Vieira de Mello, no Camboja: "Não
podemos permitir que nossa busca por segurança seja baseada
no medo"
Cabe-nos
abandonar o conforto do cotidiano, a indiferença, as ambições
medíocres, o cinismo do dia- a-dia, a ausência de ideal,
o emprego de nossas faculdades mentais na formulação
de antivalores que são a intolerância, a xenofobia,
o racismo e o fundamentalismo de todas as espécies, as certezas
que rejeitam o outro a priori, que recusam o diálogo, que
justificam o crime (trecho de "A consciência do mundo: a ONU
diante do irracional da história", conferência proferida
por Sérgio Vieira de Mello em 2 de novembro de 2000, no Instituto
Universitário de Altos Estudos Internacionais da Universidade
de Genebra, Suíça).
Com
aquela inquietação própria de crianças
muito inteligentes e curiosas, desde cedo ele procurava encrencas,
conta a mãe. Excelente aluno de física e química,
chegou a construir um rádio caseiro para a babá, fez
curso de eletrônica por correspondência e meteu-se a
consertar o aparelho de TV, até que um dia levou um choque
tão forte que o jogou longe. Poderia ter sido químico,
como queria a professora dos tempos de ginásio. Mas abandonou
essas idéias e logo começou a trilhar o caminho do
intelectual e, não contraditoriamente para o seu caso, do
homem de ação, que conduziu uma brilhante trajetória
de 33 anos na ONU (Organização das Nações
Unidas).
Esse homem era o embaixador brasileiro Sérgio Vieira de Mello
- morto em 19 de agosto de 2003, num atentado em Bagdá -,
que no dia 25 de outubro passado foi homenageado na USP com o lançamento
do livro Sérgio Vieira de Mello - Pensamento e memória,
organizado pelo professor Jacques Marcovitch, da Faculdade de Economia,
Administração e Contabilidade (FEA). Lançado
pela Editora da USP (Edusp), em parceria com a Editora Saraiva e
a Fundação Bunge, o livro traz 18 textos de Sérgio
Vieira de Mello - incluindo sua última entrevista, publicada
em O Estado de S. Paulo - e ensaios de Marcovitch, do professor
Celso Lafer - docente da Faculdade de Direito da USP e ex-ministro
das Relações Exteriores - e do embaixador Ronaldo
Mota Sardenberg, representante do Brasil na ONU. Assinam artigos
do livro também o jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva,
os diplomatas Luiz Felipe de Seixas Corrêa e Luciana Mancini,
o embaixador do Brasil no Chile, Gelson Fonseca Júnior, e
o professor Paulo Sérgio Pinheiro, do Núcleo de Estudos
da Violência (NEV) da USP.
Realizado na Sala da Congregação da FEA, o lançamento
do livro contou com palestras de Marcovitch, de Lafer e de Gelson
Fonseca. Houve ainda a exibição do documentário
A caminho de Bagdá, sobre a vida de Mello, dirigido pela
jornalista Simone Duarte, depoimentos ao vivo por telefone e transmissão
simultânea via Internet. Lins da Silva falou de Brasília.
De Nova York, Sardenberg assistia ao evento e discorreu sobre sua
participação no livro.
Marcovitch dedicou a obra aos alunos do curso de Relações
Internacionais da USP, onde nasceu a idéia do livro. "O Sérgio
foi lembrado em aula, infelizmente, por ocasião de sua morte",
explica Marcovitch. "Começamos com a tradução
do seu último pronunciamento, feito na abertura da 59a Sessão
da Comissão de Direitos Humanos da ONU, em 17 de março
de 2003. Vimos quanto os alunos desconheciam sua trajetória
e pensamento e decidimos traduzir outros textos. Daí pensamos
no livro. Por isso agradeço e o dedico a eles." Financiado
pela Fundação Bunge, o livro é o primeiro no
Brasil a retratar a trajetória do embaixador.
Quanto ao documentário de Simone Duarte, ele poderá
ser visto em breve pela televisão. Os direitos de exibição
estão sendo negociados com uma emissora, cujo nome a jornalista
mantém em sigilo. Ex-chefe de redação da TV
Globo em Nova York, Simone, que trabalhou com Sérgio Vieira
de Mello, dará prosseguimento a seus documentários
com reportagens sobre o Paquistão e a Coréia do Norte.
A última homenagem a Mello em Genebra:
o "velho demônio" venceu
Herói-mártir
A partir daquele fatídico 19 de agosto de 2003, três
meses depois de chegar a um território em frangalhos com
a missão impossível de reconstruir uma nação
que ainda passa por crises de toda ordem, Sérgio Vieira de
Mello teria sua trajetória e pensamentos expostos ao mundo.
