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Kowarick: vulnerabilidade, e não exclusão




A
violência é um tema inescapável na vida de todos os moradores de São Paulo, seja das regiões centrais ou periféricas da cidade. Ela passou a ser “um elemento que também estrutura o cotidiano das pessoas, demarcando espaços, selecionando horários apropriados e forjando atitudes e comportamentos defensivos que visam a diminuir os riscos e que redundam em práticas de evitação e retraimento”, atesta o professor Lúcio Kowarick, do Departamento de Ciência Política da USP. Ao lado da busca por trabalho, o medo da violência é fator determinante para a escolha do local de residência, e pode provocar a migração de um bairro para outro ou mesmo a troca de cidade.

Kowarick coordena a pesquisa “Vulnerabilidade socioeconômica e civil em bairros populares”, que procura analisar a situação de desproteção a que vastas camadas populacionais são submetidas, especialmente em relação a três eixos: moradia, emprego/desemprego e violência. De 1999 até o ano passado, os pesquisadores do projeto – bolsistas de Iniciação Científica e de pós-graduação –, além do próprio professor, percorreram três realidades distintas: uma favela (a do Jaguaré, na zona oeste), dois cortiços no Centro e duas áreas de autoconstrução na periferia da zona sul. De início, chama a atenção o fato de Kowarick não utilizar o termo “exclusão”, hoje figura fácil nos discursos da mídia e da sociedade. “Desde os anos 1920 se tem mostrado que os processos de riqueza e pobreza estão interconectados. As condições desiguais estão combinadas e representam os dois lados de uma mesma medalha”, defende. Por isso a opção por vulnerabilidade socioeconômica e civil, definição que engloba itens como a integridade física dos cidadãos.

O Brasil deste início de século 21 vive um paradoxo, avalia o professor. Experimenta a consolidação da democracia, com avanço dos direitos civis e melhoria dos serviços públicos e de infra-estrutura, mesmo que em muitos casos ainda precários – mas seus cidadãos estão mais vulneráveis e expostos à violência, seja a praticada por bandidos ou pela polícia, do que estavam há quinze ou vinte anos. “Hoje todo mundo tem medo, no Centro e na periferia. É uma situação que tende a levar ao refluxo do cidadão para o mundo privado, deixando o espaço público para a violência.”

Pia para 51 pessoas

O trabalho, que teve financiamento do CNPq e da Fapesp, traça um histórico das condições de moradia na cidade, revelando que os cortiços são um investimento altamente lucrativo desde os tempos do Segundo Império – época em que o próprio conde D’Eu, marido da princesa Isabel, era proprietário de alguns, o que lhe valeu o apelido de “Conde Cortiço”. Por cubículos de cerca de 12m2, paga-se hoje um aluguel de cerca de R$ 170,00 no Centro da cidade. Num cortiço que fez parte do estudo, no bairro do Pari, havia um chuveiro para cada 31 pessoas, uma pia para cada 51 moradores e 15,5 pessoas para cada banheiro. Mesmo frios e úmidos no inverno, sufocantes no verão, com ambientes altamente insalubres e barulhentos nos quais há pouca ou nenhuma privacidade e inúmeros outros problemas, os cortiços permanecem sendo a moradia de centenas de milhares de pessoas. A razão? Fica no Centro. “O Centro é altamente dinâmico. Lá tem trabalho – permanente ou temporário –, tem lazer (cinema, shopping, parques), tem hospitais, tem movimento, muita gente circula”, diz Kowarick.

Quem mora no Centro também não precisa gastar com almoço na rua, nem perde horas percorrendo enormes distâncias no transporte coletivo. “Essas duas horas de condução para vir e duas horas para voltar, ganhei como hora de trabalho e com isso aumentei o dinheiro”, revela o paranaense Almí, de 35 anos. O perfil do ambulante resume outra característica dos moradores dos cortiços: a grande mobilidade, seja na residência, seja no trabalho. O professor Kowarick lembra que a pesquisa não queria saber onde estavam os bandidos, “mas como as pessoas vivenciavam o problema da violência”. Era inevitável, entretanto, cruzar com casos como o dos itinerantes irmãos Severino – José, Paulo, João e o primo Anésio, vindos do interior do Ceará e que em três anos haviam passado por cerca de dez cortiços. Eles trabalham como “seguranças privados licenciados” de Barbicha, procurando envolvimento em contrabando e roubo de cargas em rodovias. “A única coisa boa do cortiço é que é aqui no Centro”, explicou José. “Eu vejo no Datena que na periferia todo mundo é ladrão. Pior que cortiço é só favela e bairro longe.”

