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H
á uma grita uníssona entre conselhos de psicologia, enfermagem, fonoaudiologia, radiologia, odontologia e outros: todos contra o projeto de lei nº 25, de 2002, já conhecido como o “projeto do ato médico”, que tramita na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado para discussão de mérito. Basicamente, o texto define o ato médico e dá outras providências. Para seus defensores – majoritariamente médicos –, a iniciativa nada mais é do que uma regulamentação tardia e necessária da atuação da medicina, com efeitos positivos para a população. Aprovada, a lei daria, por exemplo, base legal para inibir a atuação de não-médicos em funções consideradas privativas da própria medicina. As vozes contrárias – capitaneadas por onze conselhos de classes da saúde – consideram o projeto um retrocesso porque, na prática, transformaria as demais profissões em “ramos inferiores” da medicina que, por sua vez, passaria a ser “hegemônica”.

“Imagine o seguinte: se você quer apenas melhorar a sua dicção, vai ter que passar por um médico, que fará o diagnóstico e determinará o número de seções fonoaudiológicas. Só então você irá até um profissional de fonoaudiologia, que deverá cumprir o que o médico determinou. Depois, só o próprio médico poderá dar alta. Ou seja: todas as profissões da saúde vão virar especialidades da medicina. Será, portanto, que também faremos parte do Conselho Federal de Medicina?”, provoca a presidente do Conselho Federal de Fonoaudiologia e especialista em Motricidade Oral, Maria Thereza Mendonça Carneiro de Rezende. Ela diz “respeitar” a preocupação dos médicos com a regulamentação da profissão, mas frisa que “o grande problema” é que “a medicina não dá conta, na sua formação, de todas as áreas”.

Ricardo Moretzsohn, presidente do Conselho Federal de Psicologia e coordenador da comissão nacional contra o projeto de lei do ato médico, detalha que “esse risco de invasão médica” existe por um motivo “simples e explícito”: “O projeto determina que são atos privativos de médicos o diagnóstico e a prescrição terapêutica das doenças. Então, um proctologista (cirurgião treinado para tratar doenças digestivas e do reto) poderá indicar tratamento fonoaudiológico?”, questiona. “Na saúde pública, especialmente, trata-se de um retrocesso terrível porque o Sistema Único de Saúde (SUS) é multidisciplinar, sem a hegemonia de nenhuma profissão em relação a outras”, diz.

Moretzsohn observa que o texto em tramitação no Senado já sofreu algumas alterações, mas manteve a “ideologia hierárquica” inicial. “Até agora, todos os relatores do projeto foram senadores médicos e isso precisa mudar daqui por diante”, pontua. “Estamos nos opondo não à corporação médica, mas a uma concepção retrógrada defendida por uma minoria da medicina e que se pauta apenas pela lógica da reserva de mercado de trabalho.”

O Conselho Federal de Medicina rebate as críticas em um site criado para defender o projeto. Em linhas gerais, argumenta que a regulamentação do ato médico será positiva para a sociedade por assegurar a presença do profissional de medicina nas instituições de saúde. Segundo o conselho, alguns gestores, “associados a alguns maus profissionais que praticam ilegalmente a medicina”, é que se posicionam “ferozmente contra o projeto” porque o texto “define que diagnosticar e indicar tratamento de doenças são atividades exclusivas do médico e isso põe em cheque essa estrutura”. “Estão deturpando a lógica do projeto em nome da economia de gastos, fazendo uma “medicina de pobre para pobre”.

