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No interior de Rondônia, pesquisadores da USP ensinam noções de higiene bucal e dão informações úteis para o bem-estar da comunidade: cidadaniar


E
ra manhã de segunda-feira. Os rondonienses mal sentiam, mas fazia mais de 35 graus de calor. Depois de duas horas e meia de estrada e poeira, a equipe de cirurgiões-dentistas chegou à comunidade São Geraldo, localizada entre a linha rural C-52 e C-54. Já havia diversas crianças na sede da Escola Municipal Ulisses Guimarães – homenagem a um ex-representante do povo que, certamente, nunca passou por lá, como a grande maioria dos políticos. Quem fez as honras da casa foi a paranaense Raquel Pereira Domingos, de 38 anos, que leciona há mais de dez anos em escolas da zona rural de Rondônia. Rapidamente a sala de aula transformou-se em “consultório dentário”. As carteiras substituíram cadeiras odontológicas e uma sala anexa virou espaço para palestra, com direito a teatrinho e tudo. Ao todo, os cirurgiões-dentistas Adelson Francisco Maia, de 25 anos, Karla Nahomi Baba, de 27, e Renata Pernambuco, de 33, atenderam mais de 90 pessoas em oito horas de trabalho. “Temos a expectativa de desenvolver um trabalho de campo nas comunidades carentes, cumprindo uma função social que cabe a todos nós, profissionais da saúde”, diz Maia, que já esteve três vezes em Rondônia.

Distante 50 quilômetros do centro de Monte Negro, São Geraldo é um vilarejo que abriga cerca de 30 famílias, originadas de um núcleo bem menor: os Teles, os Tamandaré e os Siqueiras. Hoje, residem ali os Teles Tamandaré, os Guimarães Siqueira, os Santos Tamandaré, os Tamandaré de Sousa, os Siqueira Lopes e assim por diante. Dona Avani, a líder religiosa – devota de São Geraldo, um seringueiro que, segundo a população, passou a fazer milagres para todo o povoado –, também fez sua ficha, afinal não se consultava com um dentista há muitos anos. Sem revelar a idade, Avani assegura que a religião, ali, é questão de integração e sobrevivência comunitária. “Aqui somos esquecidos. Quem socorre esse povo é a dona Chica”, contou a professora Raquel, acostumada com o abandono.

Aos 62 anos, Francisca Pereira do Nascimento socorre as dores da comunidade, inclusive as de dente, com remédios feitos de “mato”. Os dentes inflamados, por exemplo, são curados com casca de caju. Mãe de dez filhos, dona Chica, como é conhecida, encontrou na mata a saída para se livrar das doenças. “Eu já fui tratada por médico, mas, como ficamos longe, é bom encontrar outros caminhos”, diz, lembrando-se de que o doutor Marcelo, da USP, foi quem cuidou dela no período de menopausa.

Na comunidade de São Geraldo, dona Chica é conhecida de todos. Fez 23 partos, trabalho que começou com apenas 14 anos. “É um dom que eu não posso negar.” Por ano, ela benze e faz garrafadas para mais de 40 pessoas. Se diz satisfeita com o destino seguido. Mas seu sonho mesmo era ser sanfoneira.

Raquel Pereira Domingos mora em Ariquemes desde 1977, quando saiu de seu Estado – onde ela e sua família eram meeiros – em busca das prometidas terras do Norte do País. “Viemos em dez famílias e, graças a Deus, meus pais ganharam um lote de 42 alqueires do Incra. Foi onde começamos a vida”, recorda-se. Raquel tem casa em Ariquemes, mas mora na escola da comunidade São Geraldo. Hoje ela é responsável pela educação de 30 crianças, estudantes de primeira a quarta série do ensino fundamental, e por 15 adultos que estão sendo alfabetizados. Somando tudo, a professora dos “esquecidos” recebe R$ 800,00 por mês. Se vale a pena? “Vale pelo resultado, nunca pelo financeiro.” Para quem nunca sonhou em ser professora, Raquel encontrou nas crianças o sentido de sua vida. “Tudo o que eu queria para eles era mesmo atendimento odontológico. Eles têm muita cárie”, diz. “Aos poucos, vamos obtendo conquistas.”


