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Criança morrendo no gueto de Varsóvia, 1941 |
Adultos
e crianças da Ku Klux Klan nos anos 40 do século
20 |
Fanatismo
é a manifestação de um grupo de pessoas que
se consideram detentoras de uma verdade indiscutível e querem
colocar essa verdade em prática, custe o que custar, morra
quem tenha que morrer. Pois a partir de 4 de outubro um livro da
editora Contexto vai analisar quatro aspectos do fanatismo: religioso,
racista, político e esportivo. Proposta editorial e organização
de Jaime Pinsky e Carla Bassanezzi Pinsky, Faces do Fanatismo dá
seqüência ao projeto de fazer história com pés
plantados no presente e em parceria com especialistas em cada tema.
Desta vez, colaboram, além dos organizadores, sete professores,
vários da USP: Peter Demant (Fundamentalismo islâmico),
José Rivair Macedo (Cruzadas), José Alves de Freitas
Neto (Caça às bruxas), Cláudio Camargo (Seitas
contemporâneas); Maria Luiza Tucci Carneiro (Ku Klux Klan/Racismo
nazista/Neonazismo); Marco Mondaini (Expurgos stalinistas/Ação
camicase/Macartismo/Revolução cultural maoísta/Terrorismo
político); Carlos Alberto Pimenta (Hooligans/Torcidas organizadas).
A obra chega às livrarias dois ou três meses depois
de Práticas de cidadania, dos mesmos organizadores e no mesmo
sistema de colaboração, que teve ampla repercussão
nacional, precedido por sua vez, em 2003, por História da
cidadania.
Pinsky, um sorocabano com doutorado e livre-docência na USP
e professor aposentado da Unicamp, afirma que ser historiador é
conhecer os processos históricos para entender o presente.
E não se refere apenas ao presente econômico e político,
refere-se também ao presente social e cultural. Ser historiador,
segundo o professor, é chamar a atenção das
pessoas para o fato de elas serem detentoras de um patrimônio
cultural inestimável. É lastimar o fato de muita gente
se esquecer que fazemos parte da espécie humana. Significa
também conhecer Beethoven, Mozart, os filósofos gregos...
Pois o historiador não lida apenas com as grandes guerras
e com os grandes fatos políticos; lida com a cultura.
Um dia, conta Pinsky, perguntaram-lhe qual era, na sua opinião,
a maior figura do século 20. Respondeu, para espanto dos
interlocutores, que considerava Albert Sabin esse homem. Por quê?
Porque ajudou a acabar com a poliomielite sou da geração
em que muitas crianças iam à escola com paralisia
e teve a delicadeza de lembrar que as crianças não
gostam de tomar injeção, por isso inventou as gotinhas
(sem mencionar que Sabin teve a sensibilidade de se casar com uma
brasileira).
Pinsky trabalha com cidadania, preconceito, fanatismo, temas do
século 20. Mas confessa que só se sentiu qualificado
para falar de seu tempo depois de estudar profundamente a Antiguidade
e a Idade Média. Considera grave defeito de jovens historiadores,
principalmente alunos, imaginar que a história começa
no século 20. Pensando assim, perdem a perspectiva e uma
das coisas mais importantes que nos diferencia dos outros animais:
a cultura. O professor concorda que a cidadania, entendida como
o conjunto de ações praticadas por organizações
não-governamentais, ambientalistas, combatentes da corrupção
em órgãos públicos, defensores da inclusão
social de minorias e até representantes de uma corrente avançada
da Igreja, é uma conquista relativamente recente dos brasileiros.
Define melhor: cidadania é um conjunto de direitos sociais
e políticos e não existe sem democracia, embora esta
seja uma condição necessária, mas não
suficiente. Só de pouco tempo para cá, acrescenta,
as pessoas começaram a verificar que instituições
civis e empresas podem realizar trabalhos a favor da cidadania.
É a sociedade suprindo as carências do governo. E é
o que mostra o livro Práticas de cidadania, escrito a 50
mãos. Mãos de empresários, jornalistas, professores,
educadores e até gente da alta sociedade com preocupações
sociais.
Segundo Pinsky, no tempo do wellfare state, antes mesmo da Guerra
Fria que opôs a União Soviética ao Ocidente,
o mundo capitalista tinha leis favoráveis ao trabalhador
e ao pobre. Mas, quando acabou a concorrência soviética,
o neoliberalismo veio com tudo e hoje em dia quer acabar com todas
as conquistas sociais, como aposentadoria e salário-desemprego.
O que vai acontecer com as pessoas reais, de carne e osso, se organizações
civis, ONGs e empresas não atuarem supletivamente?
Hooligans transformam ruas em campos de guerra
quando entram em confronto com a polícia
Quatro
blocos
Pinsky e Carla (historiadora, mestre pela USP e doutora pela Unicamp)
consideraram importante mostrar as várias faces do fanatismo
que se manifesta ao longo da história. Embora o nome tenha
surgido apenas no final do século 18, é certo que
há manifestações de fanatismo muito antes desse
período. Por isso mesmo, Faces do fanatismo tem capítulos
que vão das Cruzadas às torcidas organizadas de times
de futebol. Mas fanatismos podem ter interpretações
diferentes, dependendo de quem os pratica ou quem os sofre. Assim,
as Cruzadas podem ser manifestações de fé para
os cristãos, mas são fanatismo para muçulmanos.
