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O embaixador em missão no Camboja: Kant como fonte de inspiração para resolver os conflitos internacionais

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Sérgio Vieira de Mello – Pensamento e memória, de Jacques Marcovitch (organizador), Edusp/Saraiva/Fundação Bunge, 340 páginas.


Vieira de Mello, no Camboja: "Não podemos permitir que nossa busca por segurança seja baseada no medo"


C
abe-nos abandonar o conforto do cotidiano, a indiferença, as ambições medíocres, o cinismo do dia- a-dia, a ausência de ideal, o emprego de nossas faculdades mentais na formulação de antivalores que são a intolerância, a xenofobia, o racismo e o fundamentalismo de todas as espécies, as certezas que rejeitam o outro a priori, que recusam o diálogo, que justificam o crime (trecho de "A consciência do mundo: a ONU diante do irracional da história", conferência proferida por Sérgio Vieira de Mello em 2 de novembro de 2000, no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, Suíça).

Com aquela inquietação própria de crianças muito inteligentes e curiosas, desde cedo ele procurava encrencas, conta a mãe. Excelente aluno de física e química, chegou a construir um rádio caseiro para a babá, fez curso de eletrônica por correspondência e meteu-se a consertar o aparelho de TV, até que um dia levou um choque tão forte que o jogou longe. Poderia ter sido químico, como queria a professora dos tempos de ginásio. Mas abandonou essas idéias e logo começou a trilhar o caminho do intelectual e, não contraditoriamente para o seu caso, do homem de ação, que conduziu uma brilhante trajetória de 33 anos na ONU (Organização das Nações Unidas).

Esse homem era o embaixador brasileiro Sérgio Vieira de Mello - morto em 19 de agosto de 2003, num atentado em Bagdá -, que no dia 25 de outubro passado foi homenageado na USP com o lançamento do livro Sérgio Vieira de Mello - Pensamento e memória, organizado pelo professor Jacques Marcovitch, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA). Lançado pela Editora da USP (Edusp), em parceria com a Editora Saraiva e a Fundação Bunge, o livro traz 18 textos de Sérgio Vieira de Mello - incluindo sua última entrevista, publicada em O Estado de S. Paulo - e ensaios de Marcovitch, do professor Celso Lafer - docente da Faculdade de Direito da USP e ex-ministro das Relações Exteriores - e do embaixador Ronaldo Mota Sardenberg, representante do Brasil na ONU. Assinam artigos do livro também o jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, os diplomatas Luiz Felipe de Seixas Corrêa e Luciana Mancini, o embaixador do Brasil no Chile, Gelson Fonseca Júnior, e o professor Paulo Sérgio Pinheiro, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP.

Realizado na Sala da Congregação da FEA, o lançamento do livro contou com palestras de Marcovitch, de Lafer e de Gelson Fonseca. Houve ainda a exibição do documentário A caminho de Bagdá, sobre a vida de Mello, dirigido pela jornalista Simone Duarte, depoimentos ao vivo por telefone e transmissão simultânea via Internet. Lins da Silva falou de Brasília. De Nova York, Sardenberg assistia ao evento e discorreu sobre sua participação no livro.

Marcovitch dedicou a obra aos alunos do curso de Relações Internacionais da USP, onde nasceu a idéia do livro. "O Sérgio foi lembrado em aula, infelizmente, por ocasião de sua morte", explica Marcovitch. "Começamos com a tradução do seu último pronunciamento, feito na abertura da 59a Sessão da Comissão de Direitos Humanos da ONU, em 17 de março de 2003. Vimos quanto os alunos desconheciam sua trajetória e pensamento e decidimos traduzir outros textos. Daí pensamos no livro. Por isso agradeço e o dedico a eles." Financiado pela Fundação Bunge, o livro é o primeiro no Brasil a retratar a trajetória do embaixador.

Quanto ao documentário de Simone Duarte, ele poderá ser visto em breve pela televisão. Os direitos de exibição estão sendo negociados com uma emissora, cujo nome a jornalista mantém em sigilo. Ex-chefe de redação da TV Globo em Nova York, Simone, que trabalhou com Sérgio Vieira de Mello, dará prosseguimento a seus documentários com reportagens sobre o Paquistão e a Coréia do Norte.


