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Não basta reforma universitária; o Brasil precisa de reforma do ensino superior. Segundo a professora Eunice Durham, diretora do Núcleo de Pesquisa sobre Ensino Superior (Nupes) da USP, são coisas diferentes, porque o ensino superior não se limita às universidades. Esse ponto de vista foi exposto por Eunice em encontro no Anfiteatro Camargo Guarnieri, sábado (23), promovido pelos alunos dos PETs (Programa Especial de Treinamento do Ministério da Educação, ou educação tutorial, uma vez que esses estudantes são orientados por tutores) de várias unidades da USP, com o propósito de discutir a reforma (com estes itens: por que reformar? autonomia pedagógico-científica e financiamento, questionamento ao governo).

Também participaram dos debates os professores Ênnio Candotti, presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência); Afrânio Catani, da Faculdade de Educação da USP; Guilherme Ari Plonski, da Fundação Carlos Alberto Vanzolini da Escola Politécnica; Ricardo Musse, do Fórum de Políticas Públicas da USP; Vahan Agopyan, da Fapesp e diretor da Poli; Gilmar Luís Costa, do Diretório Central de Estudantes (DCE); Wolfgang Leo Maar, da Universidade Federal de São Carlos; Otaviano Helene, do Instituto de Física e ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep/MEC); e Fernando Haddad, secretário executivo do MEC. Na abertura do encontro, a pró-reitora de Graduação, Sonia Penin, disse que a reforma do ensino superior é uma preocupação mundial e no Brasil ganha importância em razão do aumento geométrico da demanda e também da necessidade de criar mais vagas, em especial em período noturno, e de bolsas. Na década de 90, disse a professora, o País tinha 1 milhão e meio de universitários, saltou para 3 milhões e agora já são 3 milhões e 800 mil. A maior procura não se deveu a jovens entre 18 e 24 anos (faixa etária que caiu de 13% para 9%). O aumento é explicado pela procura por parte de pessoas com mais idade.

 
Eunice Durham e Afrânio Catani: o ensino superior é muito mais amplo  


Ao defender uma reforma de todo o sistema de ensino superior, Eunice afirmou que, até hoje, as reformas têm sido organizadas por um conjunto de universidades federais e em função delas. “O resto do sistema tem que se adaptar a isso, o que traz distorções graves. Em nenhuma democracia do mundo o ensino superior se reduz à universidade. Quanto mais democrático o acesso ao ensino superior, mais diversificado é o sistema.” Isto acontece, segundo a professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, porque temos um desenvolvimento muito típico do pós-guerra (39-45). Quando os sistemas foram pensados (fora do Brasil) em termos de universidade, havia um público interessado muito restrito.

Constituía-se de estudantes que seguiam um tipo especial de ensino secundário, de excelente qualidade e que se submetiam a exame extremamente severo para entrar na universidade. Na França, o Liceu tinha qualidade superior à maioria das nossas universidades atuais. No Brasil ocorria fenômeno semelhante. O colegial, hoje ensino médio, era para uma porcentagem mínima da população – a maioria mal terminava os 4 anos iniciais do ensino. À medida que esse sistema se ampliava, houve maior heterogeneidade, em razão da demanda diferenciada. Os poucos alunos que estudavam, por exemplo, no Colégio Roosevelt, ou outros da mesma categoria, eram alunos que hoje se imagina devam ser os calouros da USP. Mas não é mais assim. Boa parte dos que terminam o ensino médio não tem condições mínimas de freqüentar a universidade como a que pensamos (nisso concorda o professor Catani). E não se trata de um problema apenas de informação básica (saber onde fica a Europa, quantos continentes existem, e coisas assim), mas de ausência de competências fundamentais, que necessariamente têm que ser adquiridas antes do ingresso no ensino superior. Entre outras, competência de leitura. Segundo Eunice, isso ocorre até na USP: alguns alunos são incapazes de ir além de três páginas de um livro.

