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O ateliê de Wesley Duke Lee, que o artista chama de "Transatlântico": a caixa de giz como obra de arte


A
arte, como o sertão de Guimarães Rosa, está em toda parte. Na forma mais acabada, encontra-se nas telas, nos painéis, nas esculturas. Mas, em estado ainda difuso, informe, necessitando de uma síntese de que só um observador criativo é capaz, esconde-se no mundo das tintas, dos pincéis, dos esboços, onde os artistas trabalham e tecem idéias. Os ateliês dos artistas são a arte primeira, de onde vão nascendo e se espalhando as obras-primas. Mais que isso: a própria vida do artista, o seu dia-a-dia, a sua visão do homem e da natureza, sua preocupação com o outro, às vezes suas excentricidades, é arte. A arte de ser e viver.

Se o leitor concordar, agora mesmo terá um exemplo das três modalidades de arte. Estão claríssimas na obra Ateliês Brasil – Artistas contemporâneos na cidade de São Paulo, em que a fotografia e o texto dos jornalistas Bruno Giovannetti e Leila Kiyomura se completam tão perfeitamente que dá vontade de anunciar uma quarta dimensão da arte: a arte de ver a arte. Lançamento da Empresa das Artes, projeto realizado através da Lei de Incentivo à Cultura e patrocínio da Real Seguros e Banco Real, chega em forma de homenagem aos 450 anos da cidade de São Paulo, mostrando como a vêem e retratam dez dos mais conhecidos artistas nacionais (de nascença ou de adoção): Antonio Henrique Amaral, Maria Bonomi, Tikashi Fukushima, Arcângelo Ianelli, Evandro Carlos Jardim, Wesley Duke Lee, Aldemir Martins, Tomie Ohtake, Amélia Toledo e Cláudio Tozzi.



Ianelli e sua esposa Dirce


Os leitores vão se deparar com detalhes mínimos que levam à essência da vida e da arte. Coisas pequeninas que se perdem na rotina, como o bule ou a xícara de café que sai da mesa para tornar ainda mais singela a gravura de Evandro Carlos Jardim. Obras quase invisíveis como a bancada de trabalho de Aldemir Martins, com as tintas de inúmeros quadros. Ou ainda a caixinha de giz de todas as cores de Wesley Duke Lee, que, sob o olhar dos autores, ganha o status de obra de arte.
Segundo Leila – que é repórter do Jornal da USP –, o livro é um mergulho em dez diferentes mundos. Mundos que tornam a cidade de São Paulo muito mais humana, sensível e bonita.

 


o ateliê do mestre Fukushima : em toda parte, um pouco do artista

Rapadura

A originalidade da obra está em mostrar onde e como os artistas trabalham. “Alguns vieram de outros países, de outros Estados”, diz o texto de apresentação, “e escolheram São Paulo como sede de vida, mostrando com orgulho sinais das próprias raízes esboçadas na rapadura ao lado dos pincéis ou no origami sobre a mesa.” A rapadura com certeza está na mesa de trabalho de Aldemir Martins, que fez do ateliê no Sumaré uma representação do sertão nordestino, com cangaceiros, mulheres rendeiras, pássaros de todas as cores; mas com alguns acréscimos universais, como o altar budista onde às vezes um monge reza em meio a aromas de incenso, para quem não tem religião e só acredita no bem (um altar, xintoísta, aparece também e com mais naturalidade na mesa de Fukushima). O origami (e o ikebana) só pode ser referência à poesia de Tomie Ohtake, que aos 90 anos de idade acorda às 5 horas, às 6 lê jornais, às 8 toma café e às 9 está no ateliê em Campo Belo, pintando ao som de Beethoven, Vivaldi, bossa nova ou do silêncio: “Quando pinto não consigo ouvir nada”. A qualquer hora pode receber visitas e a qualquer hora pode pedir que se retirem: “Eu me autorizo a fazer tudo”, diz, embora em outro contexto.

 


Maria Bonomi: "Macacão branco manchado de tinta, sapatilhas pretas, cabelos grisalhos, lisos, caindo na testa"



Se a música inspira pintores, a poesia acompanha alguns deles. Sobre a mesa de trabalho de Antonio Henrique Amaral há dezenas de pastas com crônicas e poemas. “Eu sempre gostei de escrever, desde adolescente”, conta. “Só que escrevia para mim. Agora, relendo estas coisas, redescubro as expectativas que tinha do mundo, das pessoas, do fazer artístico.” Um dos fragmentos guardados diz, mesclando teoria de arte e inspiração: “Refletirei seriamente sobre a minha pintura e a entidade cultural que eventualmente eu seja e planejarei como eliminar todas estas estruturas passadas, estes quadros pintados, inanimados. E minhas dúvidas e medos ficarão em meio da roda e eu dançarei em volta deles com gente com os mesmos medos e dúvidas”.

