Nesta
quinta-feira (16), às 17h30, na sede do Instituto de Estudos
Avançados da USP, a contadora de histórias Dôra
Guimarães vai contar o conto A terceira margem do rio,
de Guimarães Rosa, e declamar o poema A máquina
do mundo, de Carlos Drummond de Andrade. Assim, em prosa e
verso, será aberta a cerimônia de lançamento
do número 52 da revista Estudos Avançados, que desta
vez traz o Dossiê Religiões no Brasil, um tema que
interessa a toda a população e costuma gerar apaixonados
debates e polêmicas. Segundo Marco Antônio Coelho, editor
executivo, não são as questões teológicas
que interessam no momento, mas as religiões do ponto de vista
da realidade social: seu impacto na sociedade, quais as que mais
crescem ou mais perdem seguidores, quais apresentam elementos novos,
como é o caso da Renovação Carismática
Católica, ou permitem reflexões sobre a relação
entre religião e ciência, tema do professor Eduardo
R. Cruz, da PUC-SP, que é ao mesmo tempo filósofo
e cientista da área de física nuclear. Não
serão, em regra, teólogos os autores dos estudos apresentados,
mas professores de reconhecida competência, oriundos de várias
áreas do conhecimento, notadamente cientistas sociais, tanto
da USP como de outras universidades brasileiras, que em alguns casos
acabaram atuando quase como editores associados. À PUC do
Rio de Janeiro, em particular, o IEA deve a permissão de
uso do Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais
no Brasil, do qual foram tirados mapas, impressos em encarte.
Os editores não abriram mão de partir de dados do
IBGE, que fundamentam quase todos os estudos constantes do dossiê.
Houve também um esforço para recuperar tesouros do
passado, a exemplo do estudo de Vivaldo da Costa Lima sobre o candomblé
da Bahia na década de 1930, publicado em livro há
20 anos. Foi necessário negociar com o autor, já aos
90 anos, cortes e adaptações.
O dossiê exigiu quatro meses de trabalho, mas Marco Antônio
Coelho ainda não ficou plenamente satisfeito com o resultado.
Reconhece algumas falhas, notadamente a falta de um levantamento
da presença no Brasil do islamismo e também do judaísmo.
Pelo censo, os muçulmanos são pouco numerosos no País,
cerca de 20 mil. Eles não devem ser confundidos com os árabes
em geral, que também podem ser católicos (principalmente
os sírio-libaneses), maronitas ou ortodoxos gregos. As lacunas
observadas nesta edição poderão ser sanadas
posteriormente, segundo o editor executivo.
O Candomblé compete com outras religiões
na disputa de devotos, espaço e legitimidade
País
em mutação
Mas, afinal, qual é a maior novidade no Brasil religioso?
O recenseamento demográfico de 2000 não apenas confirma
a tendência observada ao longo da década anterior (1980-1991),
mas revela a sua aceleração: os católicos perdem
9,4 pontos porcentuais e representam agora 73,9%, ou seja, três
quartos da população do País. Ao contrário,
os evangélicos crescem 6,6 pontos, sendo os pentecostais
o principal fator dessa transformação. Do mesmo modo,
os sem-religião cresceram 2,7 pontos, representando agora
7,4% da população.
Segundo o primeiro texto do dossiê, até 1980 o Brasil
era maciçamente católico. Apenas em Rondônia
os evangélicos representavam 17,2% da população,
sendo 7,7% de evangélicos de missão e 9,5% de pentecostais.
Fenômeno parecido se observa em outras regiões da Amazônia
Acre, Amazonas, Pará, Amapá e Mato Grosso.
A diversidade religiosa dizia respeito a algumas regiões
e estava ligada principalmente à colonização
(alemã): Espírito Santo e Sul do País.