 
Os participantes do seminário, na Cidade Universitária: o Brasil ainda não sabe lidar com suas riquezas  

“Então, como pensar em pesquisa sem pensar antes num mínimo de preparação necessária; na capacidade de lidar com números (fazer contas) e entender um texto?”. Por aí, a professora conclui que o País precisa ter diferentes instituições, adequadas à formação anterior dos alunos. Há 150 anos, os Estados Unidos fizeram a sua grande reforma: ampliaram o acesso ao ensino médio e criaram numerosos colégios comunitários para atender a uma população localizada, que não podia se deslocar todo dia e não podia estudar em tempo integral porque trabalhava. Criaram também cursos de suplementação da formação básica. As universidades continuam a ser em número pequeno nos EUA: mais de 70% da população jovem está em instituições que dão cursos de ensino superior de dois ou três anos de duração. Coisa parecida ocorre no Brasil, diz Eunice. O índice de evasão é altíssimo (embora na USP tenha diminuído significativamente). Na média 50% abandonam a universidade. Isto quer dizer que pelo menos a metade dos alunos faz dois ou três anos de curso, sai e não leva nada. Começam cursos inadequados que não conseguem acompanhar, ou desistem deles porque não correspondem às expectativas iniciais. “Daí porque”, acrescenta Eunice, “temos que pensar, não em reforma da universidade, mas do sistema de ensino superior”. Fora disso, a reforma não passará de remendo.

Mais ainda: para reformular o sistema, há que se pensar em ensino público e em ensino privado. Quando se aprovou na Constituição a autonomia universitária, ninguém pensou no resultado disso nas universidades privadas. “E foi um desastre”, segundo a diretora do Nupes. De um dia para outro, universidades particulares aumentaram as vagas em alguns cursos de 100 para 500, logicamente sem custos adicionais, pois não se preocuparam em equipar laboratórios, contratar mais e melhores professores, e com outras providências para melhorar a qualidade do ensino. Nesse ritmo, sobram vagas, porque custos altos afastam parte dos candidatos e nem todos os que querem estudar aceitam entrar em universidade mal qualificada. Conclusão: a autonomia sem algum controle público derruba a qualidade do ensino.

Eunice Durham insiste em apontar a existência de outros estabelecimentos de ensino, com qualidade, que deveriam ser levados em conta por quem discute a reforma. Há 782 escolas isoladas, 88 faculdades integradas, escolas técnicas excelentes e cursos do tipo Sesi-Sesc. Tudo isso recomenda a ampliação do ensino público e a criação de um sistema modular de ensino superior, que permita a passagem de um nível a outro, conforme as necessidades e a capacidade do aluno. O melhor exemplo desse modelo está na França. Ao lado desse sistema mais abrangente, a sociedade também precisa, segundo Eunice, de uma população pequena mas altissimamente qualificada. Como a que se forma nos cursos de pós-graduação da USP.

Um alerta da diretora do Nupes: enquanto os educadores discutem a reforma da univer sidade, o governo vai fazendo a sua em paralelo e por Medida Provisória. Foi assim que mudou o sistema de avaliação (o Provão), veio com o projeto Universidade para Todos e agora cria “demagogicamente” o sistema de cotas. Estabelece que o Brasil tem 45% de negros que precisam ser atendidos, sem nem levar em conta que na Bahia eles são 75% da população, e no Rio Grande do Sul, 15%.

 
Sonia, Candotti e Haddad: reflexões sobre os rumos da universidade no Brasil  

A propósito da autonomia, Fernando Haddad admitiu que representa um problema também para o governo. As universidades privadas criam cursos e ampliam vagas sem autorização do MEC e quando contestadas recorrem à Justiça e ganham liminares. O representante do MEC negou que o governo vá fazer convênios com instituições privadas que ministram ensino de má qualidade ou que não pagam impostos, alegando isenção por serem entidades sem fins lucrativos ou beneficentes. Pelo contrário, disse, o Estado fará um pacto com o setor que paga tributos a fim de que os que não pagam entrem no processo, deixando a caracterização de filantrópicas.


