Pode-se encarar a morte na visão irônica
de um personagem de Luis Fernando Verissimo (A morte é
a última coisa que espero que me aconteça),
mas, a sério, estudiosos e profissionais que lidam cotidianamente
com ela certamente concordarão com o escritor alemão
Thomas Mann, que em seu monumental A montanha mágica recitou:
Todo o interesse pela morte e pela doença não
passa de uma forma de exprimir aquele que se tem pela vida.
É o que exprimiram as cerca de 400 pessoas de vários
Estados que, nos quatro últimos dias de abril, se reuniram
na Associação Bnai Brith, no bairro dos
Jardins, em São Paulo, para as longas sessões do 3o
Congresso Brasileiro de Tanatologia e Bioética. Entre os
promotores do evento estavam o Laboratório de Estudos da
Morte (LEM) do Instituto de Psicologia da USP e o Laboratório
de Estudos e Intervenções Sobre o Luto (LELu) da Faculdade
de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP).
Tanatologia é um termo que se refere ao estudo da morte,
mas o encontro debateu temas que, como disse Mann, expressam o interesse
e a perplexidade dos seres humanos com a finitude,
o que se passa antes dela e a forma como cada um de nós chegará
a ela. Neste congresso, vamos ouvir, debater, discordar e
concordar sobre temas que nos incomodam, ao mesmo tempo em que abrem
perspectivas importantes e necessárias para nosso crescimento,
como pessoa e como profissional. Esse objetivo não seria
possível se não estivéssemos dispostos a encarar
questões incômodas, disse na conferência
de abertura a professora Maria Helena Pereira Franco, criadora do
LELu e presidente do congresso.
Dessa vontade surgiram discussões éticas, filosóficas,
científicas e religiosas sobre início e fim da vida,
aborto, eutanásia, luto em qualquer etapa da vida, em razão
da perda de pessoas queridas com qualquer idade inclusive
no caso de abortos espontâneos, quando os pais sofrem com
a perda do que era esperado como celebração de uma
vida e acaba trazendo a realidade da morte , o tratamento
que a mídia dá à morte e a forma como o público
consome essas notícias, e assim por diante. As conferências
e mesas foram proferidas por profissionais de áreas como
medicina, enfermagem, psicologia e assistência social. Uma
platéia atenta e participativa, composta em sua esmagadora
maioria por mulheres e que reunia, além de profissionais
dessas áreas, um bom número de estudantes, ouviu também
nomes do jornalismo, da filosofia, das ciências da religião,
do direito, da sociologia e da Igreja.
Em nossos dias, tudo é fast, tudo é rápido.
As pessoas dizem que não têm mais tempo para pensar
em coisas como a morte, sentenciou o filósofo Mário
Sérgio Cortella, professor da PUC, para um público
disposto a parar para pensar no assunto. Não tenho
tempo, então esqueço, como se a ausência da
reflexão evitasse o fenômeno, ponderou Cortella
numa conferência em que passeou pelas mudanças que
o conceito de morte enfrentou em diferentes épocas e culturas.
Na modernidade, a morte é uma ofensa à glória,
à capacidade e à realidade humanas, disparou,
tendo a arrogância e a onipotência de nossa raça
como alvo. Talvez estejamos precisando de alguém que
nos diga: Tu és mortal, como faziam escravos
com os antigos generais romanos.
O congresso em São Paulo: a morte como
expressão do amor à vida
Atenção
ao cuidador
Pensar na indesejada das gentes é, sim, importante,
porque ela é parte do desenvolvimento humano. A professora
do Instituto de Psicologia da USP Maria Júlia Kovács,
coordenadora do LEM, salientou que é importante prover o
que chamou de educação para a morte
um processo de aprendizagem e autoconhecimento que não se
extingue ao longo de toda a existência. Abrir a possibilidade
de falar sobre a morte é estimular perguntas, expressão
de sentimentos de todas as ordens e com variadas intensidades, e
a quebra de isolamento entre familiares, pessoas amigas e profissionais,
disse a professora.
Houve momentos nas palestras e mesas em que os dramas desses profissionais
particularmente da área médica foram
relatados. Como comunicar aos familiares que um quadro clínico
é irreversível? Como avisar um adolescente que já
passou por diversos tratamentos que o câncer voltou e que
desta vez as perspectivas terapêuticas são reduzidas?
Deve-se contar toda a verdade a uma criança que está
com prognóstico fechado (uma maneira de o jargão
médico driblar o fato de que aquele pequeno ser humano tem
pouco tempo de vida)? Como comunicar aos parentes a morte trágica
de um familiar vitimado por um crime ou acidente?
