A
primeira vista, pode soar estranho integrar o sociólogo Florestan
Fernandes no elenco dos chamados grandes intérpretes do Brasil,
justamente porque foi a geração de 1930 aquela que
é reconhecida como fundadora dessa tradição
fecunda do pensamento brasileiro. Antonio Candido, em prefácio
clássico escrito para a quarta edição de Raízes
do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, registrou a importância
da tríade que distinguiu a vida intelectual entre nós,
ao revelar a clivagem presente nas obras de Gilberto Freyre, de
Caio Prado Jr. e de Sérgio Buarque de Holanda, sublinhando
as particularidades desses autores que rompiam com as dicções
dominantes no passado. A despeito do caráter diverso presente
nas interpretações que escreveram, esses pensadores
ensejaram as expressões mais renovadoras daqueles anos de
intensas transformações em todos os setores da sociedade
brasileira. De fato, os ensaios escritos por esses intelectuais
herdeiros do modernismo marcarão a cultura no Brasil em toda
a sua trajetória ulterior.
As referências presentes na reflexão de Antonio Candido
são, sem sombra de dúvida, as do modernismo em franco
processo de difusão, no seu impulso de dar o tom a toda manifestação
cultural, movimento tão bem analisado por nosso mestre. A
formação do pensamento brasileiro passa, segundo esse
registro, a coincidir com a constituição de uma intelectualidade
de corte modernista, identificada com as questões do País
e dedicada à construção da sociedade moderna
neste lado do mundo.
A classificação dos ensaístas dos anos 1930
como intérpretes do Brasil, em claro obscurecimento
dos intelectuais precedentes, elucida-se quando os inserimos, assim,
na tradição modernista, assumida como manifestação
mais genuína da nossa vida do espírito. O reconhecimento
de que foram os introdutores da verdadeira ruptura no tecido cultural
derivou, em certa medida, da aceitação dos cânones
avançados nos centros hegemônicos; resultou, igualmente,
de mudanças no estilo das reflexões, patentes na incorporação
da linguagem das vanguardas que dará a modulação
dos escritos intelectuais; originou-se, similarmente, da alteração
do ângulo de visão que migrará do referencial
externo para a valorização das nossas singularidades.
Isto é, se a construção de interpretações
globais sempre marcou a produção intelectual no País
desde a formação da nacionalidade, ganhando corpo
sobretudo nos momentos de crise, no decênio de 1930, com o
ensaio modernista, sincronizou-se o problema da reflexão
a viabilidade de inserção na modernidade de
uma formação histórica que escapa do padrão
com a forma da linguagem, reconhecida na ruptura com a norma
culta portuguesa. Os intérpretes, ao ajustarem o foco nas
nossas especificidades, valorizaram a nossa diversidade, afirmaram
os atributos que nos distinguem, abandonando os conceitos de que
somos realização incompleta, carente de qualidades
civilizadas, produto do espelhamento nas experiências da modernidade
dominante. Residem exatamente aí as profundas mudanças
introduzidas pelos pensadores do terceiro decênio do século
passado, que darão a pauta do exercício intelectual
a partir de então.
O sociólogo Florestan Fernandes inscreve-se no campo dos
intelectuais embebidos das singularidades que nos distinguem, comprometido
até a medula com os problemas agudos da sociedade brasileira,
como se depreende nos temas que estudou, nas abordagens que construiu,
na sua participação pública. A despeito de
Florestan ter dirigido críticas acerbas à obra de
Freyre, especialmente contra as concepções do sociólogo
sobre as relações raciais e o preconceito, as interpretações
freyrianas foram fundamentais para formar o seu problema de investigação
no tratamento da condição dos egressos da escravidão
na emergência da modernidade brasileira que, diga-se de passagem,
apresenta uma visão tão inovadora quanto a anterior,
embora em sentido oposto.