A última homenagem a Mello em Genebra: o "velho demônio" venceu


Herói-mártir

A partir daquele fatídico 19 de agosto de 2003, três meses depois de chegar a um território em frangalhos com a missão impossível de reconstruir uma nação que ainda passa por crises de toda ordem, Sérgio Vieira de Mello teria sua trajetória e pensamentos expostos ao mundo. O herói da paz, ou herói-mártir, como o chamou Marcovitch, teve a existência generosa e cheia de vida abreviada por um atentado à bomba contra a sede da ONU em Bagdá, onde fora designado para servir como representante especial da Secretaria-Geral da ONU para o Iraque. Com a morte do embaixador, vítima de um dos pecados da humanidade contra o qual sempre lutou, o terror novamente fez com que o "velho demônio" ou "a história mundial" (palavras suas) vencesse de novo.

Como era sua praxe, depois de falar com dezenas de políticos, líderes da sociedade civil, advogados, líderes espirituais, doutores, jornalistas, artistas e ativistas de direitos humanos no Iraque, ressaltou num briefing para o Conselho de Segurança da ONU - publicado no livro organizado por Marcovitch - o quanto era importante para os iraquianos ver o retorno do Estado de direito e da segurança. "A contribuição do Iraque para nossa civilização coletiva tem sido imensa. O povo iraquiano merece muito mais do que os anos recentes lhe conferiram", disse .

Mesmo disposto a colocar seu poder de persuasão e negociação a serviço dos direitos do povo iraquiano, esse sonhador da liberdade teve seu trabalho inesperadamente interrompido, ao contrário dos anteriores. Como administrador transitório com plenos poderes no Timor Leste, por exemplo, sua atuação foi considerada a mais bem-sucedida missão de peace building (construção da paz) já assumida pela ONU. "Quadro de altíssimo nível", "integridade", "capacidade de liderar", "coragem pessoal", "sensibilidade humana", "negociador talentoso" e, por que não, "charmoso" são os atributos geralmente associados à sua pessoa pelos colegas diplomatas e pelos que tiveram oportunidade de trabalhar com ele.

Promoção da estabilidade, da segurança, da lei e da ordem, criação de uma administração pública eficaz, provisão de ajuda humanitária e dos serviços sociais básicos, fortalecimento do governo local, estabelecimento das precondições para o desenvolvimento econômico e social e o governo do território no dia-a-dia. Essas eram algumas das tarefas de Sérgio Vieira de Mello quando assumia a reorganização de um território em flagelo, seja por fome, doenças ou guerra. Ele repatriou refugiados e liderou operações no Camboja, Sudão, Bangladesh, Chipre, Moçambique e Peru, entre outras nações, antes de aceitar a missão na antiga Mesopotâmia. Poucas pessoas conseguiram reunir ao mesmo tempo - e paradoxalmente - paixão e razão. Era dominado por uma "paixão edificante", segundo Marcovitch, e "racionalmente apaixonado" pela humanidade, define Lafer.


O lançamento do livro, na FEA: obra nasceu nas aulas do curso de Relações Internacionais da USP


Pensamentos

Diante dos desafios que enfrentou ao longo de sua carreira, Sérgio Vieira de Mello tinha no filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) uma fonte de inspiração, revela Celso Lafer no ensaio "Kant e a razão abrangente da humanidade no percurso de Sérgio Vieira de Mello", publicado no livro lançado na FEA. Célebre por sua preocupação em buscar uma lei moral para os atos humanos, Kant era "muito bem conhecido" por Mello e suas idéias serviam para orientar o embaixador na resolução dos conflitos internacionais. Em sua palestra na FEA, Lafer contou que travava muitos "diálogos filosóficos" com Mello e tinha a impressão de que este buscava na filosofia a base de coesão para os seus atos. Nesses contatos, disse, grande parte das conversas se pautava pela teorias kantianas.

"A história humana só pode ter unidade, regularidade e continuidade teleológica quando considerada sob um ângulo universal, e não na perspectiva de um Estado", realça Mello em um dos textos reproduzidos no livro. No seu artigo, Lafer escreve que, a seu ver, "é esse ângulo que efetivamente sustenta, para Sérgio, o caráter exclusivamente internacional do secretariado, juridicamente consagrado no artigo 100 da Carta da ONU", referindo-se às constantes preocupações que Mel-lo tinha acerca das reais atribuições das Nações Unidas.

