injeção, por isso inventou as gotinhas (sem mencionar que Sabin teve a sensibilidade de se casar com uma brasileira).

Pinsky trabalha com cidadania, preconceito, fanatismo, temas do século 20. Mas confessa que só se sentiu qualificado para falar de seu tempo depois de estudar profundamente a Antiguidade e a Idade Média. Considera grave defeito de jovens historiadores, principalmente alunos, imaginar que a história começa no século 20. Pensando assim, perdem a perspectiva e uma das coisas mais importantes que nos diferencia dos outros animais: a cultura. O professor concorda que a cidadania, entendida como o conjunto de ações praticadas por organizações não-governamentais, ambientalistas, combatentes da corrupção em órgãos públicos, defensores da inclusão social de minorias e até representantes de uma corrente avançada da Igreja, é uma conquista relativamente recente dos brasileiros. Define melhor: cidadania é um conjunto de direitos sociais e políticos e não existe sem democracia, embora esta seja uma condição necessária, mas não suficiente. Só de pouco tempo para cá, acrescenta, as pessoas começaram a verificar que instituições civis e empresas podem realizar trabalhos a favor da cidadania. É a sociedade suprindo as carências do governo. E é o que mostra o livro Práticas de cidadania, escrito a 50 mãos. Mãos de empresários, jornalistas, professores, educadores e até gente da alta sociedade com preocupações sociais.

Segundo Pinsky, no tempo do wellfare state, antes mesmo da Guerra Fria que opôs a União Soviética ao Ocidente, o mundo capitalista tinha leis favoráveis ao trabalhador e ao pobre. Mas, quando acabou a concorrência soviética, o neoliberalismo veio com tudo e hoje em dia quer acabar com todas as conquistas sociais, como aposentadoria e salário-desemprego. O que vai acontecer com as pessoas reais, de carne e osso, se organizações civis, ONGs e empresas não atuarem supletivamente?


Hooligans transformam ruas em campos de guerra quando entram em confronto com a polícia


Quatro blocos

Pinsky e Carla (historiadora, mestre pela USP e doutora pela Unicamp) consideraram importante mostrar as várias faces do fanatismo que se manifesta ao longo da história. Embora o nome tenha surgido apenas no final do século 18, é certo que há manifestações de fanatismo muito antes desse período. Por isso mesmo, Faces do fanatismo tem capítulos que vão das Cruzadas às torcidas organizadas de times de futebol. Mas fanatismos podem ter interpretações diferentes, dependendo de quem os pratica ou quem os sofre. Assim, as Cruzadas podem ser manifestações de fé para os cristãos, mas são fanatismo para muçulmanos. Do mesmo modo, ações de fundamentalistas podem ser manifestações de fé para muçulmanos e de fanatismo para os cristãos.

Dos quatro blocos em que o livro se divide, o último, sobre fanatismo esportivo, com certeza vai interessar muito particularmente à sociedade brasileira.

Depois de reafirmar que fanatismo é manifestação de grupos que se consideram detentores de uma verdade e que ela deve prevalecer nem que seja à custa da vida do outro, Pinsky analisa o torcedor fanático: um indivíduo que se diz, por exemplo, torcedor do Corinthians tem absoluta convicção de que aquele que não é suficientemente corintiano não serve para nada. Os próprios hinos que cantam significam morte ao outro. O outro não é adversário, mas inimigo. É fanatismo como o foram também a Revolução Cultural maoísta, a limpeza que Stálin fez contra seus adversários políticos e o macartismo (quase não sobrou ator que prestasse em Hollywood).

Não são poucos os paulistanos que já testemunharam cenas de vandalismo exibidas por torcidas organizadas, quando a violência não se limita a atingir o torcedor do time contrário, mas investe contra bens públicos e contra os ônibus que os transportam. No livro, o tema do fanatismo esportivo está a cargo de Carlos Pimenta e ele tenta explicar mais esse aspecto. Nota que há um descolamento do motivo que presidiu a formação da torcida organizada — incentivar o clube do coração — e se cria um grupo de solidariedade que se autoprotege e luta contra um inimigo imaginário comum — que em muitos casos parece ser toda a sociedade. Uma revolta gratuita, segundo Pinsky. No caso dos hooligans ingleses, a violência e o fanatismo saem do campo de futebol e se projetam contra os imigrantes, os negros, os homossexuais, as prostitutas e as mulheres em geral. Para entendê-los, haja psicologia.