E o que significam estes versos encontrados nos papéis de Fukushima: Haru ga kita/ Haru ga kita/ Doko ni kita/ Yama ni kita/ Sato ni kita? Significam: “A primavera chegou. A primavera chegou. Onde chegou? Chegou nas montanhas. E nos campos também”. As cores da primavera bem brasileira significam igualmente que o pintor decidiu usar essas tonalidades nas paisagens de suas telas.
Se não faz versos, Amélia Toledo encontra poesia nas pedras. “Muitos dos meus trabalhos estimulam o tato”, informa. Suas obras e seu ateliê na rua Miranda Guerra têm pedras de todas as cores, tamanhos e formas. Sodalitas-azuis, mangano-calcita, bronzitas que parecem refletir gravuras japonesas. Até no sofá tem pedras e o visitante é convidado a acariciá-las para captar a energia boa. Deve ser por isso que a artista também trabalha com jóias artesanais. E a música, para ela, não é só para ouvir. É para trabalhar dançando com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Luiz Gonzaga. Soltar as pernas, os braços, a imaginação e dar vida ao movimento do pincel.


O ambiente de trabalho de Evandro Carlos Jardim: o bule de café sai da mesa para tornar sua gravura ainda mais singela


Os outros

Artista que é artista é mão aberta. Gosta de transmitir o seu entusiasmo aos jovens e trabalhar com universitários e multidões. Vários são professores da USP. Perceba esta cena nas palavras de Leila: “15 de abril de 2004 – Macacão branco manchado de tinta, sapatilhas pretas, cabelos grisalhos, lisos, caindo na testa... Maria Bonomi entra no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo junto de uma equipe de jovens artistas, estudantes, vestidos como ela, de branco, rebocando a sua casa-ateliê no Morumbi para transformar a oficina do MAC no ateliê de todos nós. Para contar a história de todos nós...”. Os estudantes da USP nunca tinham visto nada igual: uma artista partilhando com eles a maior obra de sua trajetória. Porque assim nasceu Epopéia Paulista – painel com 73 metros de comprimento e 3 metros de altura –, na Estação da Luz, “que remexe no baú da memória de todos os que ali desembarcam para construir a sua história e a da cidade”.

 


Cláudio Tozzi : detalhes que revelam a essência da arte



Ianelli (80 anos) não fica atrás. Adorou o dia em que recebeu no ateliê um grupo de crianças e uma delas perguntou: “Nossa! E o senhor ainda está vivo?”. Sim, ainda vive e acha 80 anos insuficientes: “Uma vida é muito pouco. Para ser artista precisaria mesmo de três vidas. Uma só para estudar e pesquisar; outra para exercitar o aprendizado; e a terceira para realizar”. Evandro Carlos Jardim dá aulas na USP desde 1972 e atua ou atuou em outras universidades, compartilhando o estímulo recebido na Escola de Belas Artes, onde ingressou em 1953. Jovens também são bem-vindos no “Transatlântico” de Duke Lee (é assim que ele chama o seu ateliê da rua Augusta). Desde a década de 60 para lá se dirigiam com suas obras artistas novos como Claudio Tozzi e Luiz Paulo Baravelli, hoje famosos como o mestre. Mas atenção: num lugar ninguém está autorizado a tocar, nem o vento: na mesa onde há mais de 30 anos Lee amontoa coisas que vai ganhando ou recolhendo no dia-a-dia: garrafas, isqueiros, vidros coloridos, moedas, carimbos, cachimbos, flores secas, funis... “Essa mesa é uma obra de arte. Não convencional, mas é”, avisa. Também Evandro Jardim tem uma mesa especial, uma bancada de peroba, robusta, prática, sépia, onde trabalha há 50 anos. Nessa se mexe todos os dias.


Amélia Toledo: pedras de todas
as cores, até sobre o sofá
Aldemir Martins



Mas cadê as mulheres? Não entram nessa história? Entram e em alguns casos mandam e desmandam. A de Fukushima se chama Ai e, com paciência e dinamismo, foi o suporte para a criatividade do artista. Cuidou da casa, dos filhos, da imagem do marido – da escolha das roupas à recepção dos amigos –, da vida financeira. E sem reclamar: “A vida era tão corrida e tudo estava tão na minha rotina que nunca senti peso algum”. Nem Dirce, mulher de Ianelli, tem queixas. Cuida da agenda e das contas e dispõe tudo no seu devido lugar. E note que o artista tem no Paraíso um mundo à parte: doze casas antigas com jardins e espécies de mata atlântica, caminhos cheios de réplicas de estátuas renascentistas e corredores lotados de obras em mármore branco. No seu ateliê, o trabalho de arte se confunde com o lazer e dá fama ao artista, bem ao contrário do que supunha um tio de Ianelli, no início da carreira do sobrinho: “Você está pensando em sobreviver com isso? Eu não queria esses quadros nem de graça”. Cora, mulher de Aldemir Martins, fez mais que ordenar a vida doméstica. Acompanhou a execução do projeto do ateliê, onde os galos, os pássaros, os gatos, as frutas, os cangaceiros só entraram depois de tudo pronto.

Pronto. Como nas resenhas de filmes e peças de teatro, em que não se deve revelar o desfecho, o principal do livro de Leila e de Giovannetti precisa ser descoberto pelo leitor. Será bom para os olhos e para a mente.



Tomie Ohtake: pinturas ao som de Beethoven e Vivaldi


Ateliês Brasil – Artistas contemporâneos na cidade de São Paulo, de Bruno Giovannetti e Leila Kiyomura, Empresa das Artes, 170 páginas, R$ 99,00. As fotografias do livro estão reproduzidas numa exposição aberta para o público na Estação Paraíso do Metrô.

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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