Num dia de outubro de 2005, na beira do Velho Chico,
no sertão Nordestino, em Cabrobó, Pernambuco, São
Francisco conversa com os irmãos pássaros, com os
irmãos peixes e com os irmãos bichos do mato. Hábito
marrom longo, cinto grosso de pontas pendentes, cabelo raspado em
redondo e chinelos pisando em água rasa, o santo conversa,
não com aves, peixes e bichos que conheceu na sua Assis italiana;
conversa com a fauna típica sertaneja do Nordeste, aquela
que é ao mesmo tempo boa de ver, ouvir e alimentar comunidades
carentes. Asa-branca, jandaia, jacu, sofrê, sanhaço,
nhambu, canção-de-fogo, zabelê, juriti, codorna,
cardeal, bem-te-vi, garça, paturi, mergulhão, carcará,
gavião, fogo-pagou, rolinha, bigodinho, viuvinha, socó,
arribação, azulão, surubim, dourado, matrinxã,
piranha-preta, mandi, pocomã, curimatá, pirambeba,
piau-de-cheiro, piau-cavalo, pirá, piaba, molão, curvina,
maria-oião; jacaré, cotia, capivara, cobra-preta,
cascavel, cobra-dágua, paca, mocó, tatu, caititu.
Queixam-se as aves. Estão acabando com a mata ciliar, as
flores e as sementes escasseiam, não temos mais onde construir
ninhos, nos reproduzir, e caboclos famintos nos matam para se alimentar.
Queixam-se os peixes. As hidrelétricas, as barragens, os
desbarrancamentos acabaram com as lagoas marginais, que é
o melhor lugar para se viver. Queixam-se os bichos. É duro
procurar alimento em água poluída, em solo sem raízes,
em terreno devastado. O santo a todos consola, lembrando que são
Bem-aventurados os que sustentam a paz, que por ti, Altíssimo,
serão coroados.
Grupo de alunos do Departamento de Geografia da
USP, com o bispo Luiz Flávio Cappio, em Barra
A Irmã Lua desaparece ofuscada pelo Irmão Sol, que
ilumina as águas do São Francisco e os arredores da
praia doce. De repente, a surpresa: as margens do rio se enchem
de gente estranha, numa assembléia que congrega padres moderados,
padres avançados, representantes de suas comunidades, ministros,
governadores, cientistas, professores de universidades. Todos falam
ao mesmo tempo, todos discordam de quase todos, numa espécie
de roda viva que não chega a acordo nenhum. Mas o saldo parece
positivo: há debate. Debate sobre a transposição
do rio São Francisco. É o tema. E é exatamente
isso que aquele personagem em destaque, ao lado de São Francisco,
vestido como São Francisco, mas que não é São
Francisco, queria. Parar para pensar melhor na conveniência
de executar, ou não, o projeto do governo, de captar água
do rio maior para levá-la a outros Estados da região
do Semi-Árido. À custa de 4,5 bilhões, só
na primeira etapa. Para isso ele fez onze dias de greve de fome.
Quem é ele, afinal?, pergunta alguém da platéia?
Será Frei Damião? Não se apressem, responde
um sociólogo da USP, Flávio Pierucci. É o bispo
Luiz Flávio Cappio, da diocese de Barra, na Bahia. Totalmente
contemporâneo. Seria apressado falar em permanências
históricas, sentencia o professor.
Muito próximo do bispo, um jornalista ergue um livro, que
acabou de escrever. Os descaminhos do São Francisco. Aquele
eu conheço, diz um padre avançado, é Marco
Antonio Coelho; trabalha no Instituto de Estudos Avançados
da USP e edita a revista Estudos Avançados. Mas não
é ele que se declara comunista, e até escreveu um
livro de memórias, lembrando os apuros que passou na clandestinidade
na época da ditadura?, estranha um padre moderado. O que
está fazendo ao lado do bispo? Ora, responde o primeiro padre,
trata-se de um militante das causas sociais e pesquisador do rio
São Francisco. Você não se lembra que a Teologia
da Libertação foi buscar nas teorias de Marx e Lenin,
não os fundamentos, mas subsídios para uma doutrina
católica mais preocupada com o homem? É verdade que
a tendência chegou a assustar um pouco esse Karol Wojtyla,
mais conhecido por João Paulo II, que, a esta altura, São
Francisco deve conhecer pessoalmente, do Paraíso. Veja que
hoje em dia nem Bento XVI se preocupa com esses inovadores. Mineiro
de Belo Horizonte, Marco Antonio começou por um livro sobre
o rio das Velhas, que o Projeto Manoelzão (aquele personagem
de Guimarães Rosa) tentou recuperar e com isso melhorar um
pouco a precária situação das comunidades ribeirinhas.
O jornalista acabou desaguando no Velho Chico, de onde saíram
quase 300 páginas, em defesa de posições que
o bispo de Barra assumiu até com risco de vida.