O herói da paz, ou herói-mártir, como o chamou
Marcovitch, teve a existência generosa e cheia de vida abreviada
por um atentado à bomba contra a sede da ONU em Bagdá,
onde fora designado para servir como representante especial da Secretaria-Geral
da ONU para o Iraque. Com a morte do embaixador, vítima de
um dos pecados da humanidade contra o qual sempre lutou, o terror
novamente fez com que o "velho demônio" ou "a história
mundial" (palavras suas) vencesse de novo.
Como era sua praxe, depois de falar com dezenas de políticos,
líderes da sociedade civil, advogados, líderes espirituais,
doutores, jornalistas, artistas e ativistas de direitos humanos
no Iraque, ressaltou num briefing para o Conselho de Segurança
da ONU - publicado no livro organizado por Marcovitch - o quanto
era importante para os iraquianos ver o retorno do Estado de direito
e da segurança. "A contribuição do Iraque para
nossa civilização coletiva tem sido imensa. O povo
iraquiano merece muito mais do que os anos recentes lhe conferiram",
disse .
Mesmo disposto a colocar seu poder de persuasão e negociação
a serviço dos direitos do povo iraquiano, esse sonhador da
liberdade teve seu trabalho inesperadamente interrompido, ao contrário
dos anteriores. Como administrador transitório com plenos
poderes no Timor Leste, por exemplo, sua atuação foi
considerada a mais bem-sucedida missão de peace building
(construção da paz) já assumida pela ONU. "Quadro
de altíssimo nível", "integridade", "capacidade de
liderar", "coragem pessoal", "sensibilidade humana", "negociador
talentoso" e, por que não, "charmoso" são os atributos
geralmente associados à sua pessoa pelos colegas diplomatas
e pelos que tiveram oportunidade de trabalhar com ele.
Promoção da estabilidade, da segurança, da
lei e da ordem, criação de uma administração
pública eficaz, provisão de ajuda humanitária
e dos serviços sociais básicos, fortalecimento do
governo local, estabelecimento das precondições para
o desenvolvimento econômico e social e o governo do território
no dia-a-dia. Essas eram algumas das tarefas de Sérgio Vieira
de Mello quando assumia a reorganização de um território
em flagelo, seja por fome, doenças ou guerra. Ele repatriou
refugiados e liderou operações no Camboja, Sudão,
Bangladesh, Chipre, Moçambique e Peru, entre outras nações,
antes de aceitar a missão na antiga Mesopotâmia. Poucas
pessoas conseguiram reunir ao mesmo tempo - e paradoxalmente - paixão
e razão. Era dominado por uma "paixão edificante",
segundo Marcovitch, e "racionalmente apaixonado" pela humanidade,
define Lafer.
O lançamento do livro, na FEA: obra nasceu
nas aulas do curso de Relações Internacionais da USP
Pensamentos
Diante dos desafios que enfrentou ao longo de sua carreira, Sérgio
Vieira de Mello tinha no filósofo alemão Immanuel
Kant (1724-1804) uma fonte de inspiração, revela Celso
Lafer no ensaio "Kant e a razão abrangente da humanidade
no percurso de Sérgio Vieira de Mello", publicado no livro
lançado na FEA. Célebre por sua preocupação
em buscar uma lei moral para os atos humanos, Kant era "muito bem
conhecido" por Mello e suas idéias serviam para orientar
o embaixador na resolução dos conflitos internacionais.
Em sua palestra na FEA, Lafer contou que travava muitos "diálogos
filosóficos" com Mello e tinha a impressão de que
este buscava na filosofia a base de coesão para os seus atos.
Nesses contatos, disse, grande parte das conversas se pautava pela
teorias kantianas.
"A história humana só pode ter unidade, regularidade
e continuidade teleológica quando considerada sob um ângulo
universal, e não na perspectiva de um Estado", realça
Mello em um dos textos reproduzidos no livro. No seu artigo, Lafer
escreve que, a seu ver, "é esse ângulo que efetivamente
sustenta, para Sérgio, o caráter exclusivamente internacional
do secretariado, juridicamente consagrado no artigo 100 da Carta
da ONU", referindo-se às constantes preocupações
que Mel-lo tinha acerca das reais atribuições das
Nações Unidas.
Como alto comissário para Direitos Humanos, Mello abriu a
59a Sessão da Comissão de Direitos Humanos, em março
de 2003, com um discurso sobre os males da humanidade e como eles
ameaçam a segurança dos povos. "A segurança
do nosso mundo tem-se mostrado extremamente frágil. Nós
nos perguntamos o quanto mais ela poderá fragilizar-se."