Depois de garantir que dará um período de descanso para a imprensa (que analisa suas obras), Pinsky promete voltar com novo livro, mas isso vai demorar. Será sobre teoria da história. E aproveita para fazer alguns esclarecimentos: ele e seus colaboradores estão sempre preocupados em dar resposta a problemas contemporâneos. “Mesmo quando falo das Cruzadas ou das bruxas, retrato-as com perplexidade, perguntando qual o sentido disso. O processo histórico ajuda a entender os fatos de hoje.”

O outro esclarecimento tem sentido de advertência: cuidado para não misturar alhos com bugalhos. Ao longo dos séculos 19 e 20, o mundo ocidental cometeu atrocidades enormes na África e na Ásia. Isso provocou a “culpa do homem ocidental” na Índia, na China e na África. Em nome da culpa, muita gente começou a perdoar qualquer atrocidade cometida por indianos, chineses ou africanos. Faces do fanatismo recoloca as coisas no seu lugar. Mostra que, se de um lado entendemos, por exemplo, a ação dos radicais muçulmanos, por outro não a justificamos. Compreender o processo não significa justificá-lo. Na história, os meios decididamente não justificam os fins. Assassinar crianças como na escola russa próxima da Chechênia, estourar bombas em cafés, explodir aviões... não há como justificar. “Não podemos perder aquilo que tão duramente construímos ao longo de milênios. Cada ação anticivilizatória desumaniza toda a espécie humana.”


Corpos de mulheres e crianças israelenses após explosão de um ônibus por terroristas


Um fanático

Jaime Pinski alfabetizou-se antes de completar cinco anos de idade, fazendo-se de papagaio de pirata nas leituras de sua irmã, em Sorocaba. Desde então é um fanático... pelo livro. Depois vieram o Colégio Porto Seguro, o Colégio do Estado, a Faculdade de Filosofia na própria cidade (embora preferisse fazer Sociologia na USP com o professor Florestan Fernandes), aulas em faculdade de Assis (a “Coimbra do Sertão”, hoje Unesp), o doutorado em História na USP (com orientação do professor Eurípides Simões de Paula), aulas no Departamento de História e História Judaica, nas Letras, também na USP, durante seis anos, e aulas na Unicamp a convite do professor Zeferino Vaz, até a aposentadoria. Ditos assim friamente, esses lances biográficos pouco dizem; para entender melhor o professor e sua carreira acadêmica e editorial é preciso ouvi-lo falar. De professores, de alunos, da história. Com entusiasmo.

Pinsky também foi e é editor. Com o sociólogo José de Souza Martins fundou, com as bênçãos e advertências de Florestan Fernandes, a revista Debate & Crítica, que marcou fortemente os tempos de chumbo dos intelectuais brasileiros, até fechar por não concordar com a censura prévia dos militares. Logo depois, a revista reapareceu como Contexto, também fechada quando os principais colaboradores se dispersaram para cuidar de projetos próprios. Em Campinas, Pinsky criou a Editora da Unicamp, uma bela experiência que o levou a abrir a sua própria casa editorial, a Contexto.
Ideologicamente, quem é Pinsky? “Sempre me considerei socialista, mas prezo a liberdade”, ele explica. Essa liberdade permitiu-lhe colaborar em jornais e revistas politicamente opostos, sem nunca perder a identidade, aprendendo a conviver com os extremos.



