Aconteceu num debate, num país europeu. Da assistência,
alguém me lançou a seguinte pergunta:
Para si, o que é ser africano?
Falava-se, inevitavelmente, de identidade versus globalização.
Respondi com uma pergunta:
E para si o que é ser europeu?
O homem gaguejou. Ele não sabia responder. Mas o interessante
é que, para ele, a questão da definição
de uma identidade se colocava naturalmente para os africanos. Nunca
para os europeus. Ele nunca tinha colocado a questão ao espelho.
Com
a citação dessa conversa, o escritor moçambicano
Mia Couto inicia o seu prefácio ao livro A África
na sala de aula Visita à história contemporânea,
de Leila Leite Hernandez. Couto, que tem se dedicado a contar o
drama da vida em Moçambique após a independência,
lembra que Leila consegue dar os contornos do rosto de um continente
até então desconhecido. É das poucas historiadoras
empenhadas em desfazer o universo de equívocos que envolvem
o continente. O seu texto percorre esse mar de enganos e constitui-se
como um permanente alerta. Explica que a sala de aula para
onde a autora está conduzindo a África não
é um lugar fechado, mas uma proposta de uma relação
nova com algo que se pensava, de antemão, já conhecer.
Mia Couto tem razão. O livro de Leila aponta para uma realidade
completamente ignorada, justificada por uma afirmação
afrocentrista que sofre do mesmo erro básico do racismo branco.
Ou seja, acreditar que os africanos são uma coisa simples,
uma categoria uniforme, capaz de ser reduzida a uma cor de pele.
O desafio da autora é quebrar os preconceitos para ensinar
os leitores a enxergar a África como um entrelaçamento
de diversas culturas e processos históricos, de identidades
complexas e, muitas vezes, contraditórias. Importante destacar
que as lições reunidas neste livro foram ministradas
pela historiadora nas suas aulas do curso de História da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP, de 1998 a 2003.
Identidades
complexas
O livro de Leila chega em um momento oportuno, quando o Brasil procura
estreitar as relações comerciais com o continente
africano, que mantêm um intercâmbio considerado muito
baixo, cerca de US$ 6,5 bilhões em 2004. Neste mês,
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva realizou sua quarta
viagem pela África desde que assumiu a Presidência.
Declarou que pretende estreitar os laços para buscar posições
comuns entre o Brasil e a África para as futuras negociações
em organizações como a ONU e a Organização
Mundial do Comércio (OMC).
Porém, para estreitar os laços, seria muito importante
conhecer a África com suas identidades complexas e contraditórias.
A África na sala de aula mostra bem essas diferenças.
Com densa pesquisa historiográfica, cartográfica e
iconográfica, a autora revisita temas fundamentais para a
compreensão da história contemporânea do continente
africano, como as violências, a discriminação
e as arbitrariedades dos regimes colonialistas das nações
européias. Fatos que fortaleceram a têmpera das
elites africanas e a indignação dos povos do continente,
levando os movimentos de independência a clamar por direito,
liberdade e igualdade como sinônimo de imparcialidade e justiça.
A esperança de Leila é de que o livro possa suscitar
críticas, questões e debates capazes de inspirar pesquisas,
multiplicando a quantidade e a qualidade de estudos sobre os dilemas
da contemporaneidade no continente africano. Busco também
uma aproximação com o leitor, sobretudo para dar livre
curso à evidência e à crítica às
prenoções, aos preconceitos e às lacunas do
conhecimento que alimentam equívocos capazes de quase divinizar
ou demonizar as características culturais próprias
da África.
Intercâmbio
O livro, como define a autora, é dividido em quatro grupos
de capítulos, cada um deles com um eixo central. No primeiro,
são abordados os preconceitos e as prenoções
sobre a África, apontando seu dinamismo interno evidenciado
pelos intercâmbios comerciais e culturais. Também há
uma preocupação em oferecer uma síntese da
historiografia do continente, destacando a tradição
oral africana que, até então, não tinha recebido
a devida atenção dos historiadores, como, por exemplo,
os griots, que são trovadores, menestréis, contadores
de histórias e animadores públicos. Muitas vezes,
respaldados pela música e valendo-se da coreografia, contam
coisas antigas, cantando as grandes realizações dos
bravos e dos justos, celebrando o heroísmo e salvaguarda
da honra. Com essa análise, a historiadora traz à
tona inúmeros aspectos históricos, políticos,
sociológicos e antropológicos próprios dos
vários povos do continente.
O segundo grupo de capítulos aborda os mecanismos e instrumentos
de dominação dos diferentes sistemas coloniais, com
ênfase na burocracia colonial fundada no exercício
da violência, no etnocentrismo e, em particular, no racismo,
tendo como contraponto os movimentos de resistência que eclodiram
em toda a África. O terceiro grupo analisa o papel das elites
culturais diante das questões de política e identidade.
Nele exploramos os processos de formação da
consciência nacional, do protonacionalismo e dos nacionalismos
tanto continental, cuja unidade é centrada, sobretudo, na
idéia de uma raça africana, como os específicos
de cada território, fundados na idéia de nação,
ainda que por vezes utilizada como termo intercambiável de
raça, esclarece Leila. Também propomos
compreender como a África se insere na história política
propriamente dita, das complexas interconexões que insinuam
aspectos políticos e ideológicos dentro do continente
e com os demais, propiciando organização de interesses
e articulação de solidariedades, somando esforços
para as lutas contra a dependência em suas diversas formas.
No último grupo, a historiadora procura mostrar como as elites
africanas incorporaram ao ideal de independência os projetos
de reformulação institucional e de modernização
econômica, social e política. Ressaltamos as
diferentes estratégias de luta, da negociação
à guerra de guerrilhas, acentuando que, não raras
vezes, as estratégias coexistiram para que as independências
fossem alcançadas.
Para a autora, na formação dos Estados-nações,
os países africanos foram em grande parte condicionados por
um domínio moral e cultural incapaz de romper a dependência
de suas antigas metrópoles. Esse conjunto de elementos configurou
uma verdadeira estrutura geradora do subdesenvolvimento manifestado
pela fome maciça, êxodos e guerras civis. Segundo Leila,
será preciso que o Estado-nação promova a paz,
transcendendo a multiplicidade histórico-cultural de seus
povos. Esse processo implica a construção real,
concreta e sobretudo histórica dos direitos humanos africanos,
mas também o exercício de uma soberania externa que
limite as intervenções de grandes conglomerados empresariais
de países europeus.
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