Passadas
as primeiras semanas da divulgação do resultado das
eleições nos Estados Unidos, algumas explicações
têm sido levantadas, a maior parte de caráter altamente
polêmico, que pode induzir-nos a pensar que os eleitores norte-americanos,
mais do que optar por plataformas eleitorais, optaram entre dois
modelos civilizatórios: um conservador, com forte ênfase
nos valores religiosos, na tradição da família
heterogâmica e no valor da vida; e outro liberal, com forte
base na cidade, nos centros industriais, nos profissionais liberais,
no direito ao aborto e na união homossexual.
O resultado da eleição mostraria um claro triunfo
para o primeiro dos modelos. De repente, descobre-se que o Debate
revela o caráter conservador dos Estados Unidos (título
da Folha de S. Paulo de 7 de novembro de 2004) e que, nesta eleição,
votou-se por valores e não por plataformas de políticas
públicas internas e de segurança nacional ou por promessas
de continuidade ou descontinuidade de políticas externas.
Indo na direção desse raciocínio, o próximo
passo seria esperar que a classe política dos Estados Unidos,
sob a direção de George W. Bush, passe a globalizar
mesmo que ao preço da diplomacia das canhoneiras
o espírito mais conservador e puritano norte-americano.
Seriam saudosos os tempos de guerra do Kosovo, do Iraque e do Afeganistão,
em que os Estados Unidos ao menos exportavam sua visão de
democracia e de direitos humanos.
É bem verdade que, com o presidente Bush, um dos grupos que
saem mais fortalecidos no interior da administração
é o chamado grupo político dos conservadores. Esse
grupo terá mais quatro anos para tentar concretizar, através
de políticas públicas internas ou em política
externa, o paradigma conservador. Saem fortalecidos também
grupos ativistas da direita religiosa como o Maioria Moral. E é
também verdade que os eleitores latinos (ou hispanos, como
são classificados nos Estados Unidos) votaram desta vez mais
em Bush (46% contra 44% a favor do senador Kerry. Na eleição
anterior haviam votado 65% a favor de Al Gore contra 35% para Bush).
E é certo também que os Estados do sul e do oeste
dos Estados Unidos, de vocação mais agrícola,
de maior concentração de hispanos e de maior apego
aos valores cristãos tradicionais, votaram majoritariamente
em Bush. Os valores compartilhados por esses grupos de ativistas,
étnicos e sociogeográficos foram fundamentais para
o marketing político da equipe que dirigiu a campanha de
Bush e seus votos podem ter decidido a eleição.
Nesse dilema civilizatório que se vislumbraria a partir do
resultado das eleições nos Estados Unidos, o caso
dos hispânicos é ilustrativo. Tornou-se famosa, durante
quase toda a década de 90 e início deste milênio,
a teoria do professor Samuel Huntington de que o mundo bipolar da
guerra fria passava a ser substituído pelo choque de
civilizações. Nesse choque de civilizações,
a dinâmica do conflito estaria dada pelo confronto do Ocidente
contra o resto.
A julgar pelos comentários na mídia sobre a polarização
entre valores que decorrem do resultado das eleições,
poderíamos acreditar que um paradoxo que se revela é
que o choque de civilizações está
no próprio Ocidente, quer dizer, no interior da sociedade
norte-americana. De que outra maneira poderíamos julgar a
fervorosa declaração de um militante hispânico
conservador de que ambos os partidos precisam voltar ao passado
e compreender o caráter cristão da Constituição
e da Declaração de Independência dos Estados
Unidos (Folha de S. Paulo, 7 de novembro de 2004)?. Não
deixa de ser curiosa a aliança entre brancos e hispânicos
pró-Bush, considerado este último grupo étnico
de cultura política tradicional e autoritária um desafio
às instituições democráticas do país,
de acordo com o próprio Huntington. Parece que os hispânicos,
sobretudo os mexicanos do Novo México, Texas e Califórnia,
fizeram a sua vingança contra as teorias do professor Huntington.
No entanto, sem negar o impacto das crenças na decisão,
nem todos os comportamentos parecem orientados por valores. No caso
da maioria hispânica que votou em Bush, o populismo do presidente
reeleito acenou com uma lei federal que tenda a melhorar as condições
de permanência legal e de trabalho nos Estados Unidos. São
os mais novos clientes do mercado político norte-americano
e vão cobrar o equivalente pelo benefício que ofertaram,
assim como o farão outros clientes já consolidados,
como a direita religiosa, que, em reciprocidade, espera uma Corte
de Justiça Federal com perfil mais conservador e uma emenda
federal que limite o casamento a homens e mulheres. Nesse mercado
político que pressionará os próximos quatro
anos da presidência de Bush, pode sobrar até para a
Alca (Aliança de Livre Comércio das Américas),
porque os setores agrícolas do oeste e do sul dos Estados
Unidos vão pressionar por medidas protecionistas. De tal
maneira que, sem negar o papel das crenças na formação
das preferências, a lógica da racionalidade instrumental
de benefícios materiais e institucionais ajudou a definir
bastante o andamento da política americana nos próximos
anos.