Expõe aspectos históricos e socioeconômicos,
como guerras, doenças, fome, miséria, terror, tráfico
(de drogas, mulheres e crianças) e, em suma, o desrespeito
pelos direitos humanos como os grandes responsáveis pela
insegurança do mundo. Expõe a necessidade de "educar"
os povos na cultura pelos direitos humanos. Termina dizendo que
o trabalho da Comissão de Direitos Humanos é decisivo
para muitas pessoas. "Se não o fizermos, aquele velho demônio,
a história mundial, terá vencido de novo. Precisamos
não deixar que o tempo devore nossas esperanças. Precisamos
não deixar que a nossa busca da segurança seja baseada
no medo. Essa busca apenas será completada se formos guiados
pelo que nos une: os direitos que vocês, a comissão,
juraram proteger e promover."
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Mello
se despede de Matan Ruak, ex-líder guerrilheiro do Timor
Leste: pelo diálogo, sempre |
Com
Ramos Horta e Xanana Gusmão, no Timor Leste: "quadro
de altíssimo nível" |
"A segurança não pode ser imposta"
O
orgulho do povo iraquiano está "profundamente ferido"
e, mais do que um regime com passado repressivo e um Estado-pária,
o Iraque é um país com uma história extraordinária,
habitado por um povo extraordinário. "Devíamos
lembrar que a contribuição do Iraque para a
nossa compreensão e apreciação da lei,
da ciência, da arte, na verdade, sua contribuição
para nossa civilização coletiva tem sido imensa."
Foi o que disse Sérgio Vieira de Mello em 22 de julho
de 2003, no seu briefing ao Conselho de Segurança,
em Nova York, já como representante especial da Secretaria-Geral
da ONU para o Iraque.
Naqueles dias de fúria, com o país em ruínas,
um povo indignado e a administração Bush querendo
dar como certo e correto o final da guerra, o jornal O Estado
de S. Paulo publicou, nos dias 17 e 22 de agosto de 2003,
trechos de uma entrevista que o diplomata concedeu ao jornalista
Jamil Chade. Tanto no briefing como na entrevista, Mello deixa
clara sua preocupação com a segurança,
a soberania do país e o respeito aos direitos humanos
como pontos pacíficos para o restabelecimento do Estado
de direito naquele território.
Na entrevista, publicada na íntegra no livro Sérgio
Vieira de Mello - Pensamento e memória, o diplomata
defende que as tropas de coalizão, em primeiro lugar,
precisavam "dar confiança ao povo iraquiano e resolver
os problemas cotidianos, como falta de água e a questão
da saúde". Além disso, "uma nova polícia
iraquiana" deveria ser criada, já que "nenhum estrangeiro
pode impor a segurança". As forças de ocupação
deveriam "levar em conta as tradições locais
e ter mais sensibilidade e respeito pelos costumes da população
ao conduzirem operações de segurança
e de captura de ex-membros do regime de Saddam Hussein", disse.
O diplomata declara ainda que, para acalmar o sentimento anti-americano,
seria necessária "uma iniciativa que pudesse garantir
ao povo que o processo de ocupação não
é indefinido no tempo".
No trecho da entrevista só publicado em 22 de agosto,
três dias após sua morte, Mello declarou ao repórter
que as forças de coalizão "precisam entender
que a tarefa de garantir a segurança não pode
ser imposta. Essa deve ser uma tarefa dos iraquianos. Isso,
junto com outras medidas, demonstraria a boa fé das
forças estrangeiras e daria alívio à
ansiedade em que vivem os iraquianos."
Apesar da preocupação com a segurança
do país, Mello mostra-se na entrevista confiante quanto
à própria segurança e a do escritório
da ONU em Bagdá. "Aqui em Bagdá não me
sinto em perigo como em outros lugares onde estive trabalhando",
disse. "De um modo geral, não sinto um clima de hostilidade.
Os iraquianos, ao contrário do que sentem pelas forças
de ocupação, olham para a ONU como uma organização
independente e amiga."
Como poucas vezes em sua vida, Mello talvez tenha errado na
sua avaliação. Ou talvez tivesse mesmo que ser
mais um mártir a defender a liberdade e os direitos
humanos. Ou ainda talvez não pudesse se sentir ameaçado
por um povo que enxergava com simpatia. "Eles têm uma
admiração pelo Brasil que eu, pessoalmente,
não conseguiria explicar. Existe uma relação
de amizade com o Brasil que é impactante e que vem
de muito tempo", declarou ao jornalista.
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