Aldemir Martins, morto no dia 6, foi enterrado em São
Paulo num dia de calor tão abrasador como o do sertão
nordestino. Talvez uma homenagem dos deuses do agreste ao filho
pródigo, que tanto defendeu a cultura da região.
Sua saga começa em 1951. A seca castiga mais uma vez o solo
nordestino. Um caminhão pau-de-arara rompe a caatinga, rasga
o sertão, o mesmo trilhado por Lampião e seu bando.
Na carroceria, entre dezenas de retirantes, um jovem assustado que
registra tudo o que ouve e vê. Nada escapa ao olhar implacável
do repórter gráfico. Aos 29 anos, Aldemir percorre
esse longo caminho e capta, como registro de viagem, ora uma paisagem
cinza, árida, ora zonas de cores corrosivas. Dessa intimidade
com sua própria terra e gente, sedimentam-se a paixão
e a cumplicidade eternas e que se transformam em fio condutor de
sua trajetória.
O Nordeste é a plataforma de suas experimentações
e o cangaceiro, seu parceiro eterno. Ambos passam a circular no
circuito internacional de arte, ganham passaporte definitivo, com
visto permanente em vários países, invadem salões
internacionais, arrebatam prêmios, numa luta contínua,
nunca imaginada por Lampião e Maria Bonita. Na então
toda-poderosa Bienal de Veneza de 1956, conquista o prêmio
de melhor desenhista da edição. Nos bastidores, Ciccilo
Matarazzo, então presidente da Bienal de São Paulo,
trabalhava para que Di Cavalcanti fosse o premiado. Mas de nada
adiantou.
Apesar do sucesso como desenhista, e como sempre reconhecido, decidiu
incursionar pela pintura. Hoje é difícil ter acesso
à sua obra em branco e preto, praticamente nas mãos
de museus e colecionadores. Nas telas se opõe ao preto e
branco dos desenhos e faz conviver, com gestos rápidos e
nervosos, amarelos intensos com violetas glaciais e azuis esverdeados,
como os da Prainha, um paraíso no litoral cearense, onde
Aldemir recarregava suas energias.
Arte, para Aldemir, era pura diversão. Prazer e generosidade
moviam sua obra, que ele entendia como qualquer outro produto, portanto,
destinado a chegar a todo tipo de público. Para ele, o artista
deveria ajudar a aprimorar o gosto popular. Desde meu início
persegui essa filosofia, mesmo sabendo dos riscos. Preparado para
enfrentar a crítica e suas conseqüências, levei
arte ao povo. Seu desenho passa a estampar tecidos, toalhas,
sacolas, pratos, canecas, tudo como fazem hoje os museus de todo
o mundo.
Dessa experiência com o popular soma a experiência vivida
no Uruguai, com o amigo Paez Villaró. Em seu ateliê
em Montevidéu, discutem o destino e a função
da arte e Aldemir passa a imprimir seus desenhos também em
cerâmica, que mais tarde se desdobram e chegam aos azulejos.
Poderia ter me tornado outro artista quando estudei em Roma,
depois de vencer a Bienal de Veneza. Convivi com Giacometti, Marino
Marini e tantos outros. Era fácil seguir a cartilha das galerias
daquele momento, mas quis ser eu mesmo. Feliz e orgulhoso de minhas
origens, da minha cara de índio, de minha alegria de viver
e de trabalhar o imaginário nordestino, responsável
não só pela riqueza das artes plásticas, mas
também pela contribuição decisiva na música,
literatura, culinária, teatro, sociologia, enfim em todo
o pensamento contemporâneo do Brasil.
Sucesso
em branco e preto
A incursão pelo branco e preto tem origem na infância
pobre, livre e inventiva. Os primeiros rabiscos com carvão
nascem nas calçadas encardidas de sua cidade. O cangaceiro
surge, de repente, dos movimentos difíceis conseguidos com
pedaços de tijolos. Em 1946, o contraste do branco e preto
ainda move sua obra, e sua vida pessoal passa por excessivos contrastes.
Seu sonho primeiro era ser artista, mas, por questão de sobrevivência,
aceita trabalhar como ilustrador numa redação de jornal.
Assim passa o dia caminhando pelas ruas da capital paulista, ao
lado de um repórter, registrando os problemas humanos. Em
dois anos de trabalho duro ele soma 156 reportagens. Nessa
ocasião minha pintura era descritiva, de cor suja, muito
sofrida, ainda impressionada com a seca e o Nordeste. Mas fui obrigado
a mudar tudo a partir do momento em que entrei no jornal. A mesa
era pequena, o que me impossibilitava de levar à redação
te|as, pincéis, tintas e benzina. Foi o período em
que desenhei ao som dos batuques das máquinas de escrever
de A noite, Folha da Tarde, Diário de São Paulo, Diário
da Noite e o Estado de S. Paulo, em que assinei vários trabalhos.
Obviamente, o trabalho jornalístico não bastou para
realizar seus sonhos de artista. No entanto, essa experiência
com o jornalismo diário e o conhecimento mais profundo da
cidade reforçam a idéia de se fixar em São
Paulo, que adota como sua segunda cidade. Aqui encontra o amor de
sua vida, a também artista Cora Pabst, que renuncia à
profissão para ser o seu norte e companheira de toda a vida.
