Certo
dia tentei lembrar com detalhes (e também representar) o
rosto do meu avô paterno. A imagem fluía, a tinta escorria
sobre o papel. Notei as dificuldades da memória, as facilidades
do esquecimento. Irei esquecê-lo algum dia, completamente?
Um levantamento genealógico, com nomes, datas, lugares não
preencheria a lacuna aberta: quem era ele? Como eram os outros?
Como serei eu? Daí uma busca mais que arqueológica
de familiares: fotografias, álbuns, cartões-postais,
documentos, desenhos, livros, viagens a Viena, a Munique, roupas.
Uma a uma, as fotografias posaram de algum modo como modelos, intensificadas
no diálogo com a pintura. Contemplando as fotografias, eu
contemplava e ainda contemplo a traição do tempo:
eles, tão próximos, entretanto, ilusão... A
lembrança faz, certamente, viver ausências.
Nessas ausências, Luise Weiss mergulha em um álbum
de imagens. Imagens que a memória faz fluir nas camadas de
tinta sobrepostas, nos copos dágua e de mel. Fotografias,
desenhos, gravuras e pinturas documentam rostos e contam histórias.
Quem será aquela senhora de véu branco, com vestido
preto de gola alta? Emerge do fundo preto da tela como se estivesse
presa num tempo longínquo. E aquela mulher de cabelo nos
ombros, com lábios e unhas vermelhas contrastando com a alvura
do rosto? O que esconde aquele olhar sonhador?
Em cada olhar, sorriso, gesto, a arte de Luise Weiss interfere e
marca o seu próprio tempo e sentimento. É esse caminho
da memória que a artista sugere e oferece no livro Luise
Weiss, da coleção Artistas da USP, publicada pela
Editora da USP (Edusp) e Imprensa Oficial, que será lançado
nesta quarta-feira, dia 31, na Livraria da Vila, em São Paulo.
Estes trabalhos iniciam uma busca visual, realizada como pesquisa
de material fotográfico familiar, que é a matéria
de minha tese acadêmica, explica Luise. Percebi,
de pronto, dois movimentos, constantes e contínuos: inicialmente,
a visada genealógica, explicitada no levantamento do material
visual, em que entabulei um diálogo que, por ser desejado,
se evidenciou impossível. Talvez, experiência de um
sonho, pregnância de uma fantasia. O momento seguinte é
o da convivência com a dor da nostalgia. Nisso, como num labirinto
na penumbra, gradativamente imagens revelam-se por instantes.
Diferente do que Luise havia planejado, o trabalho não surgiu
de pronto. Ele foi primeiro se delineando nos meandros da memória.
Declararam-se, simultaneamente, recortes, montagens anotações
em álbuns, livros-objetos, pequenos objetos. A pesquisa visual
transcorreu como busca de um elo entre o passado e o presente. Mas
onde escorre o tempo que não consigo segurar?
O
tempo
O tempo se deixa evidenciar nos modelos dos sapatos, no comprimento
dos vestidos, no jeito de pentear os cabelos, nos chapéus,
no corte dos bigodes. Um tempo que Luise Weiss vai colorindo com
sépia ou deixando se perder nas nuances dos muros descascados,
nas superfícies craqueladas. O mar está ali presente.
É o cenário para a nostalgia explícita nos
olhares, nos gestos. Por exemplo, a moça com a mão
esquerda enfeitada por um anel segurando a mão direita. Só
aparecem as mãos e, sobre elas, um mar azul.
O mar também representa a viagem dos imigrantes. Por
meio da água vieram, um dia, em navios de imigrantes, os
avós de Luise Weiss para o Brasil. Entre seu passado com
suas histórias e seu futuro com seus sonhos, havia apenas
a água aparentemente infinita e intransponível do
oceano, a água como médium, espaço intermediário
e meio de transporte, observa o professor Norval Baitello
Júnior, da Pontifícia Universidade Católica
(PUC). O mar e a água se faziam útero do futuro:
seus sonhos, temores, incertezas e esperanças navegavam em
águas oceânicas. Hoje, a artista Luise Weiss devolve
à água os retratos lânguidos e nostálgicos
de belas e elegantes figuras, fotografadas com pompa e circunstância,
como se as estivesse devolvendo ao seu passado.
Baitello, especialista em Comunicação e Semiótica;
Leon Kossovitch, crítico de arte e professor de Estética
no Departamento de Filosofia da USP; e os artistas Evandro Carlos
Jardim e Renina Katz assinam os textos do livro Luise Weiss. Do
horizonte largo da memória e do indagar constante com interlocutores
aparentemente silenciosos emergem essas figuras essenciais. Matéria-prima
de seus desenhos e gravuras e de uma plástica que também
serve às expressões da subjetividade, afirma
Evandro Carlos Jardim. Serenidade afetiva e ímpeto
permeiam essa experiência viva com todo o tempo que passa,
dos fatos e suas histórias, ao objeto estético deles,
conseqüente pelas imposições do gesto, pela densidade
da trama e nas iluminações pela cor. Um elo se estabelece
entre esse fazer material pleno pela intuição e uma
consideração à natureza íntima de todas
as coisas. Arte e vida, luz e sombra, penumbra, deslumbrantes, retrato.
Na avaliação de Leon Kossovitch, a arte de Luise
Weiss não ilustra uma história já escrita,
concebe-a. Ressalta: Na caixinha, a história
da família que lança Luise em obstinada busca de rostos
de antepassados para fazê-los reviver em pinturas, gravuras,
desenhos, objetos, sobreposições de imagens, gestos
que assinalam o limite da demanda: a história privada torna-se
universal pela metamorfose da Primeira Grande Guerra.
Numa carta a Luise (publicada no livro), a artista e mestre Renina
Katz faz um estudo delicado sobre o seu trabalho: Na série
de pinturas que vi, da qual você apresenta um recorte expressivo,
você se atreve com sucesso a trabalhar o negro, a sombra,
os valores intermediários e o branco com qualidade pictórica.
Digo isso porque você tem uma bagagem apreciável no
universo da gravura e poderia ter se confundido em termos de linguagem.
Mas isso não aconteceu e certamente este trabalho constitui
uma conquista a mais em termos de representação e
domínio de outras linguagens.
Luise Weiss nasceu em 18 de outubro de 1953, em São Paulo.
Cursou Artes Plásticas na Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP, de 1973 a 1977, onde também concluiu
o mestrado e o doutorado. Atualmente, é professora de Desenho
e Gravura na Universidade de Estadual de Campinas (Unicamp) e na
Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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