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Pesquisadores do Brasil e do exterior expuseram suas idéias sobre ensino superior: universidade precisa estar sempre próxima da comunidade


E
stá em curso no Brasil e em países europeus um modelo acadêmico inovador, caracterizado por mudanças na estrutura de gestão, pesquisa e ensino, com a preocupação central de colocar o aluno no centro do processo, considerando-o protagonista de seu próprio aprendizado. A interdisciplinaridade, projetos derivados de problemas reais da comunidade mais próxima e a tomada de decisões profundamente impregnada de pesquisa são também características do novo modelo. Para debatê-lo, a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP Leste reuniu em seminário, de 6 a 8 de março, representantes de instituições nacionais e estrangeiras que já puseram o modelo em prática ou pretendem fazê-lo em breve. Participaram do encontro internacional “Inovações no Ensino Superior” a EACH, já no segundo ano de funcionamento; Unicamp, que em 2007 abre o campus de Limeira; Universidade Federal do ABC, criada em 2005 para iniciar atividades este ano; Faculdade de Medicina de Marília (Famema); Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que abriu uma unidade em Santos; Universidade de Aalborg (Dinamarca) e Maastricht University (Holanda). Presentes também pró-reitores da USP e o diretor científico da Fapesp, professor Carlos Henrique de Brito Cruz.

Das exposições feitas no primeiro dia dos debates pelos pró-reitores Selma Garrido Pimenta (Graduação), Sedi Hirano (Cultura e Extensão Universitária), Maria Angélica Miglino, representante de Mayana Zatz (Pesquisa) e pelo diretor da EACH, Dante de Rose, e ainda pelo professor Finn Kjaersdam, reitor da Universidade de Aalborg e representante de um consórcio de universidades européias que adotaram inovações no ensino superior, é possível traçar um perfil do modelo acadêmico desejado, embora cada instituição tenha alguma particularidade.

Integração

De modo geral, elas pretendem derrubar o isolamento, tanto dos cursos como das próprias universidades, que são instituições sociais, com obrigações com as comunidades, principalmente quando se trata de escolas públicas. Os cursos devem, pelo contrário, ser integrados, com um ciclo básico no primeiro ano (caso da USP Leste), com participação ativa dos alunos, que têm a liberdade de fazer as opções que consideram mais apropriadas para a sua vida acadêmica e profissional, inclusive em casos como o da universidade dinamarquesa de montar a grade curricular. A recomendação é que os projetos partam da resolução de problemas da comunidade, entendida a palavra não como solução de casos, mas como ponto de partida para uma reflexão acadêmica sobre o tema, a exemplo do sentido de “problematização”, vocábulo tão em voga quando da montagem de uma tese ou dissertação. A docência, a pesquisa e a extensão não podem ser descasadas e a graduação precisa ser valorizada, sendo que a iniciação científica é exigida desde o início do curso. De acordo com Selma Garrido, há o desafio de quebrar as amarras da tradição, organizar currículos “quebrando as grades” tradicionais, formar profissionais inseridos no social, possibilitar-lhes novas formas de empregabilidade, dar-lhes conhecimento interdisciplinar e, sobretudo, não esquecer que ser escolarizado é direito da espécie humana. Quanto à forma de gestão, Selma e também a professora Myriam Krasilchik, coordenadora da montagem da estrutura didática da EACH, estão satisfeitas com o abandono na USP Leste do sistema departamental, formando a EACH uma só escola, uma só unidade de ensino e pesquisa. Em resumo, o modelo acadêmico desejado pretende levar o aluno a pensar e agir, de olho e ouvido na comunidade, na qual tem um papel importante a desempenhar. Na EACH é visível o empenho dos alunos; eles mesmos, especialmente os do curso de Turismo e Lazer, cuidaram da organização do seminário, enquanto alunos da Escola de Comunicações e Artes se encarregaram da tradução simultânea das palestras em inglês.