Como alto comissário para Direitos Humanos, Mello abriu a 59a Sessão da Comissão de Direitos Humanos, em março de 2003, com um discurso sobre os males da humanidade e como eles ameaçam a segurança dos povos. "A segurança do nosso mundo tem-se mostrado extremamente frágil. Nós nos perguntamos o quanto mais ela poderá fragilizar-se." Expõe aspectos históricos e socioeconômicos, como guerras, doenças, fome, miséria, terror, tráfico (de drogas, mulheres e crianças) e, em suma, o desrespeito pelos direitos humanos como os grandes responsáveis pela insegurança do mundo. Expõe a necessidade de "educar" os povos na cultura pelos direitos humanos. Termina dizendo que o trabalho da Comissão de Direitos Humanos é decisivo para muitas pessoas. "Se não o fizermos, aquele velho demônio, a história mundial, terá vencido de novo. Precisamos não deixar que o tempo devore nossas esperanças. Precisamos não deixar que a nossa busca da segurança seja baseada no medo. Essa busca apenas será completada se formos guiados pelo que nos une: os direitos que vocês, a comissão, juraram proteger e promover."

Mello se despede de Matan Ruak, ex-líder guerrilheiro do Timor Leste: pelo diálogo, sempre Com Ramos Horta e Xanana Gusmão, no Timor Leste: "quadro de altíssimo nível"



"A segurança não pode ser imposta"

O orgulho do povo iraquiano está "profundamente ferido" e, mais do que um regime com passado repressivo e um Estado-pária, o Iraque é um país com uma história extraordinária, habitado por um povo extraordinário. "Devíamos lembrar que a contribuição do Iraque para a nossa compreensão e apreciação da lei, da ciência, da arte, na verdade, sua contribuição para nossa civilização coletiva tem sido imensa." Foi o que disse Sérgio Vieira de Mello em 22 de julho de 2003, no seu briefing ao Conselho de Segurança, em Nova York, já como representante especial da Secretaria-Geral da ONU para o Iraque.

Naqueles dias de fúria, com o país em ruínas, um povo indignado e a administração Bush querendo dar como certo e correto o final da guerra, o jornal O Estado de S. Paulo publicou, nos dias 17 e 22 de agosto de 2003, trechos de uma entrevista que o diplomata concedeu ao jornalista Jamil Chade. Tanto no briefing como na entrevista, Mello deixa clara sua preocupação com a segurança, a soberania do país e o respeito aos direitos humanos como pontos pacíficos para o restabelecimento do Estado de direito naquele território.

Na entrevista, publicada na íntegra no livro Sérgio Vieira de Mello - Pensamento e memória, o diplomata defende que as tropas de coalizão, em primeiro lugar, precisavam "dar confiança ao povo iraquiano e resolver os problemas cotidianos, como falta de água e a questão da saúde". Além disso, "uma nova polícia iraquiana" deveria ser criada, já que "nenhum estrangeiro pode impor a segurança". As forças de ocupação deveriam "levar em conta as tradições locais e ter mais sensibilidade e respeito pelos costumes da população ao conduzirem operações de segurança e de captura de ex-membros do regime de Saddam Hussein", disse. O diplomata declara ainda que, para acalmar o sentimento anti-americano, seria necessária "uma iniciativa que pudesse garantir ao povo que o processo de ocupação não é indefinido no tempo".

No trecho da entrevista só publicado em 22 de agosto, três dias após sua morte, Mello declarou ao repórter que as forças de coalizão "precisam entender que a tarefa de garantir a segurança não pode ser imposta. Essa deve ser uma tarefa dos iraquianos. Isso, junto com outras medidas, demonstraria a boa fé das forças estrangeiras e daria alívio à ansiedade em que vivem os iraquianos."

Apesar da preocupação com a segurança do país, Mello mostra-se na entrevista confiante quanto à própria segurança e a do escritório da ONU em Bagdá. "Aqui em Bagdá não me sinto em perigo como em outros lugares onde estive trabalhando", disse. "De um modo geral, não sinto um clima de hostilidade. Os iraquianos, ao contrário do que sentem pelas forças de ocupação, olham para a ONU como uma organização independente e amiga."

Como poucas vezes em sua vida, Mello talvez tenha errado na sua avaliação. Ou talvez tivesse mesmo que ser mais um mártir a defender a liberdade e os direitos humanos. Ou ainda talvez não pudesse se sentir ameaçado por um povo que enxergava com simpatia. "Eles têm uma admiração pelo Brasil que eu, pessoalmente, não conseguiria explicar. Existe uma relação de amizade com o Brasil que é impactante e que vem de muito tempo", declarou ao jornalista.

 

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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