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O
setor de açúcar e álcool movimenta 6% do PIB e, segundo projeções da indústria sucroalcooleira, a produção deverá crescer 50% até 2010, tendo em vista as demandas internacionais e o crescimento da tecnologia flexfuel 2 (motores de combustível flexíveis). Expandir o ramo pode ser bom para a economia brasileira. Mas, se forem mantidas as atuais técnicas de cultivo e não houver um aperfeiçoamento e aplicação rigorosa da legislação de queimadas da palha da cana-de-açúcar, o aumento das concentrações de gases tóxicos na atmosfera poderá afetar a dinâmica ambiental e agravar a situação de saúde da população que vive no entorno das regiões produtoras, aponta uma pesquisa feita no Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da USP. A dissertação de mestrado “A utilização de sistemas de informação geográfica no estudo da exposição humana aos produtos da queima da palha da cana-de-açúcar no Estado de São Paulo”, apresentada por Fábio Silva Lopes, comprova que há uma incidência maior de doenças respiratórias em regiões onde há ocorrência de queimadas em culturas canavieiras.

Os efeitos das queimadas da palha de cana-de-açúcar na saúde humana e no ambiente têm sido estudados sob os mais diferentes enfoques (leia texto na página ao lado). No trabalho de Lopes, o geoprocessamento – ou técnica de Sistema de Informação Geográfica (SIG) – mostrou-se eficaz como ferramenta auxiliar em estudos epidemiológicos e na avaliação de impactos à saúde respiratória em função da exposição humana aos compostos produzidos pela queima da palha de cana-de-açúcar, na medida em que ajudou a visualizar as áreas geográficas afetadas, afirma o autor. “Através do cruzamento de dados coletados no Datasus, no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e em outros órgãos, como o Centro de Tecnologia Coopersucar, de Piracicaba, foi possível verificar que há uma correlação espacial dos casos de doenças respiratórias nas áreas de plantio e especialmente nos períodos de queimadas, que vão de março a novembro, no Estado de São Paulo”, diz.

Embora o método utilizado permita averiguar a coincidência das internações hospitalares por problemas respiratórios nas épocas de queimadas, o pesquisador alerta que só estudos clínicos e epidemiológicos detalhados poderão comprovar a correlação entre causa e efeito daquelas doenças nos lugares estudados.
Lopes levantou dados referentes a janeiro de 2000 a dezembro de 2004 e, nesse período, verificou que foram realizadas mais de 22 mil internações ao ano por problemas respiratórios, tendo sido detectados mais de 3 mil focos de queimadas ao ano em média naquele período. Os dados referem-se a 645 municípios do Estado.

Além dos gráficos cruzando informações de áreas de plantio, queimadas, internações hospitalares e outros dados, Lopes construiu um SIG em escala mais detalhada para a região de Bauru, que despertou interesse pelo fato de concentrar muitas plantações de cana. “A região de Bauru é onde ocorre o maior foco de incêndios. Existe uma queimada ao ano para cada 500 habitantes”, compara.

A maioria dos agravos ligados à poluição do ar está relacionada a doenças pulmonares obstrutivas crônicas, como as do complexo enfisema-bronquite e asmabrônquica, constatam estudos consultados pelo pesquisador. Lopes cita em seu trabalho levantamentos relatando que pacientes com doenças crônicas do aparelho respiratório, principalmente bronquite crônica, enfisema e asma, referem agravamento dos sintomas nos períodos que coincidem com a queimada da cana. Há também, nessas épocas, uma freqüência de relatos associados a irritação em vias aéreas superiores, com ardor na garganta e nariz.

No seu doutorado, Lopes pretende aprofundar os estudos sobre o tema, também usando a técnica de geoprocessamento. “O próximo passo será construir modelagens matemáticas que possibilitem prever a abrangência da pluma de poluentes, a fim de verificar as áreas de impacto da fumaça”, afirma.

Equilíbrio

O bagaço da cana-de-açúcar possibilita a produção de energia limpa e muitas usinas já desenvolvem projetos para certificação de emissões de créditos de carbono pelo Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Há estimativas de que cada tonelada possa se transformar em US$ 4,8 mil anuais de créditos vendidos no mercado internacional, sendo esta mais uma possibilidade de riqueza originada no ramo sucroalcooleiro. Porém, o crescimento previsto da produção, com as atuais técnicas de cultivo, contribuirá para o aumento das concentrações de CO2 na atmosfera em função das queimadas que são adotadas como parte do processo de colheita da cana-de-açúcar e, conseqüentemente, também contribuirá para o aquecimento global, entre outros fatores, lembra Lopes.