O professor Finn, que falou pelas 14 universidades européias do consórcio inovador, observou que foram necessários 500 anos para quebrar as estruturas envelhecidas e a tradição, segundo a qual aprendia-se alguma coisa e o resto ficava por isso mesmo. A pesquisa e o ensino, segundo ele, precisam acompanhar o seu tempo, pois o conhecimento (das engenharias, no caso de sua universidade) muda quase diariamente. Isso traz um problema: como montar o currículo? A saída é levar o aluno a aprender com seu próprio esforço, enquanto os professores precisam ser treinados para atuar nesse modelo, todos conscientes de que nenhum trabalho é para a vida toda e que são necessárias inovações permanentes e a procura de novas possibilidades, mesmo correndo riscos de errar. Na Dinamarca, a universidade está próxima das indústrias e estas conhecem os alunos, dando-lhes emprego ao final dos cursos, sabendo que eles estão comprometidos com uma cultura inovadora e tiveram ensino de qualidade no contexto europeu. Lá, como se pretende aqui, os projetos dos discentes partem das necessidades da vida real, que os alunos precisam entender, interpretar e resolver. O professor jamais diz o que o aluno deve escolher, nem como resolver os projetos. Isso eles discutem em grupos de no máximo seis pessoas. Grupos maiores não funcionam, segundo o reitor, porque onde há dez há um líder que interfere na liberdade dos indivíduos. O aluno não é obrigado a optar por disciplinas que formam um modelo de aprendizado interdisciplinar, mas com certeza terá de responder a questões a elas ligadas. Finn cita o caso da medicina: a disciplina tem competências que dizem respeito a muitos outros cursos. As palestras ocupam 25% do tempo do aluno; outros 25% vão para o estudo em grupo, e 50% devem ser dedicados ao projeto. Ferramentas auxiliares são a internet, as bibliotecas, os experimentos e as tutorias. Na escola, o ambiente é semelhante ao da casa do aluno: salas informais, café, etc. A liberdade de escolha é ampla, mas o conteúdo dos cursos do novo modelo nunca poderá estar abaixo dos conteúdos do sistema tradicional de ensino.

A preparação do professor merece cuidado especial, pois, a julgar pelo que disse o reitor dinamarquês, lá como cá existem aqueles que, a uma pergunta difícil do aluno, encerram a aula, em casa consultam os livros e trazem a resposta na aula seguinte. Será que na Dinamarca conhecem o conto O Plebiscito, de Artur Azevedo?

São Paulo

No segundo dia do seminário, falaram, entre outros, os professores Luiz Bevilacqua (Federal do ABC) e Edgar Salvadori De Decca, pró-reitor de Graduação da Unicamp. Na UFABC, o aluno receberá diploma na área de sua competência ao concluir o terceiro ano do curso, podendo continuar estudando por mais dois anos, na mesma instituição ou em outra de sua escolha. Bevilacqua entende que o Brasil precisa dar condições para que os jovens estudem e produzam sem sair do País. Ou será que, pergunta, para se destacar, como fez Santos Dumont e fazem os melhores jogadores de futebol, será sempre necessário sair do País? De Decca lembrou que é formado na USP, um apaixonado pela área de humanas e no vestibular fez exame oral com o físico Mário Schenberg (naquela época, não havia departamentos e a então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras abrangia também os atuais institutos de Química e Física, além da Faculdade de Economia e Administração).

Disse que, historicamente, o desafio do Brasil não é tecnológico, área em que o País vai muito bem; “o desafio é ético, de integração social”. Nos anos 20 do século passado, formou-se a rede de ensino; nos anos 60, cresceu a demanda por universidade, mas na mesma década surgiu a ditadura, que pôs a perder especialmente o ensino de humanidades. A unidade de Limeira da Unicamp terá a partir de 2007 mil vagas, distribuídas entre os cursos de engenharia, gestão e administração, ciências, arte e cultura e saúde.

Na mesma mesa, a professora Myriam Krasilchik, recordando que ela também vem da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, brincou com a fama da unidade que deu origem à Universidade em 1934. Segundo ela, o professor Cruz Costa teria dito que “a USP é a Filosofia e uma série de escombros”, enquanto os da área de exatas respondiam que “a USP é uma série de institutos e um resíduo da Filosofia”. Polêmica à parte, Myriam afirmou que, se debates como os do seminário da EACH tivessem sido realizados antes e as partes tivessem exposto seus pontos de vista, a tarefa de sua equipe na USP Leste teria sido muito facilitada. Mas foi preciso quebrar a cabeça durante anos para montar a estrutura didática da unidade.

De qualquer modo, segundo a ex-diretora da Faculdade de Educação e ex-vice-reitora, a Universidade vive em tensão e crise permanentes, “e essa é a sua obrigação”. A tensão maior, disse, vem da demanda por vagas. Em razão de três fatores principais: cresce o ensino médio; a educação é valorizada como instrumento de empregabilidade; e há um afluxo de alunos não tradicionais, pessoas que voltam a estudar “por força da demanda de competências”.

O terceiro dia foi dedicado, de manhã, às exposições dos professores Ulisses Araújo (EACH), Paulo Marcondes (Famema) e Nildo Batista (Unifesp/Baixada Santista). No intervalo, faltou energia elétrica na região e os organizadores do seminário precisaram de muita criatividade para interpretar a fala dos professores Egon Moesby (dinamarquês) e Babet Hoeberings (holandesa).

Viver e conhecer é perigoso

Quem visse a primeira versão de um transistor, criado nos Estados Unidos em 1948, poderia perguntar por que perder tempo e dinheiro com aquela geringonça, um clipe entortado, solda malfeita e um triângulo semicondutor, que no protótipo alcançou um mínimo do objetivo visado, o de amplificar a corrente elétrica. No entanto, de passo em passo e com o concurso de muitos pesquisadores, aquele transistor primitivo deu origem à física do estado sólido, ganhou centenas de usos, possibilitou novas descobertas nas décadas seguintes e agora está no dia-a-dia de milhões de pessoas. O caso do transistor foi lembrado pelo professor Carlos Henrique de Brito Cruz, da Unicamp e diretor científico da Fapesp, para ilustrar a lição de que a pesquisa progride lentamente, a partir de uma boa idéia, sem saltos e sem expectativas mitológicas, mas com o trabalho de muita gente, cada um fazendo um pouco melhor que o anterior.