Não só as vítimas e os enlutados devem ser
alvo de atenção. É importante cuidar
dos cuidadores, e várias instituições
já possuem serviços de acompanhamento terapêutico
para os profissionais que lidam com morte e luto em sua rotina.
Na USP, um dos trabalhos em andamento é o projeto de pesquisa
Cuidando da qualidade de vida do profissional cuidador,
que envolve o Instituto de Psicologia, a Faculdade de Enfermagem
e o Hospital Universitário.
Em muitos casos, a paixão de quem se dedica ao atendimento
a pacientes terminais supera a mera obrigação profissional.
Isso ficou patente na emoção com que a psicóloga
Elisa Perina descreveu situações que vivenciou no
Instituto Boldrini, de Campinas, que trata de crianças com
câncer. Numa ocasião, uma criança que tinha
poucos dias de vida decidiu passá-los em sua casa, ao lado
de sua família e de suas próprias coisas, e não
cercada por aparelhos hospitalares. A mãe disse que não
teria condições de suportar sozinha essa realidade
e pediu a ajuda da psicóloga. Elisa mudou-se por três
dias para a casa da família, na qual acompanhou todo o processo
de despedida. Em 25 anos de oncologia pediátrica, posso
dizer que a fé e a espiritualidade ajudam muito em todas
essas dificuldades, não importando qual seja a concepção
religiosa, afirmou.
Espetacularização
No painel sobre Aspectos bioéticos e o luto e morte
por violência, a coordenadora adjunta do Núcleo
de Estudos sobre a Violência (NEV) da USP, Nancy Cardia, apresentou
números que atestam a realidade de verdadeira guerra civil
no País, especialmente quanto ao aumento dos assassinatos
de jovens nas regiões metropolitanas. A distribuição
desses crimes não é democrática nem homogênea,
mas demonstra a superposição de carências,
afirmou. Entre 1980 e 2000, houve quase 600 mil homicídios
no Brasil.
O pobre, quando morre, é estatística, o rico
é destaque, definiu o jornalista Heródoto Barbeiro,
da Rádio CBN e da TV Cultura, em outro momento do congresso.
A mídia vive o que chamou de tanatojornalismo,
cuja principal característica é a espetacularização
da morte embora, tenha ressalvado, a morte não seja
destaque apenas na mídia, mas também nos livros de
história e nos museus. No jornalismo atual, lamentou Heródoto,
a lógica do mercado tem prevalecido sobre a do interesse
público, com a transformação de apresentadores
de programas policialescos do final de tarde em verdadeiros atores
os pistoleiros do entardecer, como já
definiu um crítico da mídia.
Ainda no painel sobre violência, o psicólogo José
Paulo Fonseca, do Grupo Ipê (Intervenções Psicológicas
em Emergências), relatou a experiência desses profissionais
ao prestar assistência a familiares de vítimas em casos
como a queda do avião da TAM em São Paulo, em 1996.
A perda provoca reações de choque, negação,
ambivalência, revolta, negociação, depressão,
aceitação e adaptação. Quanto mais forte
o vínculo, maior a dor da perda, definiu Fonseca. Penso
que a coisa importante é ajudar as pessoas a saber que você
realmente não pode se preparar para um desastre, disse
ao Jornal da USP o psiquiatra inglês Colin Murray Parkes,
uma das maiores autoridades mundiais em luto. Parkes, um dos conferencistas
do congresso, assistiu familiares das vítimas britânicas
dos atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York e dos tsunamis
que varreram a Ásia no final de 2004
Especialistas discutem temas como aborto e eutanásia:
pensar na indesejada é parte do desenvolvimento
humano
Saúde
pública
Um dos eixos centrais do congresso relacionava a bioética
com temas nos quais as decisões a ser tomadas envolvem dilemas
de várias naturezas. Uma das mesas em que posições
antagônicas foram explicitadas foi a realizada sobre o tema
Bioética e decisões no início da vida,
em que a maior parte da discussão girou em torno do aborto.
O advogado Celso Ferenczi, professor da Faculdade de Direito da
PUC, abriu sua exposição exibindo um vídeo
norte-americano que mostra um feto de cerca de doze semanas sendo
retirado do útero num processo de aborto por sucção.
Ferenczi condenou o aborto em qualquer circunstância, argumentando
que o ser humano difere dos demais pela capacidade de amar e por
possuir alma e espírito. Uma criança anencéfala
tem capacidade de amar o outro e é um ser amado pelos pais
e outros familiares, disse, referindo-se à possibilidade
de legalização do aborto para fetos sem cérebro,
atualmente em debate no Superior Tribunal de Justiça.
