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A África na sala de aula – Visita
à história contemporânea, de
Leila Leite Hernandez, Editora Selo Negro, 680 páginas,
R$ 88,80.


A
conteceu num debate, num país europeu. Da assistência, alguém me lançou a seguinte pergunta:
– Para si, o que é ser africano?
Falava-se, inevitavelmente, de identidade versus globalização. Respondi com uma pergunta:
– E para si o que é ser europeu?
O homem gaguejou. Ele não sabia responder. Mas o interessante é que, para ele, a questão da definição de uma identidade se colocava naturalmente para os africanos. Nunca para os europeus. Ele nunca tinha colocado a questão ao espelho.

Com a citação dessa conversa, o escritor moçambicano Mia Couto inicia o seu prefácio ao livro A África na sala de aula – Visita à história contemporânea, de Leila Leite Hernandez. Couto, que tem se dedicado a contar o drama da vida em Moçambique após a independência, lembra que Leila consegue dar os contornos do rosto de um continente até então desconhecido. É das poucas historiadoras empenhadas em desfazer o universo de equívocos que envolvem o continente. “O seu texto percorre esse mar de enganos e constitui-se como um permanente alerta.” Explica que a sala de aula para onde a autora está conduzindo a África não é um lugar fechado, mas uma proposta de uma relação nova com algo que se pensava, de antemão, já conhecer.

Mia Couto tem razão. O livro de Leila aponta para uma realidade completamente ignorada, justificada por uma afirmação afrocentrista que sofre do mesmo erro básico do racismo branco. Ou seja, “acreditar que os africanos são uma coisa simples, uma categoria uniforme, capaz de ser reduzida a uma cor de pele”.

O desafio da autora é quebrar os preconceitos para ensinar os leitores a enxergar a África como um entrelaçamento de diversas culturas e processos históricos, de identidades complexas e, muitas vezes, contraditórias. Importante destacar que as lições reunidas neste livro foram ministradas pela historiadora nas suas aulas do curso de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, de 1998 a 2003.

Identidades complexas

O livro de Leila chega em um momento oportuno, quando o Brasil procura estreitar as relações comerciais com o continente africano, que mantêm um intercâmbio considerado muito baixo, cerca de US$ 6,5 bilhões em 2004. Neste mês, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva realizou sua quarta viagem pela África desde que assumiu a Presidência. Declarou que pretende estreitar os laços para buscar posições comuns entre o Brasil e a África para as futuras negociações em organizações como a ONU e a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Porém, para estreitar os laços, seria muito importante conhecer a África com suas identidades complexas e contraditórias. A África na sala de aula mostra bem essas diferenças. Com densa pesquisa historiográfica, cartográfica e iconográfica, a autora revisita temas fundamentais para a compreensão da história contemporânea do continente africano, como as violências, a discriminação e as arbitrariedades dos regimes colonialistas das nações européias. “Fatos que fortaleceram a têmpera das elites africanas e a indignação dos povos do continente, levando os movimentos de independência a clamar por direito, liberdade e igualdade como sinônimo de imparcialidade e justiça.”

A esperança de Leila é de que o livro possa suscitar críticas, questões e debates capazes de inspirar pesquisas, multiplicando a quantidade e a qualidade de estudos sobre os dilemas da contemporaneidade no continente africano. “Busco também uma aproximação com o leitor, sobretudo para dar livre curso à evidência e à crítica às prenoções, aos preconceitos e às lacunas do conhecimento que alimentam equívocos capazes de quase divinizar ou demonizar as características culturais próprias da África.”

Intercâmbio

O livro, como define a autora, é dividido em quatro grupos de capítulos, cada um deles com um eixo central. No primeiro, são abordados os preconceitos e as prenoções sobre a África, apontando seu dinamismo interno evidenciado pelos intercâmbios comerciais e culturais. Também há uma preocupação em oferecer uma síntese da historiografia do continente, destacando a tradição oral africana que, até então, não tinha recebido a devida atenção dos historiadores, como, por exemplo, os griots, que são trovadores, menestréis, contadores de histórias e animadores públicos. “Muitas vezes, respaldados pela música e valendo-se da coreografia, contam coisas antigas, cantando as grandes realizações dos bravos e dos justos, celebrando o heroísmo e salvaguarda da honra.” Com essa análise, a historiadora traz à tona inúmeros aspectos históricos, políticos, sociológicos e antropológicos próprios dos vários povos do continente.

O segundo grupo de capítulos aborda os mecanismos e instrumentos de dominação dos diferentes sistemas coloniais, com ênfase na burocracia colonial fundada no exercício da violência, no etnocentrismo e, em particular, no racismo, tendo como contraponto os movimentos de resistência que eclodiram em toda a África. O terceiro grupo analisa o papel das elites culturais diante das questões de política e identidade. “Nele exploramos os processos de formação da consciência nacional, do protonacionalismo e dos nacionalismos tanto continental, cuja unidade é centrada, sobretudo, na idéia de uma raça africana, como os específicos de cada território, fundados na idéia de nação, ainda que por vezes utilizada como termo intercambiável de raça”, esclarece Leila. “Também propomos compreender como a África se insere na história política propriamente dita, das complexas interconexões que insinuam aspectos políticos e ideológicos dentro do continente e com os demais, propiciando organização de interesses e articulação de solidariedades, somando esforços para as lutas contra a dependência em suas diversas formas.”

No último grupo, a historiadora procura mostrar como as elites africanas incorporaram ao ideal de independência os projetos de reformulação institucional e de modernização econômica, social e política. “Ressaltamos as diferentes estratégias de luta, da negociação à guerra de guerrilhas, acentuando que, não raras vezes, as estratégias coexistiram para que as independências fossem alcançadas.”

Para a autora, na formação dos Estados-nações, os países africanos foram em grande parte condicionados por um domínio moral e cultural incapaz de romper a dependência de suas antigas metrópoles. Esse conjunto de elementos configurou uma verdadeira estrutura geradora do subdesenvolvimento manifestado pela fome maciça, êxodos e guerras civis. Segundo Leila, será preciso que o Estado-nação promova a paz, transcendendo a multiplicidade histórico-cultural de seus povos. “Esse processo implica a construção real, concreta e sobretudo histórica dos direitos humanos africanos, mas também o exercício de uma soberania externa que limite as intervenções de grandes conglomerados empresariais de países europeus.”

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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