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Mestriner Júnior: ternura dos índios

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um agente de saúde bucal em atividade entre os camaiurás: projeto leva cidadania aos índios do Mato Grossos Programa da USP de Ribeirão Preto contribuirá para a política nacional de saúde bucal indígena nos 34 distritos do País, com 370 mil índios



H
uka Katu – “sorriso lindo”, na língua dos camaiurás, uma das etnias indígenas que habitam o Parque Nacional do Xingu, no Mato Grosso – é o nome do projeto desenvolvido pela Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto (Forp) da USP nas aldeias do médio e baixo Xingu. Como conseqüência desse trabalho, o presidente da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), Valdir Camarcio Bezerra, e o reitor da USP, Adolpho José Melfi, assinaram em 20 de outubro, em Ribeirão Preto, um convênio para o desenvolvimento de ações de saúde bucal no Distrito Especial Indígena do Xingu (Disei).

Chamou a atenção da Funasa o trabalho que vem sendo desenvolvido há um ano pela Forp, em parceria com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),  no Xingu. As ações fazem parte do projeto político-pedagógico implantado este ano pela faculdade, que traz como destaque um novo perfil para o profissional em odontologia, rompendo com a formação tecnicista e dando ênfase à capacitação para a promoção da saúde. O novo perfil é de um profissional generalista preparado para ver o paciente na sua totalidade, apto a elaborar projetos de saúde pública, com sólida formação técnico-científica, humanística e ética.  Essas inovações curriculares causarão modificações profundas na formação do dentista, acreditam os docentes da Forp, e representam uma oportunidade para os alunos conhecerem de perto uma realidade diferente daquela presente nas clínicas das instituições de ensino.

Também dentro desse contexto, a partir deste ano, em convênio com a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, a Forp passa a integrar oficialmente o Programa Saúde da Família, e o aluno estará presente em todas as atividades: visitas, atendimento domiciliar, em núcleos e nas campanhas de vacinação. Como atividade opcional, poderá participar do Projeto Xingu, em que trabalhará o conceito ampliado do cuidado em saúde bucal,  além de realizar tratamentos possíveis e capacitar os próprios índios para as ações de saúde bucal. No início do mês passado, esteve no Xingu o quarto grupo de trabalho, com alunos e professores da Forp.


Uma das aldeias do Xingu, que recebe assistência de professores e alunos da faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto: outra realidade

 

Política nacional

Esse modelo contribuirá para o aprimoramento da política nacional de saúde bucal indígena nos 34 distritos distribuídos pelo País, com aproximadamente 370 mil índios. Segundo a diretora da faculdade, professora Marisa Semprini, o que a Funasa propõe é que a Forp seja um agente multiplicador dessa proposta de trabalho e passe a estimular, nas instituições de ensino odontológico, projetos com as mesmas diretrizes.

Paralelamente, a Forp – também a convite da Funasa – estará participando do diagnóstico das condições de saúde bucal da população indígena no Brasil. Com base nos resultados desse diagnóstico serão planejadas as ações voltadas para a realidade de cada região, levando em consideração a estrutura existente e as populações que compõem esses locais. “A idéia é trabalhar não só as ações assistenciais, mas também a capacitação da população para desenvolver ações de saúde”, relata o professor Wilson Mestriner Junior, coordenador do Projeto Xingu.

Thêmis Simões Arnoni, aluna do quarto ano de Odontologia da Forp, integrou a primeira expedição da faculdade ao Xingu. Como os demais colegas, foi atraída  pela “grande oportunidade de vida”. Chegou repleta de medos e anseios e voltou com a certeza da descoberta, que vai além  das realizações quanto à profissão: a descoberta de que “podemos superar qualquer situação adversa” porque somos “essencialmente seres humanos”.

A dentista Raquel Pacagnella, formada pela Forp, já havia feito a mesma descoberta e na mesma região. Sua aventura no Xingu significou o encontro de sua verdadeira vocação como odontóloga. Estava frustrada com a experiência inicial em consultório e resolveu buscar outras formas de atuar na profissão. Encontrou o projeto da Unifesp no Xingu. Em maio de 2000, desembarcou na reserva como dentista do projeto e descobriu “um novo estímulo para continuar na profissão”. Está lá até hoje. É responsável por tudo, desde a compra do material e o tratamento – preventivo e curativo – até a formação de agentes de saúde bucal. No total são cerca de 4.200 índios em 19 aldeias. O volume de trabalho levou a dentista a propor à Unifesp o convite para a Forp desenvolver o Projeto Xingu. O que veio ao encontro da nova proposta pedagógica da faculdade, de formar um profissional completo, um agente de saúde.

O resultado começa a aparecer, como pode ser observado em mais uma reflexão de Thêmis: “O choque com uma realidade totalmente diferente da nossa me levou a pensar sobre o que eu venho fazendo, o que eu espero e quero fazer da minha vida e, o mais importante, como chegar lá”. Levou-a também a atitudes corajosas. “Conviver com insetos não impossibilitou o trabalho e ainda nos deixou lembranças na pele”, ela diz. “Muitos perderam seus medos de baratas, roedores e hoje contam alegres suas experiências”, acrescenta Thêmis, destacando a “boa comida” e os “banhos relaxantes de rio” proporcionados pela vida no Xingu.