A sessão havia sido aberta pela assistente social Irotilde
Pereira, coordenadora do Serviço de Aborto Legal do Hospital
Jabaquara, pioneiro do País nesse tipo de programa, implantado
em 1989. A interrupção da gravidez não é
considerada crime quando a gestação coloca em risco
a saúde da mãe ou quando resulta de estupro. O
aborto no Brasil é uma questão de saúde pública
e de injustiça social, disse. Irotilde revelou que
o hospital faz uma média de cinco atendimentos diários
de mulheres que tentam provocar aborto por conta própria,
provocando seqüelas graves e em muitos casos a morte. Não
é proibindo que o aborto vai deixar de existir. Temos que
dar a essas mulheres a garantia de optar ou não pelo aborto,
com toda a assistência da saúde pública,
defendeu.
O médico Marco Segre, professor da Faculdade de Medicina
da USP e membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa,
perguntou: Qual a qualidade de vida da mãe com um filho
que ela não quer? Qual será a qualidade de vida desse
filho?. Para ele, as religiões querem atribuir à
ciência a definição sobre o momento em que a
vida começa, mas essa definição não
é consensual e depende de fatores históricos e culturais
determinados. Bioética implica decidir a cada instante
o que vale mais. Em relação ao aborto, não
vamos perguntar se o feto é vida ou não é vida,
mas sim analisar o que está em discussão naquele momento,
disse.
Curiosidade
mórbida
Se não há consenso sobre quando se pode dizer que
efetivamente começa uma vida, tampouco há sobre quando
ela acaba. No simpósio Morte, mídia e ética,
o médico Claudio Cohen, também professor da Faculdade
de Medicina da USP, lembrou os conceitos freudianos de que todos
temos inclinações mórbidas, as chamadas pulsões
de morte afinal, quem não pára para olhar atentamente
um acidente na estrada? Cohen e o jornalista Heródoto Barbeiro
discordaram, de forma cortês e bem-humorada, na avaliação
sobre os procedimentos da mídia, mas concordaram que o público
vale dizer, a sociedade tem mecanismos para escolher
ou rejeitar os programas e veículos, e suas opções
devem ser entendidas também sob a ótica do livre-arbítrio.
Quando meu jornal na TV Cultura entrava no mesmo horário
do programa do Ratinho, nunca conseguimos ganhar dele na audiência,
disse o jornalista.
O médico Cláudio Cohen relatou as mudanças
para que se atestasse um óbito ao longo dos últimos
tempos: o parâmetro já foi a parada cardiorrespiratória,
depois a morte cerebral e, atualmente, é a morte encefálica.
Onde as pessoas têm melhores condições de vida
e a tecnologia está mais avançada, morre-se cada vez
mais tarde, e por isso é preciso pensar também se
é justificável e necessário prolongar indefinidamente
a sobrevida à custa de caríssimos recursos. Trata-se,
aliás, de prolongar artificialmente a vida ou de adiar artificialmente
a morte?
Nessa esteira vieram à tona as diferenças entre eutanásia
(quando o processo é induzido por medicamentos, pelo desligamento
de aparelhos ou de outra forma), distanásia (quando todos
os recursos tecnológicos são utilizados ao extremo
para manutenção da sobrevida) e ortotanásia
(a opção por dar ao paciente os chamados cuidados
paliativos). A ortotanásia foi o que fez o papa João
Paulo II ao determinar que não queria mais voltar ao hospital,
e sim morrer em seus aposentos no Vaticano, lembrou Claudio
Cohen. O caso do papa e da americana Terri Schiavo, aliás,
foram mencionados e analisados em muitos momentos do congresso.
No mesmo painel, o médico e velejador, como fez questão
de salientar André Perdicaris descreveu alguns cenários
da morte na atualidade, quando praticamente todas as pessoas não-vitimadas
por crime ou acidente vivem seus últimos instantes num hospital.
Morre-se num ambiente desconhecido, cercado por estranhos
e dezenas de aparelhos, às vezes sendo mantido inconsciente
artificialmente. Ou pode-se morrer em casa, cercado de pessoas queridas
e das suas coisas, e recebendo, como última visão
nesta vida, um olhar amigo. Pensando na primeira pessoa do singular:
o que eu gostaria para mim? O que você gostaria para você?
Perguntas que, formuladas sobre a morte, levam quem se propuser
a fazê-las a interrogar a própria vida.