“Nada de terrível”

O coordenador da comissão nacional em defesa do ato médico, Mauro Brandão, explica que “excluir o médico da assistência traz economia para os gestores e risco para os usuários” e que “é nesse contexto que a questão deve ser avaliada”. Ele observa, ainda, que “o médico atua em todas as etapas da assistência, da prevenção à reabilitação” e concorda, conforme consta do projeto, que “só médico pode dirigir serviços onde se praticam atos médicos”. “Ou seja, mesmo que a direção administrativa seja não-médica, tem que ter um médico exercendo a direção técnica, e a ele os médicos se reportam para tratar de assuntos médicos.” Brandão conclui que “não há nada de terrível” sobre o tema e pontua que o projeto não cerceia a atividade de nenhuma outra profissão. Para saber mais sobre o assunto, basta acessar dois sites criados para defender e reprovar a iniciativa: www.atomedico.org.br e www.naoaoatomedico.com.br.

 

Em Bauru, colegas divergem sobre projeto

Na última semana de setembro, um abaixo-assinado com mais de 500 nomes saiu do campus da USP de Bauru, endereçado ao Congresso Nacional. São dentistas, fonoaudiólogos, enfermeiros e outros profissionais de saúde que se posicionam contra o projeto do ato médico. No Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP, o popular Centrinho, que funciona no mesmo campus, dois colegas médicos, reconhecidos em suas áreas pela capacidade de liderança e consciência crítica, discordam sobre o assunto. Abaixo, a opinião de ambos.
Luiz Fernando Ribeiro, diretor clínico do Centrinho: “Não concordo com os outros conselhos federais. Não há a alegada invasão sobre outras áreas, apenas uma clara definição da competência dos médicos. O projeto de lei suplementar deixa perfeitamente claro onde a exclusividade de atuação do médico é exercida: atos que envolvem o diagnóstico de doenças e as indicações terapêuticas, atributos que têm no médico o único profissional habilitado e preparado para exercê-los, além dos odontólogos em sua área de atuação (essas informações são do próprio Conselho Federal de Medicina). A prevenção primária (promoção e prevenção da saúde) e a prevenção terciária (prevenção da invalidez ou reabilitação dos enfermos) são compartilhadas claramente com outras especialidades.

Só vejo vantagens. As distorções que hoje observamos, com indicações terapêuticas por quem não realizou um curso universitário, são definidoras desse diagnóstico. Até pouco tempo atrás, obtinha-se o uso de antibióticos em farmácias, sem prescrição médica. Hoje, isso não mais ocorre. E quem foi beneficiado com essa medida foi o paciente. Entendo que o profissional de saúde consciente não será abalado, pois se ler com atenção o projeto de lei suplementar verá, com clareza, não haver arrogância, corporativismo, egoísmo ou qualquer outro sentimento negativo. É a definição de competências que é estabelecida, a exemplo do que cada conselho faz”.

Antônio Richieri-Costa, neurologista e geneticista do Centrinho: “A palavra ‘ato’, para qualquer pessoa acima de 40 anos, nos remete aos anos de chumbo da ditadura militar, quando vários atos nos roubaram boa parte de nossos direitos, criaram um sem-número de viúvas, outro tanto de órfãos. Hoje, dentro de uma democracia anárquico-arbitrária, uma classe se volta contra outras, mostrando mais uma vez as garras do autoritarismo. Devemos lembrar que os crimes ocultos pela ditadura através de laudos fraudulentos nos porões do IML foram atos médicos, dos quais muitos caíram no esquecimento.

O conhecimento e a ciência são dinâmicos e nas últimas quatro décadas mostraram avanço sem precedentes. Hoje, é impossível determinar qual ciência ou área de conhecimento detém a soberania sobre o alvo do conhecimento ou do motivo de estudo. Supor que os átomos e as moléculas humanas são pertinentes ao domínio da área médica, por serem a matéria-prima dos elementos mais básicos da constituição do Homo sapiens, é no mínimo pueril. É vergonhoso como o conhecimento diferenciado de algumas especialidades complexas ou bem definidas tem sido explorado como subproduto por alguns profissionais, com a alegação que constituem atos médicos. Finalmente, penso que o momento é de reflexão e nada melhor do que apagar a pira, descer do Olimpo, iniciar uma convivência harmônica com os demais mortais sem visar a vantagens predatórias”.

 

 

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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