“Pé de barro”

A fala do segurança de Barbicha reproduz a visão que muitos moradores de cortiços alimentam em relação às periferias: é longe, lugar de “pé de barro”, do “bicho da sujeira”, “sem nenhuma infra-estrutura” e “com tiro pra tudo que é lado”. Para quem mora nesses bairros afastados, que vão ocupando as chamadas “barbas” da cidade e são na maioria frutos de loteamentos irregulares, a distância dos locais de trabalho é realmente um fardo pesado. Muitas vezes é preciso sair de casa antes das cinco horas da manhã, e a volta só ocorre à noite, quando o medo do perigo já fez com que praticamente todos os moradores se recolhessem.

O fator fundamental da permanência nesses locais, em que predomina a autoconstrução, é a possibilidade de ter a casa própria. Erguer a residência pode levar anos, envolvendo familiares e vizinhos nos finais de semana e horas de folga, e obriga a enormes esforços para fazer as economias necessárias para colocar tijolo sobre tijolo. Nesse projeto entram as horas extras, o Fundo de Garantia, o cansaço do acúmulo de trabalho, a renúncia ao lazer e a qualquer coisa considerada “supérflua”. “A casa é muito mais que abrigo: é um projeto de vida”, diz o professor. “Como não temos políticas públicas de construção de moradia para as famílias pobres, a casa própria é a grande poupança que elas podem fazer. Até porque, quando a pessoa se aposentar, não vai precisar gastar com aluguel.”

Nessas regiões, o medo da violência é também fator que determina a rotina das famílias. Muitas áreas são usadas para desova de cadáveres; o tráfico procura arregimentar adolescentes para as suas atividades; a própria polícia age de forma violenta e tende a enquadrar qualquer cidadão jovem, negro e pobre como bandido. Para o professor Kowarick, no entanto, a palavra-chave para designar a população da periferia é dignidade. ”Essas pessoas fazem um esforço enorme, numa sociedade extremamente desigual, para construir sua casa; para continuar trabalhando e para que seus filhos continuem na escola, tenham emprego e uma vida melhor do que a dos pais. Vivem num lugar em que sabem onde estão os bandidos e lutam para se manter assim – ‘eles lá, eu aqui’. Eu chamo isso de dignidade.” É, continua, “um orgulho de continuar sendo digno, mesmo numa realidade de subemprego, exploração e muitas vezes sem acesso a serviços públicos essenciais, crescendo com o esforço do próprio trabalho e dentro dos canais legítimos da sociedade.”

Para Kowarick, que está trabalhando nos textos que retratarão os resultados da pesquisa, cada vez mais será essencial que as políticas públicas levem em conta a tolerância e a importância da aceitação das diferenças. “As classes alta e média vêem o diferente como inferior e potencialmente perigoso. O de fora é visto como feio, sujo, pobre, violento. A intolerância e o preconceito se conjugam com o medo da violência, que todo mundo tem, mais o medo de perder o emprego e o status.” Ao mesmo tempo, de muitos setores da sociedade vem a mobilização que indica um caminho: ou melhoramos todos ou vamos cada vez mais viver em guetos. “É preciso entender as causas que levam a cidade a ter mais de 10 mil moradores de rua e a ter cada vez mais vendedores nos faróis, o que não acontecia há dez ou quinze anos”, defende. “Estamos vivendo um momento de grande consciência de nossos problemas e aqueles que têm voz – a imprensa, os partidos, os órgãos coletivos, as igrejas, as universidades etc. –, têm um papel básico nesse processo.”