Do mesmo modo, ações de fundamentalistas podem ser
manifestações de fé para muçulmanos
e de fanatismo para os cristãos.
Dos quatro blocos em que o livro se divide, o último, sobre
fanatismo esportivo, com certeza vai interessar muito particularmente
à sociedade brasileira.
Depois de reafirmar que fanatismo é manifestação
de grupos que se consideram detentores de uma verdade e que ela
deve prevalecer nem que seja à custa da vida do outro, Pinsky
analisa o torcedor fanático: um indivíduo que se diz,
por exemplo, torcedor do Corinthians tem absoluta convicção
de que aquele que não é suficientemente corintiano
não serve para nada. Os próprios hinos que cantam
significam morte ao outro. O outro não é adversário,
mas inimigo. É fanatismo como o foram também a Revolução
Cultural maoísta, a limpeza que Stálin fez contra
seus adversários políticos e o macartismo (quase não
sobrou ator que prestasse em Hollywood).
Não são poucos os paulistanos que já testemunharam
cenas de vandalismo exibidas por torcidas organizadas, quando a
violência não se limita a atingir o torcedor do time
contrário, mas investe contra bens públicos e contra
os ônibus que os transportam. No livro, o tema do fanatismo
esportivo está a cargo de Carlos Pimenta e ele tenta explicar
mais esse aspecto. Nota que há um descolamento do motivo
que presidiu a formação da torcida organizada
incentivar o clube do coração e se cria um
grupo de solidariedade que se autoprotege e luta contra um inimigo
imaginário comum que em muitos casos parece ser toda
a sociedade. Uma revolta gratuita, segundo Pinsky. No caso dos hooligans
ingleses, a violência e o fanatismo saem do campo de futebol
e se projetam contra os imigrantes, os negros, os homossexuais,
as prostitutas e as mulheres em geral. Para entendê-los, haja
psicologia.
Depois de garantir que dará um período de descanso
para a imprensa (que analisa suas obras), Pinsky promete voltar
com novo livro, mas isso vai demorar. Será sobre teoria da
história. E aproveita para fazer alguns esclarecimentos:
ele e seus colaboradores estão sempre preocupados em dar
resposta a problemas contemporâneos. Mesmo quando falo
das Cruzadas ou das bruxas, retrato-as com perplexidade, perguntando
qual o sentido disso. O processo histórico ajuda a entender
os fatos de hoje.
O outro esclarecimento tem sentido de advertência: cuidado
para não misturar alhos com bugalhos. Ao longo dos séculos
19 e 20, o mundo ocidental cometeu atrocidades enormes na África
e na Ásia. Isso provocou a culpa do homem ocidental
na Índia, na China e na África. Em nome da culpa,
muita gente começou a perdoar qualquer atrocidade cometida
por indianos, chineses ou africanos. Faces do fanatismo recoloca
as coisas no seu lugar. Mostra que, se de um lado entendemos, por
exemplo, a ação dos radicais muçulmanos, por
outro não a justificamos. Compreender o processo não
significa justificá-lo. Na história, os meios decididamente
não justificam os fins. Assassinar crianças como na
escola russa próxima da Chechênia, estourar bombas
em cafés, explodir aviões... não há
como justificar. Não podemos perder aquilo que tão
duramente construímos ao longo de milênios. Cada ação
anticivilizatória desumaniza toda a espécie humana.
Corpos
de mulheres e crianças israelenses após explosão
de um ônibus por terroristas
Um
fanático
Jaime Pinski alfabetizou-se antes de completar cinco anos de idade,
fazendo-se de papagaio de pirata nas leituras de sua irmã,
em Sorocaba. Desde então é um fanático... pelo
livro. Depois vieram o Colégio Porto Seguro, o Colégio
do Estado, a Faculdade de Filosofia na própria cidade (embora
preferisse fazer Sociologia na USP com o professor Florestan Fernandes),
aulas em faculdade de Assis (a Coimbra do Sertão,
hoje Unesp), o doutorado em História na USP (com orientação
do professor Eurípides Simões de Paula), aulas no
Departamento de História e História Judaica, nas Letras,
também na USP, durante seis anos, e aulas na Unicamp a convite
do professor Zeferino Vaz, até a aposentadoria. Ditos assim
friamente, esses lances biográficos pouco dizem; para entender
melhor o professor e sua carreira acadêmica e editorial é
preciso ouvi-lo falar. De professores, de alunos, da história.
Com entusiasmo.
