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orto de Santos, 5h40 do dia 12 de outubro. O maior navio oceanográfico do Brasil, o Professor W. Besnard, desatraca rumo a um ponto no oceano localizado a 24o 01’.5o latitude Sul, 46o 21’.3o longitude Oeste. A posição fica na entrada da Baía de Santos e será a estação de número 7.814 de uma trajetória iniciada em 18 de agosto de 1966, quando a embarcação foi lançada ao mar pela primeira vez. Será a primeira parada dentro do ambicioso EcoSan, projeto do Instituto Oceanográfico da USP envolvendo pesquisadores de diversas áreas para estudar de que forma a carga d’água vinda do continente e dos estuários de Santos, São Vicente e Bertioga está impactando a Baía de Santos.

Projeto de excelência financiado pelo CNPq e Fapesp e primeira pesquisa do gênero na região, o EcoSan já havia iniciado sua etapa experimental em novembro de 2004, com coletas realizadas por embarcações menores. Aquela quarta-feira, porém, Dia das Crianças, marcou a estréia do Besnard no EcoSan, que tinha sofrido avarias no casco por um pequeno acidente ocorrido em maio deste ano. Imprevistos que fazem parte do dia-a-dia dos pesquisadores oceanográficos. Que o digam os “heróis” que primeiro se lançaram para as pesquisas no pólo antártico a bordo do bravo Besnard.

O dia de sol e o mar calmo daquele 12 de outubro eram sorte de estreante, disse o comandante do navio, José Helvécio Moraes de Rezende, referindo-se à presença da equipe de reportagem do Jornal da USP. Uma das preocupações da tripulação e dos pesquisadores era se o fotógrafo e a repórter iriam ou não “marear”, ou seja, enjoar no estranho ambiente que não pára de sacolejar. Apesar do tamanho, 49,5 metros, o Besnard balança muito, numa envergadura de até 30o em dias mais agitados. “Tem gente que precisa ser resgatada porque chega a expelir sangue de tanto enjôo”, diz Ricardo Pereira da Silva, técnico há 24 anos do Departamento de Oceanografia Biológica do Instituto Oceanográfico, que diz já ter perdido a conta de quantas vezes participou de expedições do tipo.

Felizmente, durante os quatro dias desta etapa do EcoSan, não houve incidentes relacionados à saúde dos convidados, dos pesquisadores e muito menos da tripulação, composta por 22 experientes marujos, responsáveis por todos os detalhes do funcionamento do navio, desde a alimentação de todo o grupo, totalizando 36 pessoas, até a manutenção do maquinário e equipamentos do Besnard.

Mas saber lidar com imprevistos e conhecer muito bem a profissão parecem ser um requisito básico para aqueles que trabalham em alto-mar. Especialmente se as condições meteorológicas não cooperam ou algum equipamento não funciona. “A bordo temos que usar a criatividade e este é um dos aspectos de que eu gosto no meu trabalho”, diz o chefe de máquinas Raimundo Adalberto de Sousa Neto. “A cada dia há uma adversidade, um desafio. Já criamos muita coisa a bordo para solucionar um problema ou substituir um aparelho quebrado.”

“Apesar de ser antigo, este é um navio muito valente. O Besnard é muito especial e querido pelos pesquisadores porque tem uma história interessante. Os primeiros que viajaram para a Antártica foram muito corajosos, especialmente porque a embarcação não possui alguns itens que poderiam fazer a diferença, como o quebra-gelo (um bulbo na proa que protege o casco contra os blocos congelados)”, diz Sousa Neto, que também é um dos protagonistas das infinitas histórias do Besnard.


A cor da água

Os técnicos, pesquisadores e alunos de graduação e de pós-graduação que participam desta fase do EcoSan, denominada etapa de radiometria, se ocupam em medir e avaliar variáveis bioópticas e físicas da água, como profundidade, salinidade, condutividade, pressão, temperatura, turbidez, penetração de luz, alcalinidade, oxigênio dissolvido e até produtividade do fitoplâncton, organismo que está no primeiro nível da cadeia alimentar do ambiente marinho. Todos esses dados conjugados servirão para realizar o que os cientistas chamam de calibração, ou seja, uma espécie de comparação que, no caso, será feita com imagens de satélites. A finalidade é interpretar visualmente a cor da água na Baía de Santos.

“Todos esses dados servirão para validar a imagem do satélite. Com a conjunção de todas as medições, poderemos, a partir das imagens do satélite, interpretar o que está acontecendo no ambiente biofísico”, explica a pesquisadora e professora Áurea Maria Ciotti, do campus de São Vicente da Universidade Estadual Paulista (Unesp), uma das instituições associadas ao EcoSan.