O professor José Goldemberg, secretário do Meio Ambiente do Estado, ressalta, em artigo publicado na Folha de S. Paulo de 22 de maio de 2002, que “é um absurdo fazer inúmeras exigências ambientais às indústrias do Estado, tentar melhorar a disposição de lixo e resíduos tóxicos, multar os caminhões que emitem fumaça e inspecionar os automóveis para que estes emitam menos poluentes e, simultânea e paradoxalmente, permitir a queima descontrolada da cana-de-açúcar que, em certas épocas do ano, inferniza a população de parte do Estado”.

Lopes cita um levantamento segundo o qual a emissão veicular de material particulado pode chegar a 62 toneladas/dia na região metropolitana de São Paulo, que possui o equivalente a 2,8% da área total do Estado de São Paulo. Em comparação, o material particulado proveniente da queima de palha, conhecido como “carvãozinho”, pode chegar a 285 toneladas por dia, a considerar uma área de plantio que representa 8,2% da área total do Estado de São Paulo. Assim, enquanto os veículos produzem 8,8 quilos de material particulado por quilômetro quadrado na Região Metropolitana diariamente, as queimadas geram 14 quilos de material particulado por quilômetro quadrado em áreas de plantio.

As áreas de plantio de cana-de-açúcar brasileiras estão concentradas principalmente nas regiões Centro-Sul e Nordeste. Isso permite que o País tenha dois períodos de safra por ano, que vai de março a outubro na região Centro-Sul e de novembro a abril no Nordeste.

Leis

Em regiões altamente produtoras, como Ribeirão Preto – onde existe até um Código Municipal de Meio Ambiente, proibindo queimadas na região –, a atuação firme do Ministério Público é o que tem freado os danos ambientais quando a lei não é respeitada, afirma Marcelo Pedroso Goulart, promotor de justiça de Ribeirão Preto. “As leis estaduais permitem atividades poluidoras e, portanto, são todas inconstitucionais, pois ferem princípios da Constituição Federal e da legislação de Política Nacional de Meio Ambiente”, diz, referindo-se às atuais regras sobre queimadas.

A Lei nº 11.241 dispõe sobre a queima da palha da cana-de-açúcar e foi regulamentada pelo decreto nº 47.700, de 11 de março de 2003, que apresenta, em seu artigo 2º, a tabela de eliminação gradativa do atual processo de cultivo, o qual deverá ser totalmente substituído em 30 anos, num prazo que finaliza em 2031. A partir daí, só poderá existir o cultivo mecanizado da cana crua. “Até lá, a população que vive no entorno das áreas de queimada continuará a sofrer as interferências negativas do ‘carvãozinho’ no cotidiano”, diz Lopes.

Segundo Goulart, em cerca de 15 anos as queimadas na região de Ribeirão Preto foram reduzidas em 40% da área total plantada. “Não sou contra a indústria sucroalcooleira e nem acho que só mecanização seja a solução para o atual sistema de cultivo. Para resolver a questão da monocultura e do latifúndio, precisamos de um novo padrão agrícola, de reforma agrária e de um tipo de produção que seja sustentável ambiental e socialmente. A concentração de riqueza gera concentração de poder político e disso surgem as manipulações, inclusive das leis”, defende.

 

Impactos visíveis

Os efeitos do material particulado proveniente da queima da palha da cana-de-açúcar na vida da população já foram amplamente estudados por diversos pesquisadores. Relatos dos próprios moradores das áreas impactadas mostram os males causados por essa prática:
* Sujeira em casas, no comércio e em locais públicos.
* Aumento do consumo de água de abastecimento público para garantir a limpeza dos locais afetados com maior freqüência.
* Aumento dos acidentes em rodovias devido à falta de
visibilidade.
* Problemas respiratórios, notadamente em crianças e idosos.
* Interrupção de serviços de energia elétrica por problemas causados em linhas de transmissão próximas à área da queimada.
* Desperdício de energia.
* Eliminação de animais silvestres, pássaros e outros seres vivos.
* Emissão de gases prejudiciais ao ambiente.




Cerca de 80% do corte de cana no Brasil é feito por processos manuais

Bóia-fria, um problema a resolver

Se as questões técnicas sobre o plantio e a colheita mecanizada da cana-de-açúcar deverão estar resolvidas até 2031, tempo estabelecido pela legislação estadual para que seja equacionado o problema do atual sistema de cultivo baseado na queima da palha da cana, o mesmo não pode ser dito do mais de 1 milhão de trabalhadores que vivem desse tipo de lavoura.