Esse bispo foi enganado pelo governo e vai voltar à greve
de fome, como ameaçou fazer, garante um veterano especialista
em assuntos hídricos do Nordeste, o professor Aldo Rebouças,
aposentado do Instituto de Geociências da USP. Trata-se de
mais um capítulo da indústria da seca, numa região
onde as águas são públicas, mas o uso é
privado. A única saída para o problema é a
educação do povo, o uso inteligente da água.
Se não bastasse a indolência, a falta de criatividade
e de ação dos ribeirinhos, agora acresce o problema
da violência, os assaltos aos paus-de-arara, lamenta o pesquisador
do IEA e autor de Águas doces no Brasil, cuja terceira edição
está para sair.
Captação de água e erosão
no rio São Francisco: Bem-aventurados os que sustentam
a paz, que por ti, Altíssimo, serão coroados
A seu lado, com a autoridade de especialista em geografia humana
e vice-diretor do Instituto de Estudos Brasileiros, Dieter Heidemann
constata: vivemos num sistema de mercadorias, num mundo monetarizado,
onde não há soluções para pessoas. Adorno,
o alemão, já dizia que não existe o certo no
errado. No caso do São Francisco, não existe problema
técnico, mas social. Se há no Brasil concentração
de terras, há também concentração de
águas, e o projeto do governo acentua a desigualdade. O mercado
é um bicho feroz; está tão profundamente arraigado
nos nossos hábitos e valores que quem pensa na contramão
passa por louco, por excêntrico. O bispo? Ajeitou as coisas,
mas é bom que siga o conselho de Walter Benjamin, outro pensador
alemão, que deu em artigo intitulado O caráter
destrutivo: o suicídio não vale a pena. Vale
a pena fazer uma análise crítica da sociedade, pensar
na contramão e ter em mente que não há mais
heróis ou líderes revolucionários que venham
nos salvar.
Já passou o tempo em que a redenção vinha do
proletariado. E é isso que, ao lado do mestre e incentivador,
um grupo de alunos do Departamento de Geografia Humana, um da Sociologia,
quer dizer na assembléia que tem a santa presença
de Francisco de Assis. José De Sousa Sobrinho, mestrando;
Eduardo Egirotto, da iniciação científica;
Erick Kluck, em conclusão de curso; Luciana Scurcialupi,
em conclusão de curso na Sociologia; e Marcelo Gonçalves,
também concluindo o curso, saíram a campo, ainda em
1996, com apoio do professor Dieter, na base da mochila, da barraca,
da carona, sem auxílio em dinheiro, dispostos a estudar o
Vale do São Francisco.
Mais recentemente, conseguiram um carro. Em 2001, contam, fomos
cair na Barra, onde conhecemos Frei Luiz Cappio, que nos recebeu
de braços franciscanos, nos apresentou à comunidade
e aos seus muitos problemas. Vimos que a diocese desempenha o papel
do Estado, depois que o governo abandonou a navegação
do São Francisco, abriu estradas de terra e praticamente
isolou os mais de 40 mil habitantes da região. Com orientação
do bispo, a comunidade constrói cisternas, cuida da saúde,
combate a hanseníase (muito comum) e mantém convênio
com o hospital São Rafael, de Salvador, também da
Igreja, mantido por católicos italianos, para onde transporta
os doentes mais graves.
A cada três meses, médicos integrados ao projeto do
bispo percorrem as aldeias e cuidam dos necessitados, como fazia
aquele santo que agora conversa com peixes, aves e feras em Cabrobó.
Oásis de produção empresarial existem em Barra
e arredores, mas as comunidades pobres não participam dela.
Não têm como produzir frutas de exportação,
como uva, goiaba, manga, melão, banana; limitam-se a plantar
feijão, arroz e outras coisas simples que suas panelas vazias
aceitam de bom grado. As pequenas propriedades foram desapropriadas,
a agricultura empresarial tomou conta do pedaço. Bom para
a balança comercial; ruim para a gente simples da comunidade.
Comunidade tão agradecida ao bispo que até lhe atribui
milagres. Por exemplo, andar sobre as águas. Se anda, deve
ser milagre mesmo, pois não é crível que o
São Francisco esteja tão poluído que permita
passeios desse tipo.
O burburinho ao redor do santo, do bispo e da fauna não é
só de crítica ao projeto, cuja defesa mais veemente
ficou por conta do ministro Ciro Gomes, da Integração
Nacional. Em seu socorro chegam os Tundisi José Galizia
e Takako Matsumura professores da USP de São Carlos,
que trabalham no Instituto Internacional (José Galísia
está presente simbolicamente, porque de corpo participa de
um congresso na Coréia). Takako discorre sobre estudos de
impacto ambiental que ambos realizaram em 30 reservatórios
projetados para o São Francisco. O de Atalho merece citação
à parte. Suas projeções vão até
o ano de 2025, indicando que o plano será bem-sucedido se
houver ao mesmo tempo um trabalho sério de saneamento, que
inclui tratamento de esgotos, domésticos e industriais, e
ocupação racional do solo. A água no local
em que se fará a extração é de boa qualidade
e ficará melhor nos açudes, se cumpridas as exigências
dos cientistas. Não se sabe se o frei Luiz Flávio
Cappio ouviu o comentário, mas Takako Matsumura Tundisi acha
que, fazendo greve de fome contra o projeto de transposição
das águas do rio São Francisco, o bispo só
pensa nos problemas locais. Seria uma atitude pouco católica?