Outro fenômeno identificado no mapa continua o texto
assinado por César Romero Jacob e outros é
a participação significativa de várias cidades
grandes no movimento de diversificação religiosa:
Recife, Salvador, Belo Horizonte, Brasília, Goiânia,
Curitiba, a periferia de São Paulo e, sobretudo, o Rio de
Janeiro. A diversificação nas metrópoles se
dá por um duplo movimento: avanço rápido do
pentecostalismo e aumento no número de pessoas que se declaram
sem religião. Os dados do IBGE indicam que somente alguns
bastiões da Igreja Católica ainda resistem ao processo
de diversificação religiosa, o que se observa principalmente
no sertão nordestino e na maior parte de Minas Gerais, mas
também no interior do Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul.
Para o professor Antônio Flávio Pierucci (Sociologia-USP),
do específico ponto de vista de uma demografia religiosa,
o início do século 21 vem bater como um momento de
despedida. Hora de adeus mais uma! em que nos afastamos
um pouco mais, agora mais aceleradamente e muito mais inapelavelmente,
de um certo Brasil tradicional, vale dizer, do que ainda resta de
Brasil tradicional no campo das religiões em nosso território...
Não à toa, a antiga reza católica do Glória
ao Pai concluía em palavras desejantes: Assim como
era no princípio, agora e sempre por todos os séculos
dos séculos, amém. Não é mais
assim. Isso está acabando. Bye, bye!.
Mas a crise de tamanho não atinge só a Igreja Católica;
mais duas religiões tradicionais vão perdendo adeptos:
o luteranismo, a primeira das formações do antigo
protestantismo a se enraizar em solo brasileiro, com as levas de
imigrantes alemães no início do Império; e
a umbanda, segundo Pierucci, celebrada em prosa e verso, em
música e letra, como a religião brasileira
por excelência, primeira e única, misturada mas genuína.
Apesar da incensada brasilidade, a umbanda começou a entrar
em refluxo já na década de 1980 e desde então
não parou de encolher aos poucos. Enquanto isso, o candomblé
cresce significativamente.
Segundo anota Pierucci, no maior país da América
católica o número de evangélicos saltou
de 13. 189.282 fiéis em 1991 para 26.210.545 em 2000. Tamanho
duplicado.
O levantador Ricardinho comemora a medalha de
ouro da seleção masculina de vôlei em Atenas
Deus
é fiel
Embora o dossiê da revista do IEA seja sobre a religião
no Brasil, traz também reflexões sobre fatos observados
em outros países, com ou sem a intervenção
de brasileiros, que ajudam a entender a situação nacional.
Assim, Emerson Giumbelli (UFRJ) analisa o significado do comportamento
do torcedor da seleção brasileira de vôlei,
na Olimpíada de Atenas, que depois da vitória desfraldou
uma bandeira brasileira que continha a inscrição Deus
é fiel. A frase, comum nas competições
domésticas, é um dos indícios da religiosidade
pública, algo que se associa à expansão dos
evangélicos nas últimas duas décadas no Brasil
e ao seu impacto social e político. No mesmo dia, um dos
destaques do noticiário era o seqüestro de ocidentais
por um grupo militante no Iraque. O caso envolvia jornalistas franceses.
Os seqüestradores ameaçavam matá-los caso as
autoridades francesas não revogassem a lei que proíbe
o uso do véu muçulmano em escolas públicas.
A certa altura, o autor do artigo observa que as evidências
de que a religião se tornou incontornável na atualidade
não estão apenas nos noticiários, mas também
em debates que colocam em questão as relações
entre Estado, religião e sociedade. Ele acompanha o
trabalho da Comissão sobre a Laicidade criada em 2003
pelo governo francês e formada por 20 membros (incluindo o
intelectual Alain Touraine) e analisa o seu relatório,
que teve repercussões e consequências importantes.
Em resumo (que não é do autor do artigo), o Estado
francês aproveitou em parte as sugestões da comissão.
No entanto, se pretendia reforçar a independência dos
poderes civil e religioso, acabou funcionando como fator direto
de intervenção no campo religioso. Entre as medidas
anunciadas nesse sentido estão a criação de
uma escola nacional de estudos islâmicos, a habilitação
de capelães muçulmanos em instituições
coletivas em regime de internato, a adequação de estabelecimentos
públicos para atender a exigências religiosas em matéria
de alimentação e rituais funerários, e a inclusão
de mais dois feriados no calendário nacional francês,
correspondentes a datas sagradas no judaísmo e no islamismo.