Termodinâmica

Ênnio Candotti disse que apresentaria alguns pontos para reflexão que acompanham suas romarias pelo Brasil afora, na qualidade de presidente da SBPC. Afirmou que há 15 anos esteve no Acre e lá se discutia a dificuldade de criar uma universidade, uma vez que não havia biblioteca. Não há universidade sem biblioteca. Passados esses anos, as famílias (nem todas) têm uma biblioteca em casa (o computador), e o problema da universidade do Estado continua no mesmo pé. Segundo ponto: muitos jovens são obrigados a escolher a carreira profissional aos 17/18 anos, ao entrar na universidade. As carreiras mudaram muito, mas as opções continuam sendo exigidas. Terceiro: “É óbvio para mim, que sou físico”, disse Candotti ironizando, “que é fundamental para qualquer pessoa conhecer a segunda lei da termodinâmica. É tão fundamental como saber conjugar um verbo. Ninguém pode viver sem conhecer a segunda lei da termodinâmica. Por outro lado, os literatos consideram um absurdo que eu não conheça todo o universo que está por trás do Grande sertão: veredas (João Guimarães Rosa). Nós não nos entendemos nem nos valores nem nos princípios de nossos conhecimentos”. E perguntou se era razoável dirigir a educação para um mundo em que não se conhece a segunda lei da termodinâmica nem os meandros do Grande Sertão: veredas. Ele mesmo respondeu, dizendo que é preciso preservar a possibilidade de diálogo, pondo em dúvida se a fragmentação da formação universitária seria uma necessidade ou herança histórica difícil de superar. “Nossa formação precisa ser especializada, ou poderia ser mais formativa?”. Segundo o professor, o próprio universo da formação varia muito. Alguns modelos de ensino dedicam a um curso 400 horas, outros mais que o dobro disso; alguns querem o aluno em sala de aula por longo tempo, outros preferem vê-lo pesquisando por conta própria e em lugar que desejar. Disse que é necessário refletir sobre a função da universidade e as formas e os meios que ela tem para desempenhar bem essa função (carreira, autonomia, formatação de cursos etc.). “A pergunta fundamental”, acrescentou, “é: ensinar a navegar pela Internet ou forçar o aluno a dominar um conjunto fixo de conhecimentos?”

Outro comentário do professor foi sobre as particularidades da Amazônia e sua gente – ele estava chegando de São Gabriel da Cachoeira, Alto do Rio Negro, onde se comemorou a Semana da Ciência. Disse que, ao contrário do resto do País, onde tudo é mais teórico, lá as pessoas, as festas, os mitos estão muito próximos da natureza. Conclusão: não conhecemos e não sabemos lidar com a metade do Brasil. A pilhagem das riquezas naturais corre solta; derruba-se a floresta para, no espaço de um hectare, colocar uma ou duas cabeças de gado. “A pilhagem reflete nossas relações com a natureza e as nossas dificuldades de lidar com essa grande área.” Como convencer um governador de que a cobertura vegetal pode ser mais valiosa do que a área que essa mata cobre? Como convencê-lo a preservar o verde, se ele também tem uma pergunta: como faço para pagar minhas dívidas? Este é um desafio para a universidade. E conhecer a realidade do Brasil é o ponto de partida para a solução.

Como a professora Eunice Durham (que falou depois dele), Candotti considera necessária uma educação básica (não um ciclo básico, que é outra coisa) antes da universidade, uma formação ampla por grandes áreas. Como fazer? Certamente não por meio de retalhos que formem uma colcha, mas de outra forma. Talvez seguindo o exemplo do próprio PET, que reúne alunos em grupos, tem dinâmica, interesse e tolerância de um com o outro.

Quanto à autonomia, Candotti entende que é fundamental no projeto de reforma universitária, mas prefere que ela se desenvolva não nos departamentos, mas num âmbito maior, como na França, onde os concursos, por exemplo, são nacionais, evitando as disputas internas. Se os recursos financeiros forem vinculados às universidades, como no caso paulista, Candotti teme que o repasse obedeça estritamente ao histórico dos últimos cinco anos de cada instituição, o que congelaria o sistema. As grandes ficariam sempre com a parte do leão. Segundo o professor, é preciso reservar parte dos recursos para projetos novos. Candotti também acha errado, “um suicídio”, dar autonomia ao Conselho Universitário. O desempenho com autonomia tem que ter acompanhamento da sociedade.

Idéias no banho

Afrânio Catani, depois de afirmar que o Brasil é o terceiro país, mas “de baixo para cima”, no ranking mundial da taxa bruta de escolarização, e de comentar a situação melhor do ensino superior na Argentina e no Chile, disse que no Brasil o governo tenta reformas atabalhoadas do ensino universitário. Segundo ele, Cristóvão Buarque, quando ministro da Educação, tinha excelentes idéias quando tomava banho e as revelava à imprensa, embora seus assessores de nada soubessem. Tarso Dutra, o ministro atual, é do tipo “deixa que eu chuto” e, com ajuda de Fernando Haddad, planeja a Universidade para Todos. Criticou também o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que autorizou as instituições privadas a aumentar suas vagas e criou os centros universitários, que agora levam na frente o nome “Uni”. “São essas universidades que estão aí e vão receber os alunos dos convênios.” Do mesmo modo que Eunice Durham, apontou a reforma universitária paralela do governo, que acaba sendo “fogo de traque” e uma farsa. E apontou um “absurdo”: a proposta oficial de, até 2005, criar 230 mil vagas. “Nem Mao Tse-tung foi capaz disso.”

 

 




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