A professora Solange, a líder religiosa Avani e a parteira dona Chica: histórias de lutas no interior do Brasil


Garimpo e abandono

No dia seguinte, o destino da equipe foi uma pequena sala da associação rural da comunidade de Massangana, zona rural de Monte Negro, localizada na região central de Rondônia, distante cerca de 220 quilômetros ao sul da capital, Porto Velho. Lá, 17 adultos dividem o espaço com a professora Solange Caetano de Andrade, de 24 anos. Com ensino fundamental completo, Solange, que na infância brincava de professora, dá aulas a adultos de 18 a 40 anos, de primeira à quarta série.

Segundo ela, na comunidade Massangana a maior dificuldade da educação é concorrer com as casas de oração e igrejas, já que o horário da aula é o mesmo das missas e cultos. Para desenvolver esse trabalho, Solange está fazendo um curso de capacitação pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) e recebe uma bolsa no valor de R$ 260,00. “Esse trabalho tem sido gratificante, apesar de todas as carências”, assegura a professora, que diariamente vence uma nova barreira. Atualmente, por exemplo, ela busca retomar o gosto pela leitura para se tornar uma professora cada vez melhor.

Se, por um lado, a carência daquela comunidade salta aos olhos e ouvidos – numa contraditória miséria que acena para uma população que não tem acesso a atendimento odontológico e de saúde em geral –, por outro lado trata-se de uma região que abriga os principais depósitos de estanho de Rondônia e foi alvo de intensa atividade de mineração por cerca de 40 anos. Atualmente, devido ao baixo preço do estanho no mercado internacional, apenas poucos garimpeiros atuam na área do complexo granítico de Massangana, extraindo principalmente topázio e um pouco de cassiterita ao longo de pequenos aluviões. A sobrevivência, hoje, vem mesmo de pequenas plantações e da venda do leite.

De fato, o trabalho de campo realizado em Monte Negro tem beneficiado esse Brasil distante e peculiar e, sem dúvida, rendido à USP e a outras universidades a produção de diversas pesquisas. Estudos que se consolidam, a cada ano, como perspectivas para projetos de mestrado e doutorado. Afinal, com a USP por perto, Rondônia tem sido terreno fértil na área científica, sem perder a mão da assistência imediata necessária.


Atenção à comunidade: estudantes e professores da USP dão a sua ajuda


Cidadania, uma realidade distante

Documento de identidade ou simplesmente RG é algo desconhecido pela grande maioria dos 20 pacientes que passam por dia no atendimento da clínica odontológica “Professor João Adolfo de Caldas Navarro”, mantida desde 2002 em Monte Negro (RO) pela parceria entre a Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP, a Liga Independente de Saúde Rural (Lisura) e a Prefeitura, com coordenação geral do professor bauruense José Roberto de Magalhães Bastos, docente da FOB e responsável por toda a área de saúde coletiva em odontologia no município de Monte Negro.

São exatos nove meses o prazo que os munícipes de Monte Negro precisam esperar para ter um RG. “É uma burocracia”, lamenta o estudante José Silva, que aos 18 anos ainda aguarda pelo seu documento, em trâmite na cidade de Ariquemes, vizinha mais próxima (localizada a uma hora e meia de Monte Negro) e mais abastada.

Para Izilma, de 17 anos, mãe de Raissa, 7 meses, RG é um nome completamente desconhecido. “O que é isso?”, pergunta. Sua realidade está muito distante dos papéis que nos constituem cidadãos. Moradora da linha rural número 35, Izilma tira leite de 38 vacas por dia. São 60 litros diariamente. Suas preocupações se resumem a atingir sua meta e receber os R$ 0,30 por litro de leite. “Mas eu tenho título”, assegura. “Foram na minha casa me oferecer um.” O título eleitoral, aliás, é o único documento conhecido pela maioria dos moradores de Monte Negro. Nem a secretária da clínica odontológica da FOB em Monte Negro escapou da burocracia que gesta um documento de identidade. Aos 18 anos, Rosana Ferreira da Fama não tem RG porque, para isso, precisa se deslocar até Ariquemes. “Não tive tempo de ver isso ainda”, diz.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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