O bibliófilo José Mindlin:
para o crítico Antonio Candido, se houvesse no Brasil uma
boa meia dúzia de Mindlins, o País seria melhor
Existem pelo menos duas razões para que a Universidade
de São Paulo deixe de modéstia e assuma de vez que
é a melhor do Brasil: ter revelado à ciência
mundial o genoma (de uma bactéria) e ter formado um intelectual
do tamanho de Antonio Candido. Opinião de José Mindlin,
o mais novo Doutor Honoris Causa da USP, homenageado dia 29 de agosto
em sessão solene do Conselho Universitário, no auditório
da Escola Politécnica, com a concessão do título
pelo reitor Adolpho José Melfi. A informalidade do homenageado
transformou o encontro acadêmico, habitualmente sisudo e ornado
de doutas falas, numa demonstração de bom humor, generosamente
recebido e aplaudido pela platéia que lotava o recinto.
Entre outras tiradas, o bibliófilo e incentivador da cultura
disse que sempre levou a sério aquilo que deveria fazer,
mas nunca se levou muito a sério; que preferiu não
escrever o discurso de agradecimento, porque se o fizesse não
conseguiria lê-lo, além de não se sentir à
vontade em ambientes de grande pompa; que sempre se considerou integrado
à comunidade da USP, e o título que recebeu apenas
formalizou o vínculo; que ele e a mulher Guita são
os decanos de três gerações de uspianos
filhos e netos, e os bisnetos, entre 6 e 7 anos, embora ainda
não tenham se decidido, com certeza acompanharão
o resto da família. Afirmou ainda que tudo aquilo que o reitor
e o diretor da Escola de Comunicações e Artes (ECA),
professor Luiz Augusto Milanese, que o saudou oficialmente, disseram
que ele é e fez devia ser em grande parte creditado à
sua mulher, e por isso pedia que o título que lhe era concedido
fosse partilhado com Guita.
Melfi, com a mesma informalidade, disse que, com a licença
da secretária-geral da USP, professora Nina Ranieri (presente),
concedia a metade do título a dona Guita. Antes disso, Mindlin
explicou como ele e Guita um de seus dois amores, pois o
outro são os livros, conforme destacaram os oradores
se encontraram na vida. Foi na Faculdade de Direito do Largo São
Francisco, ele no terceiro ano do curso, ela caloura e cortejada
pelos partidos políticos, que a queriam filiada a seus quadros.
O melhor partido está aqui, lhe disse o terceiranista,
e a caloura acreditou. Casaram-se e desde então constituem
um exemplo de fidelidade partidária.
Antonio Candido, que o homenageado citou no início do discurso,
já não se encontrava no auditório; havia passado
rapidamente pelo local antes da cerimônia, para cumprimentar
o amigo. Em brevíssima entrevista, disse que se houvesse
no Brasil uma boa meia dúzia de Mindlins o País
seria bem melhor do que é.
Glórias mundiais
Depois de dizer que tem assistido a muita solenidade de entrega
de títulos semelhantes ao que lhe era dado pela USP e observado
que nessas ocasiões os homenageados costumam exprimir seu
reconhecimento com discursos solenes, justificou sua informalidade,
acrescentando que a distinção vinha confirmar o sentimento
que sempre teve de já integrar o meio acadêmico. E
prometeu fazer o que estivesse a seu alcance para ajudar no progresso
da sociedade. Lembrou que é 20 anos mais velho do que a USP
e pôde acompanhar a evolução da Universidade
passo a passo, desde os tempos do curso de Direito, nas glórias
e nos sofrimentos.
Considera privilégio ter conhecido os professores franceses
que ajudaram a criar a USP e formaram tantos cientistas no Brasil,
citando Fernad Braudel (historiador), Lévi-Strauss (antropólogo)
e os irmãos Bastide (Roger e Paul Arbousse), hoje todos
glórias mundiais. Disse que eles costumavam escrever
as lições no quadro-negro, achando que os alunos não
entenderiam bem o francês, o que nos deixava furiosos.
Do Bastidão (Arbousse) ficou em Mindlin uma mágoa,
segundo disse: um dia, o professor pegou por empréstimo uma
revista que trazia artigo de Monteiro Lobato sobre Lasar Segall
e não a devolveu nunca mais. A perda não teve conseqüência
maior, porque Mindlin, freqüentador de sebos, conseguiu o número
extraviado da revista, e a coleção está
completa.
Mindlin com Melfi: ligação com a
USP vem desde os tempos de estudante da Faculdade de Direito do
Largo São Francisco
Ainda no discurso, Mindlin disse que o Brasil mudou bastante, mas
as universidades brasileiras mudaram menos, e falta muita coisa
a ser feita. Nesse ponto, afirmou que a USP precisa assumir que
é a melhor do Brasil e desempenhar decididamente o papel
que lhe cabe na educação. Quanto a ele, está
pronto a participar dos debates que for necessário promover.
Elogiou a política educacional do governo paulista, que pretende
criar um Estado-leitor. Segundo o homenageado, o problema não
está nas crianças, mas nos professores, que não
estariam preparados para incentivar a leitura. Prepará-los
é a missão da Universidade, que também deve
assumir o encargo de formar alunos do primário e do secundário
aptos a entrar no ensino superior sem o favor das cotas, mas nas
mesmas condições intelectuais dos candidatos mais
privilegiados economicamente. Agindo assim, a USP vai ser
a Harvard paulistana. A primeira parte do agradecimento de
Mindlin acabou aí, mas, já ao final da cerimônia,
ele quis falar de novo, para acrescentar a homenagem a dona Guita.
Disse que a desvantagem de falar de improviso é esta: esquecer
uma parte importante da mensagem.
No discurso de saudação, o professor Milanese disse
que se a USP, em seus 72 anos, não tivesse prestado homenagem
a José Mindlin, um brasileiro de exceção,
não teria completado sua missão de educadora. O diretor
da ECA e o reitor Melfi mencionaram a importância da doação
para a USP da biblioteca de Mindlin e Guita, que será a
Brasiliana mais completa do País.
Antonio Candido lembrou que é amigo de Mindlin há
60 anos. Pertencemos a uma sociedade (Fundação
Vitae) da qual somos conselheiros e trabalhamos juntos. Temos muitas
afinidades intelectuais e afetivas, uma amizade de vida toda.
Segundo Candido, Mindlin tem a integridade, a inteligência
e o espírito público. O que fez para a Universidade
com a doação da sua biblioteca demonstra um espírito
público extraordinário.
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