De outro lado, pode-se argumentar que Florestan Fernandes considerava
a forma ensaio inadequada para a expressão rigorosa em sociologia
tido como estilo típico da intelectualidade de origem
estamental , que exigia estudos monográficos, afastando-o,
por isso, da tradição dos intérpretes do Brasil,
apesar de hoje integrar as grandes coleções dedicadas
aos nossos pensadores. Realmente, Florestan Fernandes mudou o estilo
de trabalho, que caminhou dos ensaios para as monografias, o que
o tornou, até por isso, personagem central da constituição
da moderna ciência social brasileira, introduzindo nova ruptura
no modo de se conceber a atividade intelectual. Por essa razão,
a sua última obra de grande fôlego A revolução
burguesa no Brasil Ensaio de interpretação
sociológica surpreende pela absorção
do estilo que rejeitava, recusa sempre anunciada nos moldes da sua
reconhecida veemência combativa.
O entendimento desse aparente recuo pressupõe retomar a questão
da nossa tradição intelectual, assim como das tensões
e das hesitações subjacentes à constituição
da sociedade moderna nestes trópicos, que se exprimem, com
toda a contundência, nos dilemas vividos pelos intelectuais
no Brasil no esforço de construir diagnósticos globais,
em busca de saídas para os nossos impasses, sobretudo em
momentos de crise intensificada. Com esse livro, publicado em 1975,
Florestan Fernandes elucida o seu percurso, ao mesmo tempo em que
revela as constrições e desafios da vida intelectual
em nossa sociedade, o que o torna uma espécie de testamento
intelectual.
A obra contempla um amplo período histórico que se
estende do Movimento da Independência, momento de constituição
da nação, aos desdobramentos do golpe militar de 1964,
período de enraizamento final dos valores burgueses. Nesse
século e meio de história nacional, gestou-se a
formação do chamado Brasil moderno, processo
complexo, intrincado e particular, diferenciando-nos do desenvolvimento
típico da modernidade ocidental e da constituição
da sociedade de classes. A especificidade da formação
histórica brasileira manifestou-se na singularidade da nossa
revolução burguesa, germinação cultural
da silenciosa transformação socioeconômica gerada
no longo período de construção do Estado nacional.
Na intenção explícita do autor, pretende-se
resumir as principais linhas de evolução do
capitalismo e da sociedade de classes no Brasil, apresentadas
numa linguagem mais simples possível, afastada
da forma acadêmica que personalizava a sua vasta produção
sociológica. Muito embora esse desejo declarado, o texto
preserva as marcas inconfundíveis do seu estilo, ajustado
ao primado do saber científico, modelado pela utilização
precisa dos conceitos e pela adesão irrestrita aos procedimentos
rigorosos de construção do pensamento. Até
por isso, o autor não se alforriou do seu compromisso intelectual
de analisar as raízes dessas realizações enviesadas
da modernidade em contexto periférico, espécie de
revelação da procura de alternativas efetivamente
civilizadas. Emerge daí a mobilidade da sua visão,
que opera com aproximações e afastamentos do capitalismo
dependente em relação aos valores inerentes à
sociedade burguesa, permitindo-lhe tratar dos limites e potencialidades
da ordem social competitiva no Brasil. As resistências apontadas
atestam a vigência de uma realidade bloqueada, tendo em vista
o sufocamento dos valores modernos pelos princípios particularistas
advindos do passado que, ao se mesclarem ao novo, recuperaram o
sopro da vida.
A revolução burguesa no Brasil representa, paradoxalmente,
a crise do poder burguês, uma vez que a classe não
conciliou revolução econômica e revolução
nacional e coube ao Estado a tarefa de ser o elo entre os interesses
privados e o poder público, debilitando o seu papel político
abrangente. Ao perpetuar-se o drama de origem da nossa formação
burguesa, emergiu uma deformidade histórica geradora de uma
identidade que escapa à caracterização canônica.
O livro compartilha, por esses e outros motivos, o lugar das grandes
obras de interpretação do Brasil, situando-se no mesmo
patamar das maiores contribuições do nosso pensamento.
Contraste imediatamente perceptível em uma trajetória
intelectual reconhecidamente original, A revolução
burguesa reconstruiu o drama da nossa história moderna, enquanto
teceu, no fundo, o infortúnio do exercício do intelectual
independente e formado na responsabilidade do seu ofício,
que não excluiu, ao contrário pressupôs, o compromisso
maior com o seu País, em especial com os deserdados das promessas
civilizatórias.
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