Na exposição sobre “A Fapesp e os desafios da sociedade do conhecimento”, Brito Cruz referiu-se inicialmente às características da pesquisa e à maneira como o conhecimento afeta a vida das pessoas, dizendo que o indicador mais marcante é a aspiração de viver mais. Na pré-história, a expectativa de vida do homem era de 26 anos, porque se tratava de um ser desprotegido, podia cair num buraco, ser comido ou ferido por um bicho, contrair infecção para a qual não havia cura.

Atualmente, o tempo médio de vida é 80 anos, e só não se estende mais porque o progresso traz soluções e problemas. Vida mais longa, exigência de mais alimentos. E a previdência, como fica? Até a vida familiar muda. Antes, o casal prometia estar unido “até que a morte os separasse”, o que não era tão difícil de cumprir se ambos vivessem 40 ou 50 anos; mas, vivendo 90 ou 100 anos, dá para esperar a morte na fidelidade à promessa?

Outra característica da vida melhorada com a pesquisa e o conhecimento, segundo Brito Cruz, é a velocidade dos meios de transporte. No tempo do homem a pé, ou da tração animal, não se passava dos dez quilômetros/hora; depois vieram o motor a explosão, o automóvel, o avião a jato. “Agora dá até para trazer um dinamarquês para falar em seminário na USP Leste.” A desvantagem vem a reboque. Por exemplo, a gripe aviária passeia pelos continentes.

O conhecimento, segundo o diretor científico da Fapesp, não costuma ser buscado com um fim específico, prefixado. A ciência nuclear nasceu da curiosidade dos cientistas sobre até que ponto a matéria podia ser dividida, e o que haveria na última fração possível. Descobriu-se que havia átomos, prótons, nêutrons. Não demorou e foi feita a bomba atômica, que em segundos destruiu a vida de milhares de japoneses. Não era nisso que os primeiros pesquisadores pensavam. Também não se deve imaginar que os grandes inventos tenham vindo da cabeça de gênios. Aos gênios, se é que os houve, coube apenas colocar a cereja no bolo que os antecessores confeitaram.


Mais uma prova, trazida por Brito Cruz, de que o conhecimento é essencial para o desenvolvimento são as navegações portuguesas dos séculos 15 e 16. Eles não saíram ao mar de uma hora para outra, confiando na sorte. Prepararam-se para isso pesquisando muito e com método. Fizeram o mapa das correntes marítimas e, na hora de se lançarem ao mar, souberam contornar os ventos, até alcançar o Novo Mundo.

O Brasil não fica para trás quando se trata de adquirir conhecimento e novas tecnologias. Em alguns casos, pode até dar lições aos que se consideram mais desenvolvidos. Brito Cruz lembra os avanços tecnológicos no processo eletrônico de voto; na exploração marítima de petróleo, a 4 mil metros de profundidade (2 mil na lâmina de água e mais 2 mil abaixo dela); na fabricação de aviões a jato da Embraer; nos carros flex, de combustível múltiplo; e no agronegócio.

A universidade é onde o conhecimento costuma nascer com maior freqüência, e daí se espalhar pelo mundo empresarial. Um bom exemplo disso lembrado pelo professor da Unicamp, é o surfactante pulmonar que, antes de ser fabricado pelo Instituto Butantan, passou por muitas fases de pesquisa acadêmica, muitos papers, muitas teses. Resultado: milhares de vidas de recém-nascidos prematuros são salvas todo ano. Também na universidade se formam os doutores, que conduzem as pesquisas. A USP é a instituição que mais forma doutores no Brasil. Mais, individualmente, que qualquer instituição norte-americana, segundo Brito Cruz.

Só que a pesquisa avança quando tem suporte financeiro. E aí a Fapesp tem a palavra autorizada. Essa instituição brasileira (paulista) é a única do mundo a ter assegurado na Constituição (estadual) 1% do ICMS e o direito de dispor desses recursos (cerca de R$ 500 milhões, em 2004) com plena liberdade, sem interferência do governo nem palpite de políticos. A divisão das verbas é feita entre pagamento de bolsas de estudo, no Brasil e no exterior; auxílio à pesquisa e programas temáticos, tipo Biota e Genoma.

Por último, o diretor científico da Fapesp disse que não passa de tolice a distinção entre pesquisa básica e pesquisa aplicada. É “base” de quê? Só pode ser de alguma aplicação. Pior ainda é falar em pesquisa pura. “As outras são impuras?

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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