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O
jornalista Heródoto Barbeiro: mídia vive da
espetacularização da morte
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Colin Parkes, em palestra no congresso: O que quer que
a pessoa
sinta tem que ser colocado para fora,
e isso será terapêutico |
É
preciso expressar os sentimentos
O
psiquiatra inglês Colin Murray Parkes se dedica a estudar
as questões que envolvem o luto desde os anos 50. Para
ele, a morte e o luto são eventos que mudam a vida,
e a perda faz parte desse processo. Não há
dúvida de que o luto é a experiência psicológica
mais dolorosa que qualquer pessoa irá viver. O luto
é um preço que temos de pagar. Algumas pessoas
acham seu luto tão doloroso que ficam com medo de amar
novamente. Mas o preço vale a pena, disse o psiquiatra
em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo.
No congresso em São Paulo, Parkes autografou muitos
exemplares de seu livro Luto: estudos sobre a perda na vida
adulta (Summus, 1998), traduzido para o português pela
professora Maria Helena Pereira Franco. O texto apresenta
questões presentes na experiência da perda por
morte, mas também por outros tipos de perda, como divórcio,
desemprego, esterilidade/infertilidade, migração
forçada etc., e destina-se principalmente a profissionais
envolvidos com assistência a pessoas enlutadas. Sobre
sua experiência com familiares das vítimas do
11 de Setembro e dos tsunamis, o especialista deu um breve
depoimento ao Jornal da USP:
Penso que o importante é ajudar as pessoas a
saber que realmente não podem se preparar para um desastre.
Os maiores problemas aparecem após os desastres porque
ninguém está preparado para eles. Embora todo
hospital tenha um plano para acidentes, muito poucos incluem
serviços psicológicos ou apoio para enlutados
o que nos desastres modernos freqüentemente é
a única coisa necessária. Quando um avião
cai, não há sobreviventes, não há
ninguém para resgatar. Trata-se apenas de recuperar
os corpos e prover apoio para as famílias.
No 11 de Setembro, de fato, houve muito poucos feridos, mas
milhares de mortos. O governo britânico mandou uma equipe
da Inglaterra para Nova York para assistir as famílias
que haviam perdido alguém nos atentados. E a palavra
é realmente perdido, porque àquela
altura não se sabia com certeza se a pessoa estava
viva ou morta. Em alguns casos, os corpos nunca foram encontrados.
De qualquer forma, uma possível identificação
nunca será o mesmo que um funeral adequado.
O que fizemos foi dar o que chamamos de pronto-socorro
psicológico. Estávamos lá como
um ombro para o choro daquelas pessoas, para agir como acompanhantes
enquanto faziam-se as buscas. Elas precisavam disso para percorrer
os bancos de dados de todos os hospitais de Nova York para
assegurar-se de que a pessoa desaparecida não estava
inconsciente ou em choque em algum hospital; precisavam pendurar
cartazes com a foto da pessoa e viam que as estações
de metrô e muros já estavam cheios desses cartazes.
À medida que passava a primeira semana, ficava cada
vez mais claro que as pessoas desaparecidas estavam realmente
mortas.
Passávamos algum tempo no Family Center, um espaço
colocado à disposição por uma entidade
local. Muitas pessoas acabaram conversando com outros enlutados,
o que foi muito terapêutico.
Tivemos um culto em memória no qual nosso primeiro-ministro,
Tony Blair, compareceu, assim como Kofi Annan (secretário-geral
da ONU), Bill Clinton (ex-presidente dos Estados Unidos) e
outros. Depois de encerrada a cerimônia, um dos parentes
enlutados perguntou a Bill Clinton: O que o senhor faria
se fosse o presidente? Ele ficou por mais de uma hora
conversando e tentando responder àquela pergunta. Isso
foi muito interessante.
Ficamos muito tempo com aquelas famílias, nós
as conhecemos muito bem e elas se sentiram muito bem apoiadas.
Quando voltaram à Inglaterra, as colocamos em contato
com os serviços de apoio a enlutados ou seja,
houve uma continuidade nesse trabalho. Eu as encontrei novamente
nas cerimônias em memória dos mortos na Inglaterra
e houve um reconhecimento do valor do trabalho e de que esse
trabalho realmente fez diferença.
Fizemos algo similar em relação ao tsunami.
Todos os passageiros dos aviões que chegavam ao aeroporto
de Heathrow, em Londres, vindos do Oceano Índico, eram
consultados se vinham da área da tragédia e
se gostariam de conversar com um profissional ou terapeuta.
Ficamos com aquelas pessoas pelo tempo que elas quiseram conversar
sobre suas experiências, colocando-as em contato com
equipes de resgate na região atingida e mais uma vez
fazendo esse pronto-socorro psicológico.
Nós não dizemos: você tem que chorar,
ou você tem que fazer isso ou aquilo. O
que quer que a pessoa sinta tem que ser colocado para fora,
e isso será terapêutico.
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