Por outro lado, se admitimos que a eleição foi feita
em torno de valores e não de programas políticos,
não estaríamos condenando o povo dos Estados Unidos
ao irracionalismo político? Qual seria a diferença
essencial entre o irracionalismo da direita européia dos
anos 30, cujas bases políticas participavam em parte motivadas
por valores, e a base política da direita do Partido Republicano?
Certamente as crenças, sobretudo as religiosas, são
importantes na sociedade norte-americana, porque associadas a um
tipo particular de liberdade, como já sabia Alexis de Tocqueville.
Noções como mal e bem não são um simples
recurso retórico na vida política dos Estados Unidos.
Uma parte da classe política americana está convencida
de que a defesa da liberdade dos Estados Unidos deve ser motivada
pela defesa de um (o bem) e o combate ao outro (o mal). Porém,
parece mais razoável supor que os 59 milhões de eleitores
que votaram em Bush e os 55 milhões que votaram em Kerry
o fizeram levando em conta assuntos diversos, como agenda econômica
interna, segurança nacional e bem-estar social, que são
ofuscados pelo impacto da mídia, que redescobre, entre outras
coisas, que houve uma guinada para a direita, que Bush
venceu por defender valores cristãos ou que a
indignação levou conservadores às urnas,
e assim por diante.
O exemplo do debate sobre a agenda de política externa é
ilustrativo. O que diferenciou a campanha presidencial atual das
anteriores foi a prioridade dada às temáticas de política
externa em que os Estados Unidos se viram envolvidos nos últimos
três anos. Segurança nacional, combate ao terrorismo
e guerra no Iraque foram amplamente debatidos entre Bush e Kerry,
com uma intensidade que não lembra nenhuma outra campanha
anterior. Numa situação em que a eleição
se arrastou de maneira indefinida, acabou reunindo mais votos aquele
que conseguiu convencer o eleitor médio americano, e sobretudo
os indecisos, de que administrará com mais eficácia
o combate ao terrorismo e o envolvimento em guerras além
das fronteiras.
Desde que as torres gêmeas do World Trade Center foram destruídas,
em 11 de setembro de 2001, o mito da inviolabilidade do território
dos Estados Unidos caiu por terra. Por isso, muitos americanos preferiram
colocar a segurança nacional nas mãos de um homem
capaz de lhes restabelecer esse mito a confiar essa tarefa a alguém
como o senador Kerry, de quem se tinham tantas dúvidas a
esse respeito. A procura pelo restabelecimento desse mito, que foi
argumentado na forma de guerra ao terror, serviu ao
sistema político dos Estados Unidos, porque permitiu legitimar
o presidente Bush depois das questionadas eleições
de 2000. Esse mito foi funcional, na eleição deste
ano, para destinar o voto de muitos eleitores para Bush e continuará
exercendo sua funcionalidade no futuro.
Mas, no futuro, a classe política no poder terá que
tratar não só de mitos e valores na política
externa. A globalização liderada pelos Estados Unidos
supõe a venda de um modelo aberto de economia mundial, que
tem também suas implicações para a segurança
nacional. O paradoxo é que a consolidação de
uma sociedade aberta (aos capitais, aos imigrantes, às idéias)
criou as condições para que ela seja agredida por
inimigos assimétricos, como os terroristas, inteligentes
e determinados.
Daí que talvez a questão central que se coloca para
o futuro americano nos próximos anos seja: como atingir um
equilíbrio razoável entre fronteiras abertas e segurança
nacional? Esse é um equilíbrio difícil de atingir,
na medida em que a globalização promovida pelos Estados
Unidos não é percebida, em vários lugares do
planeta, como um processo mais amplo de inclusão ou promotora
de uma dinâmica secular de modernização, mas
como um reforço do próprio unilateralismo americano,
tão estimulado na primeira administração de
Bush.
Resultante da própria globalização, a classe
política americana que continuará governando os Estados
Unidos por mais quatro anos se defrontará com outro tipo
de ameaça à sua segurança nacional que não
é tão claro e explícito: como a maior economia
do mundo conseguirá manter, na era Bush, suas vantagens relativas
frente às demais nações, ao mesmo tempo em
que convida o restante do planeta a reproduzir e imitar seus métodos
e êxitos? Isso é sustentar a lógica de que o
que é bom para o interesse de um é bom para todos.
O risco dessa lógica é que, ao sustentar que o egoísmo
individual pode contribuir para a felicidade de todos, os Estados
Unidos podem acabar criando as condições para seu
enfraquecimento como maior superpotência.
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