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Ponte entre povos, de Marlui Miranda (organização), Sesc-SP,
416 páginas, R$ 50,00 (preço simbólico)



D
eixe todos os sons que você conhece emudecerem. De alma aberta e ouvido atento, vá folheando o livro Ponte entre povos – um lançamento do Sesc São Paulo –, ao som dos três CDs que acompanham a edição. E se permita atravessar uma ponte invisível para depois remar contra a correnteza no rio Paru do Leste. Se conseguir chegar na outra margem, com certeza ouvirá um universo banhado pelo rio Amazonas, rodeado de matas e cortado por igarapés através da música dos índios do Amapá. Canções que embalam as crianças, que brindam a boa caça, que despertam os seres entre os sonhos da mata e da terra.

Um sonho que conta com a organização e sensibilidade de Marlui Miranda. Cantora, compositora e musicóloga, há mais de 20 anos ela persegue o ideal de divulgar a diversidade da música dos índios. “Ponte entre povos refere-se ao sentimento da passagem de uma cultura para a outra, num entrelaçar de seus diferentes hemisférios musicais”, explica Marlui. “É como a construção de uma ponte abstrata, feita de trocas musicais. Foi realizado no Estado do Amapá, extremo Norte do Brasil, onde se fala o português, francês, holandês e o créole, além dos idiomas indígenas carib, aruak e tupi.”

Marlui observa que naquele Estado coexistem culturas de núcleos urbanos tipicamente de origem africana, com ligações na cultura européia do século 19 e na cultura dos povos indígenas da região. “Quem vai ao Amapá tem a impressão de que a maioria da população é composta de músicos, atuando em vários gêneros: MPB, choro, regional, capoeira, brega, zouk, salsa, merengue, marabaixo, clássico, pop, instrumental, lambada, caribenha... E, finalmente, o indígena. É exatamente naquele Estado que há a maior diversidade na música dos povos indígenas.”

Fluindo das matas

O projeto do livro Ponte entre povos nasceu em abril de 2001, quando a cidade de Macapá comemorava a Semana do Índio, que sempre foi importante no calendário de eventos. “O Amapá é o único Estado do Brasil onde todas as terras indígenas foram demarcadas e homologadas”, lembra Marlui. “Na época, aconteceram duas oficinas com a participação dos estudantes da Escola de Música Walkíria Lima e de cantadores indígenas. Essas oficinas se repetiram ao longo do ano e contaram também com a presença de professores da Orquestra do Teatro Municipal de São Paulo.”

Marlui foi ensaiando e selecionando um repertório que pudesse dar uma amostra dessa musicalidade que flui das matas do Amapá. Os estudantes e integrantes da orquestra de câmara da Escola Walkíria Lima foram aprendendo e convivendo com a música dos índios. E o resultado está na edição do livro e na gravação dos três CDs. O projeto teve o apoio e o incentivo do casal João Alberto e Janete Capiberibe (na época, governador e deputada estadual do Amapá), que sempre tiveram como meta preservar a cultura do Amapá, em toda a sua natureza. “Sempre tivemos clareza quanto à importância da sabedoria e do amor dos índios para a nossa cultura de não-índios”, explica o atual senador. “Nascidos na Amazônia, aprendemos a respeitar o valor que tem nossa floresta e nos sentimos movidos por ela, intuitivamente, sempre que nos propomos a pensar e decidir sobre o que fazer para melhorar a vida dos que vivem na região.”

Capiberibe defende e vem procurando divulgar a sabedoria dos índios. Afirma que a cultura extraordinária que possuem transparece em tudo o que fazem, desde a organização social nas aldeias, o emprego das cores no que desenham e pintam, os detalhes que exibem nos artefatos que produzem, a delicadeza das fibras que trançam e especialmente a sua música cheia de significados. “Nós, ditos civilizados, somos desatentos com os sons e enxergamos pouca coisa do que vemos no meio da floresta, porque acreditamos que a cultura dos europeus que ‘descobriram’ e ocuparam a Amazônia há 500 anos é superior e nos basta. Hoje vemos, no entanto, que podemos construir um diálogo inteligente resultante do encontro de saberes, conjugando o tradicional e o novo, a vivência e a ciência, e as diversas formas de olhar e sentir o mundo na sua extensa e perfeita diversidade amazônica.”

O projeto Ponte entre Povos está, como justifica Capiberibe, impregnado dessas idéias. “A ponte construída aqui é uma via de mão dupla: permite o conhecimento mútuo de musicalidades diferentes e tem também a missão de valorizar aquilo que por muito tempo foi deixado de lado, mas que, entretanto, carrega o belo não pressentido. Esperamos que essas canções possam abrir caminho e se alargar para chegar, suavemente, aos ouvidos do mundo.”