Em todo o País, 80% do corte de cana-de-açúcar é executado por processos manuais. “A maioria desses trabalhadores não possui qualificação e serão futuros desempregados desse meio de vida. O Brasil já viveu situação similar em 14 de maio de 1888, um dia após a assinatura da Lei Áurea. Naquela ocasião, foram libertos 700 mil escravos sem nenhuma qualificação que não fosse o trato da cultura de cana-de-açúcar ou café. A diferença para o problema atual é o fato de haver tempo para equacionar o problema até 2031”, ressalta o pesquisador Fábio Silva Lopes em sua dissertação de mestrado “A utilização de sistemas de informação geográfica no estudo da exposição humana aos produtos da queima da palha da cana-de-açúcar no Estado de São Paulo”, defendida recentemente na Faculdade de Saúde Pública da USP.

Os principais motivos apontados pelos produtores para a aplicação do corte manual são o barateamento do custo da colheita, o que traz vantagens comerciais ao Brasil, e o provável impacto social que provocaria a mecanização. A queimada seria justificada pela eliminação de animais peçonhentos do entorno das plantações, trazendo maior segurança ao trabalhador, além do fato de facilitar o corte ao eliminar impurezas, reduzindo perdas. Do ponto de vista da saúde pública e ambiental, no entanto, “os gastos com tratamento dos doentes e mitigação de danos ao ambiente são muito mais elevados do que a prevenção do problema, sem contar os custos sociais com o conseqüente subemprego e a continuidade dos problemas educacionais e de qualificação”, ressalta Lopes.
Para Lopes, a sustentabilidade dessa atividade econômica deve se basear em uma série de planejamentos que evitem a perda da biodiversidade, empobrecimento do solo, desperdício de água, assoreamento de rios e desmatamento de matas ciliares e de terrenos acidentados, além dos custos sociais. “Os resultados relativos a todo o território do Estado indicaram regiões candidatas à observação de incidência acima do padrão, em função das queimadas, que carecem de estudos mais aprofundados sobre os fenômenos abordados.”

Substâncias cancerígenas

Na tese de doutorado que defendeu recentemente no Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, da Unesp de São José do Rio Preto, Rosa Maria do Valle Bosso constatou quantidades alarmantes da substância conhecida pela sigla HPA (hidrocarboneto policíclico aromático) na urina de cortadores de cana. Com evidências comprovadas de causar câncer, os HPAs constituem uma família de diversas substâncias, entre elas naftaleno, fluoreno, pireno e benzopireno. Esses compostos e seus derivados podem ser encontrados em todos os compartimentos ambientais.

Bosso analisou a urina de 39 cortadores de cana não fumantes, pelo fato de o cigarro também acarretar a ingestão de HPAs, tendo como grupo controle 21 trabalhadores da zona urbana. Verificou que os níveis de HPAs dos cortadores durante a colheita foi nove vezes maior, comparados aos dados obtidos na entressafra.

Um outro trabalho, realizado por Mary Rosa Marchi, do Instituto de Química da Unesp de Araraquara, detectou um grande volume de HPAs em amostras de poeira suspensa no ar. Para conseguir detectar as substâncias, Mary utilizou um equipamento capaz de coletar partículas inaláveis com diâmetro menor que 10 mícrons (equivalente à milionésima parte do metro). Com a instalação do aparelho a 7 metros de altura do solo, num terreno situado a cinco quilômetros dos canaviais e a dez quilômetros do centro da cidade, o estudo constatou um volume de HPAs quatro vezes superior durante o período de safra, comparado às entressafras. Os níveis médios registrados, de 82,1 microgramas por metro cúbico, estão dentro dos critérios estabelecidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para a qualidade do ar, que permitem uma concentração máxima de 150 microgramas por metro cúbico por 24 horas e que não pode ser excedida mais de uma vez ao ano.


Brasil é o maior produtor mundial de cana

O Brasil é o maior produtor de cana-de-açúcar do mundo. O equivalente a dois Estados do Piauí, ou 4,5 milhões de hectares, é utilizado para o plantio, num ramo que movimenta 6% do PIB. De toda a safra, a maior parte (55%) é destinada à produção de álcool e subprodutos, o que torna o Brasil um grande produtor de etanol: 250 mil barris diários, o equivalente a 3% da produção diária de petróleo da Arábia Saudita, ou ainda 25% da produção do Iraque antes da guerra. Estima-se um aumento de 50%, até 2010, na atual produção.

Além disso, o bagaço da cana-de-açúcar viabiliza a produção de energia limpa, o que tem possibilitado a muitas usinas desenvolver projetos de certificação de créditos de carbono, através do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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