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odó, “8 segundo o dicionário Houaiss, tem como principais significados os de envolvimento amoroso; namoro; paixão (...); sentimento de afeto; estima, apreço, afeição. Palavra doce e musical, de origem brasileira e uso informal, ela foi rapidamente assimilada e introduzida no universo vocabular de algumas centenas de timorenses que mantiveram contato com estudantes da USP (Universidade de São Paulo), PUC (Pontifícia Universidade Católica) e Universidade Presbiteriana Mackenzie presentes em Díli, capital do Timor Leste, entre 25 de agosto e 3 de dezembro últimos. Com a missão de colaborar para a reintrodução da língua portuguesa como idioma oficial daquela pequena ilha do Sudeste Asiático, 18 estudantes dessas universidades tiveram pouco mais de três meses para motivar grupos heterogêneos locais para o aprendizado da língua. Mas pela “choradeira” da despedida no aeroporto em Díli, é possível afirmar que os monitores brasileiros conseguiram muito mais que simplesmente sensibilizar aquelas comunidades para o aprendizado do português.

“Não sei o que foi aquilo, não. Todos entraram num estado de comoção que é difícil descrever o que foi que aconteceu ali. Os timorenses gostam muito dos brasileiros”, diz Vera Busquets, mestranda do Mackenzie e coordenadora em Timor desta primeira etapa do Programa de Cooperação Acadêmica e Cultural Universidades em Timor Leste. Para Vera, a rápida assimilação vocabular pode ser um reflexo prático, porém pequeno dos resultados obtidos nesta fase inicial, que ganhou o nome de Canção Popular e Cultura Brasileiras em Timor Leste: Hibridismo Cultural e Comunitarismo Lingüístico em Execução e Discussão.

Regina Britto e crianças cantando: a música como integração lingüística

Assinado por Regina Helena Pires de Brito, professora do Mackenzie e doutora pela FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP, o projeto lingüístico e pedagógico-cultural da primeira etapa tem co-autoria dos professores Benjamin Abdala Júnior e Magda Carneiro, da CCint (Comissão de Cooperação Internacional) da USP. Coordenado pelas três universidades envolvidas, contou com patrocínio da Infraero e apoio do escritório de representação do Ministério das Relações Exteriores em São Paulo. Segundo Regina, o programa prevê desdobramentos futuros, tanto na área de Língua Portuguesa, como em Cooperação Judiciária, Saúde e Agricultura e com o envio de novas missões de estudantes à ilha.

É certo que os versos memoráveis de Eu só quero um xodó, cantados por Gilberto Gil, ajudaram neste intercâmbio vocabular-cultural e até fizeram com que a canção entrasse para os repertórios de bandas timorenses. Mas além de Gil, ícones da MPB, como Chico Buarque, e cantores e grupos populares como Leonardo, Sandy e Júnior, KLB, Fala Mansa e Karametade também deram sua contribuição, já que suas músicas foram ouvidas nas oficinas que Regina prefere chamar de “aulas de motivação para o aprendizado do português”, em vez de lições de língua portuguesa propriamente ditas.
Em 2001, com o território ainda destroçado e as missões de pacificação da ONU (Organização das Nações Unidas) apenas iniciando a reconstrução do país, Regina visidou a ilha e realizou um estudo sociolingüístico local em parceria com o lingüista timorense Benjamin Corte-Real, hoje reitor da Universidade Nacional de Timor-Leste. “O governo federal já havia selado compromisso com as autoridades timorenses para ensinar o português, o que deveria ser feito através do Alfabetização Solidária. A partir desta descrição da situação lingüística, tive a idéia de estruturar aulas com músicas porque as pessoas lá são como os brasileiros, muito musicais e alegres. Mas esta idéia só vingou agora com a parceria entre as universidades e o trabalho dos estudantes”, afirma.

Durante o levantamento lingüístico-cultural realizado em 2001, período em que um acidente numa estrada em ruínas interrompeu sua gravidez, Regina conta que conheceu o enviado da ONU Sérgio Vieira de Mello, brasileiro que liderou a missão de reconstrução do país. “Tenho convicção de que foi graças ao carisma dele e à confiança que despertou naquele povo que o caminho para o nosso trabalho se abriu. Era uma figura muito amada. Quando dizíamos que éramos brasileiros, em vez de falarem ‘Pelé, samba’, falavam o nome dele. Sérgio tem um monumento lá e os timorenses rezaram uma missa em agosto último para homenageá-lo”, diz.