Pinsky também foi e é editor. Com o sociólogo
José de Souza Martins fundou, com as bênçãos
e advertências de Florestan Fernandes, a revista Debate &
Crítica, que marcou fortemente os tempos de chumbo dos intelectuais
brasileiros, até fechar por não concordar com a censura
prévia dos militares. Logo depois, a revista reapareceu como
Contexto, também fechada quando os principais colaboradores
se dispersaram para cuidar de projetos próprios. Em Campinas,
Pinsky criou a Editora da Unicamp, uma bela experiência que
o levou a abrir a sua própria casa editorial, a Contexto.
Ideologicamente, quem é Pinsky? Sempre me considerei
socialista, mas prezo a liberdade, ele explica. Essa liberdade
permitiu-lhe colaborar em jornais e revistas politicamente opostos,
sem nunca perder a identidade, aprendendo a conviver com os extremos.
Fanatismo
e fanatismos
Trecho
da introdução de Faces do fanatismo
Fanático
por caipirinha. Fanático por samba. Fanático
por viagens. Há fanáticos para tudo. Ou melhor,
há fanáticos e fanáticos. O problema
é que, por ser empregada tão à vontade
(aliás, como tantas outras), a palavra fanatismo banalizou-se,
perdendo em força e conteúdo. Entretanto, parece
óbvio que um fanático por novela
é algo bem diferente (e bem menos perigoso) que um
nazista fanático.
Fanático é um termo cunhado no século
18 para denominar pessoas que seriam partidárias extremistas,
exaltadas e acríticas de uma causa religiosa ou política.
O grande perigo do fanático consiste exatamente na
certeza absoluta e incontestável que ele tem a respeito
de suas verdades. Detentor de uma verdade supostamente revelada
especialmente para ele pelo seu deus (portanto não
uma verdade qualquer, mas A Verdade), o fanático não
tem como aceitar discussões ou questionamentos racionais
com relação àquilo que apresenta como
sendo seu conhecimento: a origem divina de suas certezas não
permite que argumentos apresentados por simples mortais se
contraponham a elas: afinal, como colocar, lado a lado, dogmas
divinos e argumentos humanos?
Pode-se argumentar que as palavras de Hitler ou as de Mao
mobilizaram fanáticos tão convictos como os
religiosos e não tinham origem divina. Ora, de certa
forma, eles eram cultuados como deuses e suas palavras não
podiam ser objeto de contestação, do mesmo modo
que ocorre com qualquer conhecimento de origem dogmática.
É condição do fanático a irracionalidade.
Veja-se o que aconteceu com o povo alemão, por exemplo.
Acreditar que o mais imbecil dos arianos puros
pudesse ser superior a Einstein, como pregava a cartilha hitlerista,
não decorre de uma apreensão racional da realidade,
mas de uma verdade revelada pela propaganda nazista. Aceitar
e agir como se grandes cientistas e intelectuais, só
pelo fato de terem origem judaica, pudessem pertencer a uma
suposta raça inferior não é, decididamente,
uma abordagem racional e sim uma verdade revelada, da mesma
categoria, portanto, das verdades religiosas. Um dogma de
fé.
Este livro apresentou alguns desafios, dos quais estávamos
bastante cientes: 1) evitar o anacronismo, não transpondo
conceitos de uma época para outras, principalmente
anteriores. Ora, se o fanatismo é um conceito da era
moderna, como transpô-lo para a Idade Média,
por exemplo? 2) Como julgar os atores históricos a
partir de um olhar de hoje? Será que a Inquisição,
por exemplo, não foi fruto do seu tempo, apenas? 3)
Como julgar os atores históricos a partir de nossa
ótica ocidental? Não somos suspeitos?
Ora, os atores deste livro não são réus
sentenciados e os autores não se dispuseram a fazer
um julgamento. Os historiadores, sociólogos e jornalistas,
que escreveram esta obra, são pesquisadores consagrados
em sua área de atuação e construíram
sua credibilidade com anos de trabalhos de alto nível.
Ao aceitar nosso convite trataram de traduzir um conhecimento
arduamente adquirido, colocando-o ao alcance do leitor não
especializado, mas disposto a desvendar importantes questões
contemporâneas. Assim, a ampliação histórica
do conceito de fanatismo encontra-se devidamente explicada
em cada texto, justificando-se amplamente, exatamente porque
adquire historicidade. Da mesma forma, como se diz e se repete
em nosso meio, não há história que não
seja história contemporânea. Isso não
quer dizer, é claro, que se deve estudar apenas os
acontecimentos ocorridos após a Revolução
Francesa, mas que o olhar que despejamos sobre o acontecido
é, necessariamente, o de alguém que vive numa
determinada época, em um determinado lugar, e é
fruto das contingências decorrentes dessas determinações.
História não é, evidentemente, apenas
o que ocorreu, mas a forma como nós percebemos aquilo
que ocorreu. O que não significa, é claro, que
tenhamos aberto mão de uma cuidadosa investigação
histórica, e de uma busca de isenção.
Aqui o leitor não vai encontrar truísmos, ou
opiniões superficiais dos que percebem o fanatismo
apenas no outro, reservando para si o direito
de ser politicamente convicto, de ter fé
profunda, ou de torcer para o único time
decente de futebol.
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