“A cor da água será avaliada através da análise do material orgânico dissolvido e do material particulado em suspensão, dividido em plâncton e sedimento inorgânico”, acrescenta a professora Sônia Gianesella, docente do Instituto Oceanográfico e coordenadora desta etapa do EcoSan. Segundo ela, a cor é um indicativo de riqueza ou pobreza da água em termos de vida marinha. Quanto mais transparente a água, mais pobre em vida marinha ou, pelo menos, menor será a presença de plâncton, que é um indicativo de vida. Mas, em compensação, a transparência é também um indicativo de que a água não é tão poluída. “O plâncton está ali, o satélite está registrando suas imagens, mas não é capaz de dizer se o organismo está numa fase saudável ou morrendo ou qual o grau de atividade dele.

Por isso preciso da maior quantidade possível de dados para calibrar com as imagens do satélite”, conta a professora. “Estamos realizando inclusive medições da atividade bacteriana. Todas as medidas são complementares e necessárias. Nesta etapa, quanto menor o número de medidas, menor será minha precisão na calibração com o satélite.”

O inesperado

Para dar tempo de seguir o cronograma planejado, seria necessário que cada parada nas estações durasse cerca de 20 minutos, tempo previsto para que os cientistas realizassem as coletas. Mas o traçado da viagem, originalmente constituído por vértices de ida e volta que a partir do Porto de Santos possuem 70 quilômetros de extensão ao sul e ao norte da costa e de 70 quilômetros para dentro do mar, numa área que abrange toda a Baía de Santos, teve de ser alterado por um primeiro imprevisto.

Depois que os marinheiros de convés lançaram âncora, às 6h30, na primeira estação de medição, o Besnard só prosseguiu viagem às 7h40. O atraso ocorreu porque um dos aparelhos de medição de radiação solar, o espectrorradiômetro, dava erro de leitura e os cientistas não queriam ficar sem seus dados naquele ponto. O equipamento mede a radiação solar incidente na e refletida pela água. Esses dados, num local próximo à costa, são significativos em razão da alta variabilidade das condições biofísicas.

Solucionado o problema do espectrorradiômetro, os pontos mais distantes ao sul e ao norte da costa foram reduzidos para 35 quilômetros. Na etapa de Radiometria do EcoSan, o traçado ideal seria aquele que conseguisse cumprir o maior número de medições em situações ótimas de iluminação, em pontos de alta variabilidade, diz Sônia Gianesella. “Nesse tipo de trabalho, este é um traçado do tipo tentativo, diferentemente do que acontece com outras etapas deste projeto, em que o traçado é fixo e pré-programado”, explica Sônia. “Nosso traçado teve como objetivo fazer o maior número possível de medidas radiométricas, pegando a maior variabilidade possível de situações. Para isso, preciso de condições de luminosidade adequadas. Se o dia se apresenta mais limpo, ou nebuloso, posso alterar esse traçado de forma a otimizar a obtenção das minhas medidas. Se fôssemos até a estação mais externa, perderíamos mais tempo e deixaríamos de obter um número tão grande de medidas num dia de céu limpo.”


Neblina

Depois do sol do primeiro dia, uma forte neblina encobriu o mar no segundo dia da expedição. Tão espessa que era impossível distinguir água e ar a poucos metros de distância. Felizmente, ao final de cada jornada, o navio ficaria sempre atracado numa estação distante do porto e, assim, não precisou utilizar o canal de navegação que, naquela quinta-feira, acabou sendo interditado pela Capitania dos Portos por causa da visibilidade precária.

As condições meteorológicas também tiveram de ser dribladas pelos pesquisadores. “Preferi, no primeiro dia, pegar o maior número de medidas numa região de alta variabilidade como a costeira, em vez de ir mar adentro pegar uma só medida e arriscar que no dia seguinte poderíamos não ter um céu tão limpo. Como de fato foi o que aconteceu. Então hoje, com o tempo fechado, nós nos programamos de forma a que, no meio do dia, momento em que o céu tende a estar mais limpo ou que as neblinas tendem a desaparecer, estivéssemos na estação mais fora possível. Foi perfeito, conseguimos a medida do espectrorradiômetro na janela de sol que ocorreu exatamente na estação mais externa. Assim, mesmo diante dessa situação climática, conseguimos as medidas exatamente no ponto que não tínhamos conseguido ontem. Tivemos sorte, mas também contamos com a experiência e algum conhecimento de climatologia para poder fazer isso”, diz a coordenadora.

Segundo a professora, o EcoSan prossegue em 2006 e seus resultados serão úteis para o melhor gerenciamento e avaliação de impactos ambientais na Bacia de Santos e adjacências. “Certamente servirão para o programa de gerenciamento costeiro do governo federal, como o Gerco, e para o Pronabio, que cuida do levantamento da fauna e da flora dos oceanos. Além disso, poderá também atender e complementar os dados do Revizze, que é o levantamento dos recursos vivos da zona econômica exclusiva”, afirma.

Outras etapas previstas no EcoSan envolvem estudos de trofodinâmica, que analisarão a passagem de energia através da cadeia alimentar dos organismos marinhos na área, de massas d’água e de plâncton, além da fase de coleta de pesca e bentos (organismos que vivem no fundo do mar).