Programa de Cooperação Acadêmica e Cultural Universidades em Timor Leste

Regina e diversos monitores constataram mudanças comuns no comportamento dos timorenses que participaram do programa. “A maior vitória do projeto foi conseguir com que os timorenses olhassem as pessoas de frente e falassem com igualdade. Sempre foram muito tímidos e reprimidos, talvez pela educação e costumes rígidos impostos durante a ocupação.”
Todas as atividades foram registradas em documentos escritos e audiovisuais, entre eles o documentário em face de edição produzido pelo estudante da PUC Rodrigo Gontijo e realizado em parceria com a TV PUC e TV Mackenzie. O trabalho deverá ser exibido em série pelo Canal Universitário “provavelmente entre fevereiro e março”, segundo Gontijo. “Dividiremos em vários temas, mostrando as aulas, o alojamento em que ficamos, as festas paras as quais éramos convidados, os casamentos, as viagens, histórias pessoais e depoimentos”, afirma. Regina prevê também um livro sobre esta primeira etapa, mas não tem data prevista para lançamento.



Palavras solidárias

“Não fomos lá para dizer ‘olha, somos parecidos’ mas, ao contrário, para mostrar e respeitar as diferenças e que não há melhor nem pior na diferença. A relação intercultural foi muito interessante.(...)
(Francisco Figueiredo de Souza, Jornalismo USP e Relações Internacionais PUC-SP)

“O Brasil tem uma imagem muito forte no Timor Leste devido ao trabalho do Sérgio Vieira de Mello. Ele aprendia a língua dos lugares onde trabalhava para poder ficar mais perto do povo. Falava tétum fluentemente e os locais se sentiam muito honrados por isto. Qualquer cidadão comum se lembra dele.
(Rodrigo Gontijo, Comunicação e Multimeios PUC-SP)

“O lugar é abençoado, com pessoas muito simpáticas, apesar de tudo o que sofreram. Eu e muitos colegas passamos a valorizar mais as pequenas coisas que temos no nosso país, como paz, liberdade e família. (...)
(...) Nossas aulas estimulavam a criatividade e eram dadas de maneira informal, completamente diferente do sistema indonésio que priorizava a ‘decoreba’ e a hierarquia, inclusive com uso da palmatória. Os timorenses estranharam nossa forma de ensinar e gostaram muito”.
(Nerissa Fernanda de Medeiros, Letras PUC-SP)

“Sempre sonhei em fazer um trabalho humanitário e a experiência superou minhas expectativas. Houve um envolvimento muito forte entre os grupos, além da sensibilização para o aprendizado do português.
(...)Além de ‘xodó’, também passaram a utilizar muito as palavras ‘saudade’ e ‘felicidade’.
(Nara de Lima e Sá, Jornalismo USP. Em breve a estudante irá expor no Espaço D’Ávila, no núcleo de Jornalismo da USP, seu trabalho de fotorreportagem realizado no Timor Leste)

“Impressionou muito o elo estabelecido entre os grupos timorenses e os brasileiros. Eles não têm o hábito de convidar estrangeiros para festas e casamentos e faziam isto com os brasileiros. Há timorenses que, apesar das dificuldades, arranjam uma forma de mandar email ou telefonar para seus ex-monitores.”

(Vera Busquets, coordenadora em Timor-Leste da primeira etapa
do programa e mestranda em Letras Mackenzie)



Identidade nacional

Após 24 anos de guerra civil e dominação indonésia, os timorenses agora lutam para reconquistar sua auto-estima e identidade nacional. Neste processo, grande parte da sociedade timorense assim como o governo, comandado atualmente pelo ex-líder guerrilheiro Xanana Gusmão, querem retomar o uso oficial do português porque esta foi a língua da resistência utilizada pelos guerrilheiros para não serem compreendidos pelas tropas de ocupação.

Descoberto e colonizado pelos portugueses no período das Grandes Navegações (séculos 15 e 16), o Timor apareceu num mapa ocidental pela primeira vez em 1512. Território estratégico entre Austrália, Indonésia, Filipinas e que dá acesso à China, foi invadido pelas tropas do ditador indonésio Suharto em 1975. Conquistou sua independência em 1999, ano em que a crise asiática chegou ao seu ápice. Durante a ditadura de Suharto, foram sacrificadas 200 mil pessoas e o idioma bahasa indonésio foi imposto à população, que ficou proibida de falar o português e de praticar o catolicismo.

“A população acima dos 40 anos de idade em geral tem memória do português. A língua ainda é falada principalmente por ex-guerrilheiros, pois durante a ocupação as mensagens eram enviadas em português para não serem decifradas pelos indonésios. Por isto, é considerada a língua da resistência. Daí a importância de retomá-la. É parte da história do país e uma forma de reafirmar a identidade nacional e a independência”, explica Regina.

Segundo a lingüista, o Timor possui mais de 23 línguas catalogadas. O tétum, de origem local, é o idioma oficial mais falado. O português deverá se tornar a segunda língua oficial, afirma.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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