Chico Xavier ajudou a construir a identidade espírita
no Brasil
Edir
Macedo ficou preso durante doze dias em cela especial do 91ª
DP de São Paulo
Acredito,
uai
Um texto assinado por Alexandre Cardoso (UFMG) conta a história
de uma pesquisa realizada nos anos 2001 e 2002 em Belo Horizonte
e que funcionaria como projeto piloto para outras pesquisas semelhantes
em Pequim, Varsóvia, Cidade do Cabo e Detroit, neste ano.
Alguns grupos dirigidos por professores da UFMG planejaram a pesquisa,
cada um no seu tema. Na questão religiosa, os pesquisadores
queriam obter dados não apenas sobre o pertencimento
religioso das pessoas, mas também sobre seus envolvimentos
institucionais com as igrejas e mágicos profissionais,
bem como sobre o universo das crenças mágico-religiosas
e até mesmo de poderes mágicos que admitissem ter.
Foi dada aos entrevistados uma relação de palavras,
ou coisas sobre as quais deveriam se manifestar, tais como Deus,
Bíblia, demônio, Nossa Senhora, santos, poder das orações,
espírito, feitiço, horóscopo e seres extraterrestres.
Algumas conclusões iniciais da pesquisa, adiantadas pelo
autor do estudo: Diríamos, pelos nossos dados, que
a diversidade é relativa e amplamente dominada pelas tradições
cristãs. Com efeito, concedendo-se que a crença em
espíritos pode ser integrada ao cosmo cristão, esse
perfez 80,1% das crenças admitidas na amostra. Entre
os mineiros, 52% assistem, assistiram ou estão dispostos
a assistir a uma missa (porcentagem que Cardoso considera pequena
demais para a mais católica das capitais brasileiras); 39%
frequentam, freqüentaram ou estão dispostos a freqüentar
um culto evangélico (número maior do que se poderia
imaginar); 18,8% se declaram dispostos a participar de reuniões
espíritas (número alto, que pode indicar uma peculiaridade
do mineiro ou do belo-horizontino); 15,3% disseram que já
recorreram a serviços de astrólogos, cartomantes,
mães e pais-de-santo, ou algum tipo de vidente (caso a investigar
e avaliar o poder da magia entre os brasileiros). Os dados indicam
ainda que aproximadamente um terço das pessoas da amostra
acredita possuir o dom da premonição; um sétimo,
o da mediunidade e praticamente todas, o da fé. Tudo isso,
segundo o autor do texto, denota fortíssimo componente mágico
em nossa religiosidade, com implicações importantes.
Luiz Alberto Gómez de Souza (sociólogo atuante no
Rio de Janeiro, antigo militante da Ação Católica)
escreve sobre As várias faces da Igreja Católica,
ressaltando as datas históricas, os movimentos transformadores
e as personagens de maior destaque em cada período: 1922
e seguintes (Centro Dom Vital, Ação Católica,
Tradição, Família e Propriedade ); 1932 (Ação
Integralista Brasileira); 1930 a 1945 (Dom Hélder Câmara
e os movimentos católicos da juventude); 1952 (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil); 1960 (Movimento Educação
de Base); 1956 (Sudene, com a participação da Igreja);
1964 (golpe militar, Igreja dividida).
Segundo Souza, a Igreja Católica vive hoje uma contradição
interna e ele conclui : Talvez, hoje, estejamos mais próximos
da Igreja do começo dos anos de 50, final do pontificado
de Pio 12, do que dos tempos do Papa João 23 e do Vaticano
2o.
A mestra Zu Lai (á esq.) no interior do
templo budista inaugurado em outubro de 2003
Carismáticos
Se a Igreja Católica vai perdendo fiéis, é
certo que uma parte dela cresce e atua com vigor nunca visto. É
a Renovação Carismática Católica (RCC),
que piedosamente se opõe às Comunidades Eclesiais
de Base (CEBs) e ao estilo da igreja que surgiu na fase áurea
das teologias inspiradas na Libertação. Segundo Edênio
Valle (PUC-SP), a RCC é a principal representante de um segmento
que tenta levar a Igreja Católica a assumir um caráter
mais intimista e pietista que social, negligenciando o seu papel
na sociedade.