O trabalho no Xingu, ainda segundo Raquel, é árduo. Não é somente a saúde bucal que está em discussão. É necessário assimilar valores de uma outra cultura. Cita como exemplo a formação de agentes de saúde bucal entre os índios, que lhe ensinou de forma curiosa essas diferenças. Após longa exposição sobre o assunto, ao perguntar se todos haviam entendido, recebeu como resposta um sonoro “sim”, o que a deixou muito satisfeita.  Entretanto, a seguir, veio a complementação: “Entendemos, mas não acreditamos”.

Segundo os participantes do projeto, a convivência e cooperação da equipe os ensinou a falar, a expor suas idéias sem medo e, acima de tudo, a ouvir as outras pessoas, a prestar atenção às suas diferenças. Aprenderam a dividir tarefas, medos, ansiedades, dificuldades e aprendizados. “Descobrimos que há possibilidade de fazermos bons trabalhos mesmo em situações adversas”, assegura Thêmis, que aprendeu ainda a “olhar o paciente como um todo, a entender a sua situação, a causa de suas mazelas dentro de um contexto social”. E vai além: disse ter realmente percebido o sentido de sermos todos seres humanos. “Vivemos em culturas e ambientes diferentes, mas somos essencialmente iguais, somos seres humanos.”



Aventura odontológica


São 24 horas de viagem de ônibus desde Ribeirão Preto até a cidade mais próxima ao parque, Canarana, no Mato Grosso. De lá, a equipe da Forp segue de carro por mais três horas e alcança o rio Kuluene, onde a aventura continua de barco. Somente dez horas mais tarde a expedição chega num dos Pólos Base de Saúde, no qual atuará. Lá permanece fixa apenas a equipe que cuida das próteses, com a supervisão de um professor. Os demais membros partem de barco para as aldeias mais distantes. Antes disso, porém, o barco sai várias vezes e volta para a acomodação da carga, sempre muito pesada. Superada a aventura da viagem e da instalação do grupo, o trabalho continua entrecortado pelas novidades da vida na selva e dos costumes de outra cultura, totalmente adversa da nossa. Logo de início, o professor Wilson Mestriner Júnior se vê diante de um bom desafio: “Como trabalhar num local infestado de formigas e mosquitos, partindo de conceitos de biossegurança?”.

Mas muito ainda está por acontecer. E, mais que ensinar, a equipe aprende que aquele povo sabe se cuidar. Na reunião de exposição do trabalho que a Forp pretendia executar nas aldeias, o Conselho de Saúde Indígena, formado pelas suas lideranças, exigiu que os atendimentos fossem feitos por alunos do terceiro e quarto anos, sempre supervisionados por professores, “no tempo do Xingu” – ou seja, “sem pressa”. As equipes que lá estiveram nas quatro viagens já realizadas entenderam e aprenderam o recado. Segundo Mestriner Júnior, lá tudo é vagaroso, mas intenso. O tempo não é valorizado como o nosso. Tomando como exemplo o prazer que demonstram ao receber visitas, vê-se que o tempo pára com a chegada do grupo.

Mesmo relacionando-se “sem pressa” com o tempo, os índios possuem a ansiedade do homem branco, observou a professora Maria da Glória Chiarello de Mattos, do Departamento de Materiais Dentários e Prótese da Forp. Perguntam logo da prótese, assim que a modelagem fica pronta. Um momento inusitado relatado por Maria da Glória é o processo de polimerização (cozimento) das próteses. Alunos e professora passaram o dia todo debaixo de uma mangueira, observando esse  cozimento acontecer num fogão a lenha.

Moitará

Além de perspicácia, bom humor e sensibilidade, valores como ética, estética e etiqueta são a tônica da vida em grupos indígenas, observados pelas equipes da Forp. Os povos do Xingu são atentos para a qualidade dos produtos, segundo Mestriner Júnior. Em rituais de troca de presentes – chamados de moitará –, eles alertam os visitantes que não aceitam “produtos de 1,99 nem do Paraguai” (falsificados). Interessante foram os nomes atribuídos às próteses totais (dentaduras): “dente duro”, “dente de piranha” e “peruca de gengiva”. Também a manutenção do respeito pela selva e pelas crenças vem despertando a atenção dos grupos da Forp que viajam para o Xingu. Os suaiás, por exemplo, não se banham no rio após um dia de caça ao jacaré. Acreditam que os parentes do animal atacarão quem estiver no rio para vingá-lo. Ainda segundo essa crença, a vingança para o caraíba acontece no mesmo dia. Curiosamente, numa das viagens, Mestriner Júnior se cortou limpando um jacaré, logo após chegar de uma caçada. “Mantive a crença dos novos amigos”, relata. Já o estudante Rodrigo Yamagushi, que participou de uma das excursões, foi identificado pelos índios como “parente”. Mestriner tenta encontrar uma explicação para o fato: “Talvez tenha sido um caminho para eles se aproximarem do resto do grupo. Como Yamagushi era o de menor estatura, pode ser que o tenham considerado como o mais frágil”. A demonstração de ternura e sensibilidade fica registrada nesses casos. Algumas crianças que nasceram depois da visita do aluno receberam o nome de Yamagushi.

“Ao sair de barco, no final da tarde, para uma outra aldeia, eu me deparei com uma imensa bola de fogo no horizonte. Era o Sol se pondo. Poucos minutos depois, às minhas costas, um imenso cristal se levantou – era a Lua na chegada da noite. É impossível não se emocionar, não refletir sobre a vida”, filosofa Maria da Glória.

Maria da Glória (à esquerda), Raquel e uma nativa: reflexões sobre a vida
O reitor Adolpho Melfi e Valdir Bezerra, da Funasa, assinam o convênio

 

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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