 


A cultura material dos povos indígenas do Amapá é muito diversificada: coexistência de múltiplas expressões


Contra a correnteza

O livro traz algumas histórias curiosas sobre o esforço dos índios saindo das matas para gravar os CDs em um estúdio em Macapá, “uma cidade pequena e preservada, espaçosa, ventilada, sem arranha-céus, que deixa entrever em seu horizonte azulado a sombra da ilha de Marajó”. Marlui Miranda lembra o esforço de Paxinã Poty Apalaí para chegar às gravações, tão grande como a vontade de cantar a música de seus antepassados. “Ele vinha navegando pelo rio Paru do Leste de canoa e o motor do barco quebrou numa pedra. Vieram, ele e Sarina Apalaí, seu filho, remando três dias contra a correnteza até alcançar a aldeia Pururé, de onde seguiriam para Macapá de avião, um monomotor. Lá estava o aviãozinho esperando, já carregado, quase indo embora, para nosso desespero, mas eles chegaram a tempo, trazendo uma bolsa de palha com os instrumentos musicais – purupuru ruweny, lucime, turekoka –, as roupas cerimoniais, cocares, cera de abelha, urucum e o motor quebrado do barco para consertar.”

Nessa convivência com os índios, Marlui percebeu que há algo em comum entre um violino e um casco de tracajá. “São dois instrumentos que soam por fricção. O violino utiliza o breu; o purupuru ruweny utiliza a cera de abelha e tem uma tonalidade destemperada. Surgiu a idéia de produzirmos os mesmos sons em ambos os instrumentos de maneira bem aproximada.”

A pesquisadora explica que os pizzicatos dos violinos, os sons das cravelhas e volutas se fundiram de maneira leve e não invasiva ao som do tracajá, entrando aos poucos e deixando outros instrumentos interferir sem pressa: os glissandos do contrabaixo, os sons da flauta transversal, que conversa com a flauta de pã, imitando pássaro. “Tudo isso resultou nas nossas vozes em uníssono como que dizendo: estamos tocando juntinho com os índios do Amapá, pela primeira vez.”
O primeiro CD é aberto com a música de Paxinã Poty e seu filho Sarina. É exatamente a entrada para esse mundo desconhecido e tão ignorado no respeito às diferenças. Para surpresa dos ouvintes, a segunda faixa é Uma pequena serenata noturna, de Mozart. Justo Mozart. Ou melhor, sempre Mozart, com as suas composições irreverentes, belas, alegres e tão sem preconceitos.

“Apresentamos Mozart para os índios sem falar de Mozart, só sentindo a emoção mozarteana. Empolgaram-se e encontraram sua maneira de navegar na correnteza onde a música flui. O que viram nela? A idéia de um tempo passando”, observa a pesquisadora. “Parece que encontraram um ponto comum: o pulso orgânico de Mozart, lembrando o tempo dos pés batendo o tambor teefa, ou o tempo do puupuluen, purupuru ruweny, o casco do tracajá.”
A terceira faixa traz Minueto em lá maior do Quinteto em lá menor número 5, opus 14, de Luigi Boccherini, que nasceu em Lucca, na Itália, em 1743, e contribuiu decisivamente para a evolução da arte musical do século 18.

 



Com a participação de Wolfgang Amadeus Mozart e Boccherini, a musicóloga Marlui Miranda destaca a erudição das músicas indígenas que vêm a seguir. No livro, elas vêm acompanhadas de partituras, fotografias com legendas e explicações detalhadas sobre o seu significado. A música Kanawã Oreni (ou o Canto da canoa da bebida) fala de uma canoa amarrada com uma corda no porto, onde fica sozinha, mas, metaforicamente, ela se refere à bebida que um convidado levou para uma festa. Logo em seguida, vem Emenhir Yoso Katohu (ou a Música da madrugada), que é uma canção para acordar o dono da bebida apresentado na composição anterior.

Todas as canções vão apresentando o ritmo da alma dos índios do Amapá. “Eles compõem para marcar e sincronizar as energias durante os rituais e sublinhar os vários momentos do cotidiano”, diz Marlui. “Seja um acalanto, uma cantiga de amigo, uma cantiga de caça, de fazer roça, um canto ou choro de boas-vindas, uma cantiga de casamento, de pescaria, cantiga para marcar a passagem do tempo, cantiga de furar a orelha ou o nariz, cantiga de ninar, de atrair o amor, de chorar a perda do amor, do contato com brancos e negros... São milhares de estilos de canções, improvisos e danças. Todas as músicas indígenas obedecem a regras e apresentam, muitas vezes, estruturas complexas.”

Para compreender tanta riqueza, Marlui avisa que é preciso abrir os ouvidos a essa paisagem sonora, um ouvido atento para estabelecer paralelos entre culturas. “A música indígena, em geral, quando interpretada dentro do contexto dos rituais, não tem a duração das pequenas peças que ouvimos nestes CDs, mas são parte de extensos sistemas musicais, nos quais as músicas são muito longas, podendo durar até mais de 48 horas.”

 

 



Para Lux Vidal – professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que também assina um dos textos do livro –, apresentar as músicas dos índios em situações e contextos novos, como no projeto de Marlui Miranda, é um caminho para mantê-las vivas e torná-las conhecidas. “A música é uma manifestação profundamente humana, coletiva e potencialmente transcultural, podendo sempre ser compartilhada. Para os índios, a música é também a voz dos espíritos, das aves míticas e dos seres sobrenaturais que, nos tempos primevos, de acordo com a filosofia indígena, eram gente como nós. Hoje, cada espécie se diferencia das outras e ocupa o seu domínio: o céu, as matas e o fundo dos rios. Não existe mais entre elas linguagem comum, a não ser a música que ainda consegue unir a todos, como habitantes de um mesmo universo.”


 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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