Fanatismo e fanatismos

Trecho da introdução de Faces do fanatismo

Fanático por caipirinha. Fanático por samba. Fanático por viagens. Há fanáticos para tudo. Ou melhor, há fanáticos e fanáticos. O problema é que, por ser empregada tão à vontade (aliás, como tantas outras), a palavra fanatismo banalizou-se, perdendo em força e conteúdo. Entretanto, parece óbvio que um “fanático por novela” é algo bem diferente (e bem menos perigoso) que um “nazista fanático”.

Fanático é um termo cunhado no século 18 para denominar pessoas que seriam partidárias extremistas, exaltadas e acríticas de uma causa religiosa ou política. O grande perigo do fanático consiste exatamente na certeza absoluta e incontestável que ele tem a respeito de suas verdades. Detentor de uma verdade supostamente revelada especialmente para ele pelo seu deus (portanto não uma verdade qualquer, mas A Verdade), o fanático não tem como aceitar discussões ou questionamentos racionais com relação àquilo que apresenta como sendo seu conhecimento: a origem divina de suas certezas não permite que argumentos apresentados por simples mortais se contraponham a elas: afinal, como colocar, lado a lado, dogmas divinos e argumentos humanos?

Pode-se argumentar que as palavras de Hitler ou as de Mao mobilizaram fanáticos tão convictos como os religiosos e não tinham origem divina. Ora, de certa forma, eles eram cultuados como deuses e suas palavras não podiam ser objeto de contestação, do mesmo modo que ocorre com qualquer conhecimento de origem dogmática. É condição do fanático a irracionalidade. Veja-se o que aconteceu com o povo alemão, por exemplo. Acreditar que o mais imbecil dos “arianos puros” pudesse ser superior a Einstein, como pregava a cartilha hitlerista, não decorre de uma apreensão racional da realidade, mas de uma verdade revelada pela propaganda nazista. Aceitar e agir como se grandes cientistas e intelectuais, só pelo fato de terem origem judaica, pudessem pertencer a uma suposta raça inferior não é, decididamente, uma abordagem racional e sim uma verdade revelada, da mesma categoria, portanto, das verdades religiosas. Um dogma de fé.

Este livro apresentou alguns desafios, dos quais estávamos bastante cientes: 1) evitar o anacronismo, não transpondo conceitos de uma época para outras, principalmente anteriores. Ora, se o fanatismo é um conceito da era moderna, como transpô-lo para a Idade Média, por exemplo? 2) Como julgar os atores históricos a partir de um olhar de hoje? Será que a Inquisição, por exemplo, não foi fruto do seu tempo, apenas? 3) Como julgar os atores históricos a partir de nossa ótica ocidental? Não somos suspeitos?

Ora, os atores deste livro não são réus sentenciados e os autores não se dispuseram a fazer um julgamento. Os historiadores, sociólogos e jornalistas, que escreveram esta obra, são pesquisadores consagrados em sua área de atuação e construíram sua credibilidade com anos de trabalhos de alto nível. Ao aceitar nosso convite trataram de traduzir um conhecimento arduamente adquirido, colocando-o ao alcance do leitor não especializado, mas disposto a desvendar importantes questões contemporâneas. Assim, a ampliação histórica do conceito de fanatismo encontra-se devidamente explicada em cada texto, justificando-se amplamente, exatamente porque adquire historicidade. Da mesma forma, como se diz e se repete em nosso meio, não há história que não seja história contemporânea. Isso não quer dizer, é claro, que se deve estudar apenas os acontecimentos ocorridos após a Revolução Francesa, mas que o olhar que despejamos sobre o acontecido é, necessariamente, o de alguém que vive numa determinada época, em um determinado lugar, e é fruto das contingências decorrentes dessas determinações. História não é, evidentemente, apenas o que ocorreu, mas a forma como nós percebemos aquilo que ocorreu. O que não significa, é claro, que tenhamos aberto mão de uma cuidadosa investigação histórica, e de uma busca de isenção. Aqui o leitor não vai encontrar truísmos, ou opiniões superficiais dos que percebem o fanatismo apenas no “outro”, reservando para si o direito de ser “politicamente convicto”, de ter “fé profunda”, ou de torcer para o “único time decente de futebol”.

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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