 

Criminalidade rouba anos de vida dos jovens

A expectativa de vida dos brasileiros chegou a 71,3 anos em 2003. Se o índice ainda está distante daqueles dos países desenvolvidos, em que já ultrapassa os 80 anos, também é verdade que os brasileiros poderiam viver em média dois a três anos a mais se não fossem as mortes prematuras de jovens por causas violentas – homicídios e acidentes de trânsito. Na faixa entre 20 e 24 anos de idade, a mortalidade dos homens é quatro vezes maior que a das mulheres. “Isso ocorre por causa da violência”, explica o gerente de Estudos e Análises Demográficas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Juarez de Castro Oliveira. Entre 1991 e 2000, o índice de homicídios cometidos com o uso de armas de fogo subiu 95% no grupo de homens com 15 a 24 anos.

Os números da violência no País impressionam: entre 1980 e 2000, quase 600 mil pessoas (o número exato é 598.367) foram vítimas de homicídio. Isso significa 30 mil mortes por ano, em média – taxa superior a muitos dos piores conflitos armados do planeta. As regiões metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro concentram 40% desses crimes. Os dados são da Síntese dos Indicadores Sociais divulgada em abril pelo IBGE. A boa notícia de 2004 é que, em São Paulo, o número de homicídios por armas de fogo caiu 18% nos primeiros nove meses do ano em comparação com o mesmo período de 2003. As autoridades atribuem à campanha do desarmamento lançada pelo governo federal a preservação de um número estimado em 2.630 vidas.

Pobreza e violência

Na capital paulista, um cruzamento de dados feito pela Prefeitura mostra que pobreza e violência andam juntas nos 96 distritos da cidade. O estudo, divulgado no início de 2002 e que compara informações de 1991 e 2000, atesta que, quanto maior a taxa de crescimento de chefes de família pobres de um distrito, maior a chance de essa região ter de conviver com aumento de mortes violentas. Em 2000, um em cada cinco chefes de família vivia com renda abaixo do nível da pobreza – valor definido como inferior a 1,47 do salário mínimo (equivalente hoje a R$ 382,00).

Um exemplo é a região do Jardim Anhangüera, na zona norte: no período estudado, a pobreza cresceu 300% e a criminalidade, 1.800%. Para os moradores, a razão é a migração de muitos criminosos que vieram de outros bairros e cidades. Ao mesmo tempo, os índices de mortes violentas caíram onde houve diminuição da pobreza. À época da divulgação do estudo, o secretário do Trabalho do município, Márcio Pochmann, afirmou à imprensa que os dados permitiam constatar que “o combate à violência requer também uma melhor distribuição de renda e, sobretudo, um combate à pobreza”.

A desigualdade igualmente está expressa nos números. Em 2003, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE mostrou que o grupo de 10% dos trabalhadores remunerados com os melhores vencimentos repartia 45,3% do total da massa salarial, enquanto os 10% com os piores ganhos dividiam apenas 1% do total. Entre 1996 e 2003, o rendimento médio dos trabalhadores brasileiros caiu 18,78%. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2002 viviam na pobreza 33% da população brasileira – ou seja, 56 milhões de pessoas. Longe das estatísticas, uma fala de José Severino, morador de cortiço e segurança do bandido Barbicha, define desigualdade de um jeito peculiar: “Aqui em São Paulo ninguém é gente – ou é gente demais”.

 

 

 

Família Ota reconstruiu a vida depois da tragédia

Os telefones do Movimento da Paz e Justiça Ives Ota estão sempre tocando e muitas vezes trazem do outro lado da linha a voz de alguma pessoa desesperada pela perda de um familiar de forma violenta. Pode ser uma mãe do interior de Minas Gerais que já havia até contratado jagunços para tirar a vida do assassino de sua filha de quatro anos, ou professoras de escolas da periferia que perguntam como encaminhar alunos problemáticos ou violentos. “A gente que já passou por isso, e sabe a dor que os pais estão sentindo, pode dar um apoio e ajudar um pouco nessa hora”, diz Masataka Ota, cujo drama foi acompanhado por todo o Brasil em agosto de 1997. Seu filho Ives, então com oito anos, foi seqüestrado e assassinado por três seguranças – dois deles PMs – que trabalhavam para a família. O garoto foi morto, poucas horas depois do rapto, porque os havia reconhecido. Mesmo assim, o grupo continuou negociando o resgate com a família. Presos dias depois, os criminosos cumprem pena em dois presídios de São Paulo.