O autor argumenta que os carismáticos são decorrência
da norte-americanização da cultura brasileira. Constato
que o way of life dos americanos atingiu praticamente todos os aspectos
e estilos de nosso modo de viver, comer, trabalhar e usar o tempo
livre... O comportamento religioso brasileiro não poderia
escapar à pressão global que nos chega do poderoso
irmão do Norte. Valle acrescenta que esse lídimo
produto norte-americano tem progenitores ianques pelos seus
dois lados, pelo do pai (o pentecostalismo) e pela mãe (o
catolicismo americano em busca de novas vias de expressão).
Outra influência teria sido dos Cursilhos da Cristandade,
movimento espanhol que introduziu na igreja técnicas fortes
que mexem com o emocional do grupo.
Se aparentemente as práticas dos carismáticos se confundem
com as dos pentecostais, a RCC soube introduzir elementos de diferenciação,
notadamente os que os seus adeptos chamam as três brancuras,
isto é, Nossa Senhora, a Eucaristia e o papa. Com isso, diz
o autor do estudo, a identidade católica da RCC foi garantida
e é reforçada agora por três armas de extraordinário
poder de fogo: a centralidade da Bíblia e de Jesus Cristo,
a manifestação livre de carismas na comunidade em
festa e as curas e exorcismos, vistos como comprovação
do poder de Deus. A RCC está organizada em todo o País
e possui uma máquina que funciona dentro de razoáveis
padrões de modernidade. Nesse contexto, foi importante o
surgimento de figuras carismáticas de grande prestígio
na mídia. Os mais conhecidos, lembra Valle, são os
padres cantores, os fundadores de organizações e os
pregadores de TV ou rádio. O católico médio,
hoje em dia, dificilmente saberá o nome do presidente da
CNBB, mas todos sabem quem é o padre Marcelo. Ainda
sobre esse padre, o autor do artigo diz que o acordo entre o sacerdote
e a Globo permitiu que realizasse uma grande proeza, a de reunir
em um mesmo lugar 2 milhões de pessoas para um culto religioso,
sem esquecer que leva a sua mensagem a outros milhões de
telespectadores pela televisão. E acrescenta: Esse
efeito extraordinário não pode ser explicado apenas
pelo talento evangelizador do padre Marcelo.
Edênio Valle considera que as congregações religiosas,
o mais importante esteio da Igreja Católica no passado, encontram
dificuldades em se adaptar às exigências de um mercado
religioso dominado pelos carismáticos. Suas obras
tradicionais (colégios, hospitais, instituições
sociais, paróquias) se tornam verdadeiros elefantes brancos
que apresentam sua resposta aos desafios presentes da evangelização.
Sobre a expansão pentecostal no Brasil escreve Ricardo Mariano
(FFLCH-USP). Principal igreja nessa modalidade, a Universal do Reino
de Deus, fundada por Edir Bezerra Macedo, teve expansão recorde:
entre 1980 e 1999, o número de templos cresceu 2.600%. Desde
o início, o pastor adotou a evangelização eletrônica
como carro-chefe de sua estratégia proselitista e não
demorou muito para comprar, em 1990, a Rede Record. Com tendência
liberalizante, a igreja só não tolera a prática
do fumo, do álcool, das drogas e do sexo extraconjugal. Houve
tempos em que se desencadeou uma série de críticas
e acusações ao missionário, em razão
de seus métodos heterodoxos de arrecadação,
agressão física contra adeptos dos cultos afro-brasileiros
e investimentos empresariais milionários. O bispo chegou
mesmo a ser detido pela polícia quando tentava embarcar para
o exterior levando muitos dólares cuja origem não
conseguia explicar convincentemente.
Missa
realizada pelo Padre Marcelo Rossi no Santuário Terço
Bizantino na zona Sul de São Paulo
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