Há ainda outro cientista da USP que opina sobre o projeto
do governo, revelando-se um pouco a favor e um pouco contra. É
Paulo Nogueira Neto. Na assembléia presidida pelo santo de
Assis (que o professor deve venerar, pois se declara católico
praticante), explica que é a favor do desvio da água
porque sem água boa não há desenvolvimento
possível, e uma parte dos nordestinos a tem escassa. Mas
reprova o projeto, que, segundo ele, deveria vir precedido de algumas
medidas básicas, entre as quais a desativação
das usinas hidrelétricas. Mesmo que a execução
da obra demore, é melhor do que encher o rio de barragens,
impedir piracemas, evaporar água em grandes lagos. É
o parecer que Nogueira Neto deu, não agora, mas há
13 anos. E o mantém. Quanto ao bispo da greve de fome, que
Deus o perdoe, mas o ecologista considera que fez loucura, arriscou
morrer, em vez de defender a vida, como era de esperar de um prelado.
Abençoados e recolhidos ao fundo os peixes, embrenhados na
mata os bichos, revoados os pássaros, e cansada a assembléia
dos homens, fechou-se o dia, com o Irmão Sol já se
pondo. São Francisco fez-se invisível, mas um cântico
ainda roçava as águas do Velho Chico: Altíssimo,
onipotente e bom Deus/ Teus são o louvor, a glória,
a honra/ E toda a bênção. Amém.
Se Lula não cumprir o que prometeu, eu volto, disse o bispo.
E foi para São Paulo.
Encontro do Rio das Velhas com o Rio São Francisco
Os
descaminhos do rio
Discreto,
Marco Antonio Coelho pouco falou na assembléia à
beira do rio. Seu livro, o último, merece mais. Ele
conta que o projeto Manoelzão nasceu na Faculdade de
Medicina de Belo Horizonte, quando meia dúzia de alunos
ficou seis meses no interior para atender a população
carente. Se a poluição do rio das Velhas já
trazia doenças, ficou claro que o problema maior se
localizava no São Francisco. Das cidades grandes como
a capital mineira vinha a poluição; das mineradoras,
o assoreamento; da agricultura e pecuária, os agrotóxicos;
e da devastação das matas ciliares (que são
para a água o que os cílios são para
os olhos), o desbarrancamento e suas conseqüências.
Tudo isso levou o jornalista e pesquisador do IEA a planejar
um levantamento global do chamado rio de integração
nacional, que desde 1940 ninguém estudou tão
abrangentemente.
No entanto, nem tudo deu certo. Faltaram recursos e equipes
para a empreitada. Mesmo assim, Marco Antonio não desistiu.
Ficou claro para ele, desde o começo, que o grande
rio mudou completamente a partir da metade do século
20, em razão da construção de usinas
hidrelétricas como Paulo Afonso e Três Marias,
e seus reservatórios. Antes, o São Francisco
era o Nilo brasileiro: nas enchentes fertilizava as margens,
a agricultura podia prosperar, as populações
ribeirinhas tinham peixe de pegar com as mãos. Depois,
acabaram-se as lagoas marginais, a vazão do rio passou
a vacilar dramaticamente, os projetos dos militares esqueceram-se
das eclusas, o que prejudicava a reprodução
de peixes (o governo de Ernesto Geisel corrigiu a falha em
parte), cidades desapareceram (Casa Nova, Centopé,
Pilão, Remanso). E ninguém podia reclamar, pois
o projeto era considerado de segurança nacional.
Foi assim, segundo Marco Antonio, e assim continua sendo com
a proposta do governo de transpor águas: rios desaparecem,
água até torrencial está disponível
para movimentar turbinas, mas do ponto de vista social é
um absurdo. O jornalista está com a Igreja, que
conhece projetos faraônicos e nunca executados há
mais de 150 anos, e com o bispo de Barra. Na sua opinião,
é muito dinheiro jogado fora, que seria mais bem aplicado
em infra-estrutura que atendesse mais diretamente as comunidades.
Já observaram que os projetos oficiais para o
Nordeste são sempre contra alguma coisa,
e não a favor? , observa o autor de Os descaminhos
do São Francisco.
Como o bispo de Barra, que em 1993 participou de uma caminhada
de um ano ao longo do rio e sobre ela escreveu um livro (Rio
São Francisco, uma caminhada entre vida e morte), mas
sem fazer greve de fome, Marco Antonio recomenda a convivência
com a seca e um grande debate nacional, lembrando que a questão
da água não depende só do governo ou
de poucas pessoas. A Lei dos Recursos Hídricos está
aí para ser cumprida democraticamente.
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