O desespero e a dor começaram a ser superados no momento em que um irmão de Keiko, mãe de Ives, lhe disse que aquela situação significava uma oportunidade de aprendizado para a família. Um duro e difícil caminho para superar o sofrimento foi então iniciado, e seu obstáculo mais complexo foi perdoar os homens que tiraram a vida de Ives. “Num primeiro momento o perdão não é verdadeiro”, diz Keiko. Masataka Ota confessa que seu impulso inicial foi o de buscar vingança – “mas isso só iria destruir a mim mesmo e à minha família”, afirma. Uma série de reportagens do programa “Fantástico” que promovia encontros entre presos por assassinato e familiares das vítimas lhe deu a chance de ficar frente a frente com um dos homens que seqüestraram seu filho. O único dos três condenados a aceitar o encontro garantiu ao ex-patrão que não tinha sido o autor dos disparos. Ota lhe disse que o perdoava e saiu aliviado do presídio. A série, por sinal, foi idealizada pelo jornalista Tim Lopes, que em junho de 2002 também morreria de forma bárbara nas mãos de traficantes do Rio de Janeiro.

“No momento em que o ódio deu lugar ao perdão, nasceu a Fundação Ives Ota”, conta Ota. Além do trabalho na sua rede de lojas de artigos a partir de R$ 1,00, a agenda dos pais de Ives – e outros familiares, como sobrinhos, tios e primos – é tomada por atividades na sede do movimento, viagens, palestras e contatos em lugares como escolas da periferia, unidades da Febem e presídios. Num deles, o Romão Gomes – onde cumprem pena os dois ex-PMs condenados pelo seqüestro e assassinato –, o próprio Ota trabalhou para implantar uma horta na qual os detentos possam trabalhar. O pai de Ives é contra a pena de morte, mas defende o endurecimento das leis para quem comete crimes hediondos. Sua proposta é prisão perpétua num local em que o preso possa trabalhar.

Na sede da fundação atuam voluntariamente oito psicólogas que recebem as crianças encaminhadas pelas escolas ou outras entidades. Certa vez, um garoto vindo da Febem começou a freqüentar a sede. “No início ele nunca olhava ninguém nos olhos. Depois, já conversava olhando nos olhos da gente”, conta Keiko. “Mais tarde acabaram tirando a vida dele, talvez por algum problema antigo.” A história do garoto incluía ter visto seu próprio pai matar a mãe. “A família é a base de tudo”, acredita ela. “Muitas mães vêm nos procurar porque seus filhos estão se drogando, mas a primeira coisa é resolver o problema dos pais.” Para Keiko, as oportunidades do vício e da marginalidade batem às portas de forma crescente em toda a sociedade – e elas acabam abertas pela desatenção dos pais e pela ociosidade dos filhos.
Pacotes, brinquedos e presentes ocupam hoje a sede da fundação, onde os preparativos para a festa de final de ano seguem em ritmo acelerado. Masataka Ota vê circulando e trabalhando os primos mais próximos de Ives e imagina seu filho, que seria hoje um adolescente como eles, integrado ao grupo. As filhas Vanessa, de 18 anos, e Ises, de seis – da qual Keiko engravidou pouco tempo depois da morte do filho –, também participam de todas as atividades. A festa começa às 10h deste sábado, dia 18, na Praça Ives Ota (rua Dentista Barreto com Júlio Colasso, na Vila Carrão, zona leste de São Paulo). “O que nos dá felicidade é trabalhar pela felicidade dos outros”, diz Keiko. “É uma corrente do bem. Tudo o que a gente faz em prol do outro retorna em alegria espiritual.”

Em tempo: depois de conversar com Masataka Ota, a mãe do interior de Minas desfez o acerto com os jagunços e poupou a vida do assassino de sua filha.
Contatos com o Movimento Ives Ota: fones 6942-8219 e 293-0966; e-mail: movimentoivesota @ig.com.br

 

 

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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