Assim, Aldemir domina o branco e preto com rara desenvoltura e chega
a criar imensos murais sem o recurso da cor. O Aeroporto de Congonhas,
em São Paulo, até a sua última reforma, exibia
um painel de 30 metros, todo executado em preto e branco. Nem por
isso ficou em desvantagem com os artistas de sua geração,
que usavam de todos os matizes. Os vários prêmios que
somou atestam por que integra o primeiro time dos artistas gráficos
brasileiros: prêmio de melhor desenhista na Bienal de São
Paulo, de 1955, e na de Veneza, em 1956; medalha de ouro no Salão
Paulista de Arte Moderna; prêmio de viagem ao exterior no
Salão Nacional, ao mesmo tempo em que conquistava o mercado
de arte.
Depois dessa experiência, Aldemir começa uma série
de aquarelas e desenhos coloridos. Essa mutação ocorre
em 1967, quando foi à Europa e tomou conhecimento de um novo
material que fazia sensação na época: a tinta
acrílica, que imediatamente adotou para suas telas. Como
afirmava Juan Miró, é muito difícil um
artista permanecer imune às cores e à cultura do país
onde vive suas emoções. Para Aldemir, o Brasil
era uma questão de energia, fluido.
O contato com as experiências pictóricas de uma Europa
inquieta fez com que Aldemir intuísse a possibilidade de
ruptura de um esquema geométrico que tentava entrar em sua
obra, fazendo explodir novamente as cores. Foi nesse período
que manteve contato, por carta, com um amigo cearense, desabafando
suas frustrações com relação à
crítica. Quando, em 1953, fiz a série Cangaceiros
truculentos, na verdade ninguém entendeu o trabalho além
de seu tema. Ninguém, mas ninguém mesmo, prestou atenção
ao desenho, às linhas, às formas, às manchas.
Mesmo diante da rejeição do tema, Aldemir não
desistiu. Um mês antes de partir para Roma oito anos
depois da série Cangaceiros , retomou o tema e executou
cinco ou seis desenhos com manchas e formas. Outra vez, no Brasil
ninguém entendeu nada. Paciência. Na Itália,
ataquei violentamente o assunto. E lá comecei a sentir o
resultado. A crítica italiana chegou a dizer que eu pertencia
ao movimento tachista, que criava figura estranha e revolucionava
o desenho. Aldemir comentava isso mostrando um grosso álbum
com recortes de jornais italianos.
Quase todo artista tem seu mito, mas quem inspirou a obra de Aldemir?
Alguns críticos da década de 50 diziam que eu
tinha influência de Picasso e Portinari, mas discordo. Estou
mais próximo de Miró e Klee. Minha influência
cromática vem de Picasso, o mais completo artista do século
20. Um grande colorista, mas um colorista na concepção
européia da cor. Na verdade, o bom colorista não usa
forçosamente as cores vibrantes para se expressar. Picasso
nem sempre precisou das cores, fez algumas obras-primas monocromáticas.
Aldemir citava outro mestre, Cartier Bresson, um dos fotógrafos
mais famosos de todos os tempos. Bresson dizia não
precisar da cor porque a realidade é branca e preta. Eu também
penso como ele, só com uma pequena observação.
Ele não disse que a cor é traiçoeira, enganadora.
Quando se olha o azul, não se vê o azul e sim o verde;
se olharmos o vermelho, não estamos vendo o vermelho, é
o cor-de-rosa. Cor, para mim, é acidente, conseqüência.
Com o preto e branco posso fazer noites de luar e praias queimadas
de sol amarelo-ovo.
Durante sua estada em Roma, poderia ter mudado o curso de sua arte,
moldando-a ao gosto europeu, mas se recusou. Me orgulho de
minhas raízes e de tudo o que faço. Retorno constantemente
ao Ceará, ao universo vivido com os meus bonecos de pano,
minhas figuras de carvão espalhadas nas paredes, aos meus
bichos ora espichados nas calçadas, ora sorridentes sobre
o muro do Clube Náutico, às praias de navios sujos
que decoram as fachadas das bodegas de cachaça do Pirambu.
Volto aos vaqueiros marcando gado a ferro e fogo; às louceiras
fazendo formas de panela, bule, jarra; às rendeiras tecendo
o mundo com ponto de mosca, cruz e bico e rendas. Tudo isso eu carrego
comigo, é o meu desenho. Até mesmo as nódoas
do caju, que grudavam em nossas roupas, estão no meu trabalho.
Não posso e nem quero me libertar disso. Aldemir se
pegava como o menino que foi contador de histórias e riscador
de chão, o que fazia, ao mesmo tempo, com ingenuidade e malícia.
Com a mesma ingenuidade de quem sabe pescar com a mão, seguir
rastro de boi e caçar de visgo e arapuca. Arapuca que
a memória me empresta para fazer o quadrado do meu desenho.
E nele aprisionar as pessoas-personagens que crio.
