Deixe todos os sons que você conhece emudecerem.
De alma aberta e ouvido atento, vá folheando o livro Ponte
entre povos um lançamento do Sesc São Paulo
, ao som dos três CDs que acompanham a edição.
E se permita atravessar uma ponte invisível para depois remar
contra a correnteza no rio Paru do Leste. Se conseguir chegar na
outra margem, com certeza ouvirá um universo banhado pelo
rio Amazonas, rodeado de matas e cortado por igarapés através
da música dos índios do Amapá. Canções
que embalam as crianças, que brindam a boa caça, que
despertam os seres entre os sonhos da mata e da terra.
Um sonho que conta com a organização e sensibilidade
de Marlui Miranda. Cantora, compositora e musicóloga, há
mais de 20 anos ela persegue o ideal de divulgar a diversidade da
música dos índios. Ponte entre povos refere-se
ao sentimento da passagem de uma cultura para a outra, num entrelaçar
de seus diferentes hemisférios musicais, explica Marlui.
É como a construção de uma ponte abstrata,
feita de trocas musicais. Foi realizado no Estado do Amapá,
extremo Norte do Brasil, onde se fala o português, francês,
holandês e o créole, além dos idiomas indígenas
carib, aruak e tupi.
Marlui observa que naquele Estado coexistem culturas de núcleos
urbanos tipicamente de origem africana, com ligações
na cultura européia do século 19 e na cultura dos
povos indígenas da região. Quem vai ao Amapá
tem a impressão de que a maioria da população
é composta de músicos, atuando em vários gêneros:
MPB, choro, regional, capoeira, brega, zouk, salsa, merengue, marabaixo,
clássico, pop, instrumental, lambada, caribenha... E, finalmente,
o indígena. É exatamente naquele Estado que há
a maior diversidade na música dos povos indígenas.
Fluindo
das matas
O projeto do livro Ponte entre povos nasceu em abril de 2001, quando
a cidade de Macapá comemorava a Semana do Índio, que
sempre foi importante no calendário de eventos. O Amapá
é o único Estado do Brasil onde todas as terras indígenas
foram demarcadas e homologadas, lembra Marlui. Na época,
aconteceram duas oficinas com a participação dos estudantes
da Escola de Música Walkíria Lima e de cantadores
indígenas. Essas oficinas se repetiram ao longo do ano e
contaram também com a presença de professores da Orquestra
do Teatro Municipal de São Paulo.
Marlui foi ensaiando e selecionando um repertório que pudesse
dar uma amostra dessa musicalidade que flui das matas do Amapá.
Os estudantes e integrantes da orquestra de câmara da Escola
Walkíria Lima foram aprendendo e convivendo com a música
dos índios. E o resultado está na edição
do livro e na gravação dos três CDs. O projeto
teve o apoio e o incentivo do casal João Alberto e Janete
Capiberibe (na época, governador e deputada estadual do Amapá),
que sempre tiveram como meta preservar a cultura do Amapá,
em toda a sua natureza. Sempre tivemos clareza quanto à
importância da sabedoria e do amor dos índios para
a nossa cultura de não-índios, explica o atual
senador. Nascidos na Amazônia, aprendemos a respeitar
o valor que tem nossa floresta e nos sentimos movidos por ela, intuitivamente,
sempre que nos propomos a pensar e decidir sobre o que fazer para
melhorar a vida dos que vivem na região.
Capiberibe defende e vem procurando divulgar a sabedoria dos índios.
Afirma que a cultura extraordinária que possuem transparece
em tudo o que fazem, desde a organização social nas
aldeias, o emprego das cores no que desenham e pintam, os detalhes
que exibem nos artefatos que produzem, a delicadeza das fibras que
trançam e especialmente a sua música cheia de significados.
Nós, ditos civilizados, somos desatentos com os sons
e enxergamos pouca coisa do que vemos no meio da floresta, porque
acreditamos que a cultura dos europeus que descobriram
e ocuparam a Amazônia há 500 anos é superior
e nos basta. Hoje vemos, no entanto, que podemos construir um diálogo
inteligente resultante do encontro de saberes, conjugando o tradicional
e o novo, a vivência e a ciência, e as diversas formas
de olhar e sentir o mundo na sua extensa e perfeita diversidade
amazônica.
O projeto Ponte entre Povos está, como justifica Capiberibe,
impregnado dessas idéias. A ponte construída
aqui é uma via de mão dupla: permite o conhecimento
mútuo de musicalidades diferentes e tem também a missão
de valorizar aquilo que por muito tempo foi deixado de lado, mas
que, entretanto, carrega o belo não pressentido. Esperamos
que essas canções possam abrir caminho e se alargar
para chegar, suavemente, aos ouvidos do mundo.
A cultura material dos povos indígenas
do Amapá é muito diversificada: coexistência
de múltiplas expressões
Contra
a correnteza
O livro traz algumas histórias curiosas sobre o esforço
dos índios saindo das matas para gravar os CDs em um estúdio
em Macapá, uma cidade pequena e preservada, espaçosa,
ventilada, sem arranha-céus, que deixa entrever em seu horizonte
azulado a sombra da ilha de Marajó. Marlui Miranda
lembra o esforço de Paxinã Poty Apalaí para
chegar às gravações, tão grande como
a vontade de cantar a música de seus antepassados. Ele
vinha navegando pelo rio Paru do Leste de canoa e o motor do barco
quebrou numa pedra. Vieram, ele e Sarina Apalaí, seu filho,
remando três dias contra a correnteza até alcançar
a aldeia Pururé, de onde seguiriam para Macapá de
avião, um monomotor. Lá estava o aviãozinho
esperando, já carregado, quase indo embora, para nosso desespero,
mas eles chegaram a tempo, trazendo uma bolsa de palha com os instrumentos
musicais purupuru ruweny, lucime, turekoka , as roupas
cerimoniais, cocares, cera de abelha, urucum e o motor quebrado
do barco para consertar.