Paralelamente aos seus objetivos principais, o EcoSan também irá contribuir para a formação dos estudantes. A bióloga Manuela Vieira Gimenes, por exemplo, realiza a etapa de radiometria como um trabalho de campo do doutorado que realiza no Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.
Segundo a doutoranda, a virologia no Brasil só é pesquisada segundo os enfoques médico e botânico e sua tese será a primeira do País a contribuir para o estudo da diversidade de vírus que infectam plânctons. “No ano passado, participei de uma expedição no Canadá, onde este campo de estudo está bem adiantado. Aprendi técnicas que pretendo empregar aqui. Esses vírus não causam doenças para o homem. Trata-se de um campo novo de pesquisa básica voltada para o papel ecológico da interação vírus-hospedeiro”, diz.


O mar como casa


O biguá, tradicional lanche da noite, não foi suprimido no Besnard, como ocorreu ao longo dos anos na maioria dos navios da marinha mercante. Além desta, outras peculiaridades compõem a história da embarcação. Desde abril de 2002, o primeiro-piloto, como sugere o nome da função, não é um homem. Bacharel em Ciências Náuticas, Manoelle de Lima Valladares Sousa diz estar completamente realizada pessoal e profissionalmente. Com apenas 26 anos de idade, faz o que gosta, tem um ótimo salário e ainda o bônus de não ter de ficar longe do marido, que também trabalha a bordo, o chefe de máquinas Raimundo Adalberto de Sousa Neto.

A vantagem de ficar sempre perto da esposa pode representar uma desvantagem para o romance, compensada pelo amor à profissão, diz Sousa Neto. “Pode quebrar um pouco o clima, mas adoramos o que fazemos.” Bacharel em Ciências Náuticas pela mesma escola em que Manoelle estudou, em Belém, no Pará, ele está no Besnard desde 2001. Já trabalhou em navios petroleiros e também propaneiros, inclusive viajando para outros países. “A jornada de trabalho no Besnard é tranqüila comparada à dos navios mercantes comuns. Dá até para ter alguma vida social ou mesmo fazer cursos”, diz Sousa Neto, que atualmente cursa Gestão de Terminais Portuários na Universidade Católica de Santos (Unisantos).

Ao contrário, a primeira-piloto se ressente um pouco mais do aspecto social. “Quem trabalha no mar tem que gostar muito. Há pessoas que, mesmo depois de anos estudando para a área, deixam a profissão porque não se adaptam em muitos aspectos. A vida social, por exemplo, é muito sacrificada. Além disso, sempre tenho que me medicar contra enjôo”, diz ela.

Na opinião de Manoelle, a maternidade é uma desvantagem profissional na sua área. “Quando eu ficar grávida acho que terei de abandonar a carreira, porque não quero deixar meu filho com uma babá”, afirma.


A vida no navio oceanográfico Professor W. Besnard: pesquisas para medir as condições ambientais, hora da refeição e o casal Manoelle e Raimundo


Arte e culinária


Trabalhar em um navio comum da marinha mercante de fato sacrifica a vida social. Mas um navio de pesquisas oceanográficas, como o Besnard, sempre oferece a chance de uma pausa entre um projeto e outro ou uma viagem e outra. É nesses períodos em terra firme que o responsável pela cozinha do Besnard, Alexandre José Ferreira, aproveita para pôr em dia as atividades do ateliê de pintura que mantém em Santos.

Formado em Letras pela Universidade Federal do Recife, surfista, dançarino e desenhista, Ferreira não gosta de ser chamado de chef de cozinha. “Para ser chef é preciso falar muitas línguas e fazer cursos de culinária em diversos países. Ainda não cheguei lá. Mas conheço um pouco da área”, diz, com modéstia.

O bom humor é fundamental na cozinha, especialmente quando a tarefa tem de ser cumprida em horários rigorosos, independentemente de haver ou não panelas e pratos “voando” em função do balanço do mar. “Os navios mais modernos possuem um sistema de trava das panelas no fogão que não permite que o alimento caia. Temos que ser mágicos”, diz Ferreira, apelidado de “Michael Jackson” pelos colegas marujos. Ferreira mostra o porquê ao improvisar alguns passos, imitando o cantor norte-americano enquanto trabalha. “Já fiz de tudo. Participei de concursos de dança e fui até gerente do McDonald's”, diz Ferreira sobre sua trajetória profissional. Leva para a cozinha do Besnard não só o talento, mas também a experiência acumulada em oito anos trabalhando em redes hoteleiras e navios turísticos e petroleiros.

O ritmo frenético da cozinha pode ser sentido pelos passos ligeiros dos quatro profissionais que trabalham no setor. Cuidam da alimentação de todos os que estão a bordo. Correm de cá para lá servindo as mesas. Ao toque de uma campainha agitada por um dos ajudantes, o aviso: é hora de mais uma refeição.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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