Ele queria criar uma longa sinfonia. Com sons longínquos
do Ceará, numa música um pianíssimo, que às
vezes soa como um trovão, mas ser sentida e representada
pelo cabra da peste de Guaiuba, que adora o sol, jangada,
rendeira, onda do mar, chuva do caju, seriguela, cheiro de terra
molhada, curimatã prateada e ará escuro.
Raciocínio rápido, crítico e observador, assinava
quatro jornais diários, várias revistas estrangeiras.
Autodidata de Ingazeiros, nascido em plena semana da Arte Moderna
de 22 quando os artistas brasileiros rompiam os dogmas tradicionais
da arte , integrou o grupo Artys, que refletiu a inquietação
de alguns jovens em busca de novas vertentes. Nessa época,
seu interlocutor era Antônio Bandeira, outro cearense consagrado.
Sua extensa obra, que inclui desenhos, gravuras e pinturas, está
espalhada em acervos de vários museus e coleções
particulares. Em 1979, a Universidade Federal do Ceará, onde
o artista tem o título de Doutor Honoris Causa, criou o Museu
Aldemir Martins, que funciona nos limites de seu campus. O espaço
abriga um conjunto de pinturas, litogravuras, xilogravuras e serigrafias,
inclusive os desenhos mais importantes da fase européia,
quando foi premiado na 88ª Bienal de Veneza. Ele criou ilustrações
para livros de Jorge Amado, discos, revistas e jornais. Na televisão,
assinou a abertura de programas e novelas da TV Globo, como Gabriela
e Terra do Sem Fim.
No dia de sua morte, o Brasil acordou com a notícia estampada
nas páginas dos grandes jornais e transmitida pelos telejornais.
Brincalhão e gozador, nesse vôo final, deve ter dito
a Lampião: Não é que eles gostam da gente?.
Leonor
Amarante, crítica de arte e autora do livro As Bienais de
São Paulo, foi curadora-adjunta da 2a e da 3a edição
da Bienal do Mercosul e é curadora-geral da Bienal do Fim
do Mundo (Ushuaia, Argentina, 2006)
Um
renovador das artes plásticas e gráficas
O
pintor, desenhista e gravador cearense Aldemir Martins participou
ativamente da vida cultural de São Paulo. O professor
Ricardo Marques de Azevedo, que leciona História da
Arte na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP,
destaca que o artista estava na cidade quando foram inaugurados
o Museu de Arte Moderna (MAM) e o Museu de Arte de São
Paulo (Masp). Suas obras possuem uma grande qualidade,
seu desenho é muito exato, com pontos, retas, linhas
e estilizações, diz Azevedo, acrescentando
que o artista será lembrado principalmente por seus
trabalhos realizados nos anos 50, quando participou da renovação
das artes plásticas e gráficas do Brasil. Aldemir
Martins ficou conhecido por seus trabalhos retratando o Nordeste,
seus retirantes e cangaceiros e, num segundo momento, também
por suas representações de galos, gatos, flores,
frutas e mulheres.
Martins ganhou muitos prêmios e teve um período
mais expressionista, dramático, nos anos de 1947 e
1948. Até meados da década de 1960, participou
desse período de renovação, que também
era gráfica, incluindo revistas, livros e objetos,
explica Azevedo. Seu desenho nítido, claro e de qualidade
fez dele um bom artista gráfico, tendo feito ilustrações
de livros de escritores brasileiros como Euclides da Cunha,
Graciliano Ramos, Castro Alves e Jorge Amado.
A partir do início da década de 1960, sua obra
perde o contexto político e os cangaceiros e imigrantes
dão lugar aos animais e plantas, que ele pinta com
o mesmo refinamento. Um pouco depois disso ele começa
a se repetir, mas continua sendo um bom desenhista, com muita
qualidade.
Além de quadros e gravuras, Aldemir Martins também
fez pinturas em tecidos, objetos de decoração
e louças em geral. Com isso, seu desenho se tornou
muito conhecido e sua obra passou também a ser imitada
nas cores, formas e temas. Ele criou um estilo Aldemir
Martins, que faz muito sucesso e vem sendo repetido, porque
sua obra é refinada, mas agradável de ser vista.
O artista recebeu críticas pela circulação
de muitas de suas obras em produtos comerciais. Contudo, o
professor da FAU não considera isso relevante. O
mesmo também acontece com artistas como Mondrian e
Matisse, que são aproveitados por essa indústria.
O Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP possui em
seu acervo 22 obras do artista, entre as quais destaca-se
o Cangaceiro, que ganhou o prêmio de melhor desenho
nacional na 1a Bienal Internacional de São Paulo (1951).
A professora Thaís Romoli Tavares, que desenvolveu
um trabalho de história com seus alunos a partir de
um quadro de Aldemir Martins sobre a independência do
Brasil, ressalta sua obra variada e versátil. Eu
o escolhi pela simplicidade do seu pintar, que faz os alunos
se sentirem mais próximos, não há um
estranhamento da obra, diz Thaís, que apresentou
dissertação de mestrado na USP sobre o tema.
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