Nessa convivência com os índios, Marlui percebeu que
há algo em comum entre um violino e um casco de tracajá.
São dois instrumentos que soam por fricção.
O violino utiliza o breu; o purupuru ruweny utiliza a cera de abelha
e tem uma tonalidade destemperada. Surgiu a idéia de produzirmos
os mesmos sons em ambos os instrumentos de maneira bem aproximada.
A pesquisadora explica que os pizzicatos dos violinos, os sons das
cravelhas e volutas se fundiram de maneira leve e não invasiva
ao som do tracajá, entrando aos poucos e deixando outros
instrumentos interferir sem pressa: os glissandos do contrabaixo,
os sons da flauta transversal, que conversa com a flauta de pã,
imitando pássaro. Tudo isso resultou nas nossas vozes
em uníssono como que dizendo: estamos tocando juntinho com
os índios do Amapá, pela primeira vez.
O primeiro CD é aberto com a música de Paxinã
Poty e seu filho Sarina. É exatamente a entrada para esse
mundo desconhecido e tão ignorado no respeito às diferenças.
Para surpresa dos ouvintes, a segunda faixa é Uma pequena
serenata noturna, de Mozart. Justo Mozart. Ou melhor, sempre Mozart,
com as suas composições irreverentes, belas, alegres
e tão sem preconceitos.
Apresentamos Mozart para os índios sem falar de Mozart,
só sentindo a emoção mozarteana. Empolgaram-se
e encontraram sua maneira de navegar na correnteza onde a música
flui. O que viram nela? A idéia de um tempo passando,
observa a pesquisadora. Parece que encontraram um ponto comum:
o pulso orgânico de Mozart, lembrando o tempo dos pés
batendo o tambor teefa, ou o tempo do puupuluen, purupuru ruweny,
o casco do tracajá.
A terceira faixa traz Minueto em lá maior do Quinteto em
lá menor número 5, opus 14, de Luigi Boccherini, que
nasceu em Lucca, na Itália, em 1743, e contribuiu decisivamente
para a evolução da arte musical do século 18.
Com a participação de Wolfgang Amadeus Mozart e Boccherini,
a musicóloga Marlui Miranda destaca a erudição
das músicas indígenas que vêm a seguir. No livro,
elas vêm acompanhadas de partituras, fotografias com legendas
e explicações detalhadas sobre o seu significado.
A música Kanawã Oreni (ou o Canto da canoa da bebida)
fala de uma canoa amarrada com uma corda no porto, onde fica sozinha,
mas, metaforicamente, ela se refere à bebida que um convidado
levou para uma festa. Logo em seguida, vem Emenhir Yoso Katohu (ou
a Música da madrugada), que é uma canção
para acordar o dono da bebida apresentado na composição
anterior.
Todas as canções vão apresentando o ritmo da
alma dos índios do Amapá. Eles compõem
para marcar e sincronizar as energias durante os rituais e sublinhar
os vários momentos do cotidiano, diz Marlui. Seja
um acalanto, uma cantiga de amigo, uma cantiga de caça, de
fazer roça, um canto ou choro de boas-vindas, uma cantiga
de casamento, de pescaria, cantiga para marcar a passagem do tempo,
cantiga de furar a orelha ou o nariz, cantiga de ninar, de atrair
o amor, de chorar a perda do amor, do contato com brancos e negros...
São milhares de estilos de canções, improvisos
e danças. Todas as músicas indígenas obedecem
a regras e apresentam, muitas vezes, estruturas complexas.
Para compreender tanta riqueza, Marlui avisa que é preciso
abrir os ouvidos a essa paisagem sonora, um ouvido atento para estabelecer
paralelos entre culturas. A música indígena,
em geral, quando interpretada dentro do contexto dos rituais, não
tem a duração das pequenas peças que ouvimos
nestes CDs, mas são parte de extensos sistemas musicais,
nos quais as músicas são muito longas, podendo durar
até mais de 48 horas.
Para Lux Vidal professora do Departamento de Antropologia
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP, que também assina um dos textos do livro ,
apresentar as músicas dos índios em situações
e contextos novos, como no projeto de Marlui Miranda, é um
caminho para mantê-las vivas e torná-las conhecidas.
A música é uma manifestação profundamente
humana, coletiva e potencialmente transcultural, podendo sempre
ser compartilhada. Para os índios, a música é
também a voz dos espíritos, das aves míticas
e dos seres sobrenaturais que, nos tempos primevos, de acordo com
a filosofia indígena, eram gente como nós. Hoje, cada
espécie se diferencia das outras e ocupa o seu domínio:
o céu, as matas e o fundo dos rios. Não existe mais
entre elas linguagem comum, a não ser a música que
ainda consegue unir a todos, como habitantes de um mesmo universo.
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