"Um homem confiante
faz um cavalo confiante (provérbio milenar)
Questões
relacionadas à alfabetização tornaram-se uma
preocupação da Faculdade de Medicina Veterinária
e Zootecnia (FMVZ) da USP. Por meio de parceria com o Projeto Acolhendo
Alunos em Situação de Exclusão Social e Escolar
com sede na Faculdade de Educação da USP ,
a FMVZ iniciou um projeto de alfabetização de 36 crianças
da zona sul da cidade de São Paulo, com apoio da Pró-Reitoria
de Cultura e Extensão Universitária da USP.
Diante de uma situação em que milhares de alunos não
detêm o aprendizado da língua portuguesa escrita
mesmo tendo passado vários anos no sistema escolar ,
um fato tem chamado a atenção dos pesquisadores da
Faculdade de Educação e da FMVZ: a ampliação
dos locais em que se realizam as práticas educativas.
Atualmente essas práticas transpõem o circuito das
escolas, encaminhando-se de uma maneira mais decisiva para a ocupação
de novos espaços socioculturais. Tal é o caso desse
novo projeto, já que ele está preocupado em atender
às demandas sociais e educativas da população
mais carente de uma escola pública da região de Santo
Amaro por meio de uma parceria entre aquelas unidades da USP e a
Hípica Recanto dos Cavaleiros, de São Paulo.
Essa parceria, no mínimo inusitada, envolve duas metodologias
de trabalho, a equoterapia e a espaço de criação
praticada pelo Projeto Acolhendo , com o objetivo de
promover o ensino e o aprendizado de língua portuguesa em
sua modalidade escrita em alunos que, apesar de um percurso escolar
já realizado, não têm relação
satisfatória com o universo letrado. No caso desse projeto,
o ponto de partida é o mundo dos cavalos.
Auto-estima
Como sabemos, na equoterapia o cavalo é utilizado como recurso
terapêutico, na medida em que, com o seu movimento rítmico,
preciso e tridimensional que ao caminhar se desloca para
frente e para trás, para os lados e para cima e para baixo
, pode ser comparado com a ação da pelve humana
no andar, permitindo, a todo instante, entradas sensoriais em forma
de propriocepção profunda, estimulações
vestibular, olfativa, visual e auditiva.
Sendo assim, durante o trabalho na Hípica, o projeto procurará
estimular a autoconfiança, auto-estima, fala, linguagem,
estimulação tátil, lateralidade, cor, organização
e orientação espacial e temporal, memória,
percepção visual e auditiva, direção,
análise e síntese, raciocínio e vários
outros aspectos cognitivos dos alunos em questão. Os alunos
terão a possibilidade de elevar sua auto-estima, construir
amizades e exercitar comportamentos, tais como: ajudar e ser ajudado,
trabalhar com pessoas de diferentes ritmos e aceitar suas limitações.
Em colaboração com esses pressupostos, o espaço
de criação, tal qual vem sendo realizado pelo Projeto
Acolhendo, propõe o ensino da língua portuguesa escrita
a partir da concepção de letrismo a-funcional (termo
utilizado pelo pesquisador francês Jean Biarnès, que
compreende a idéia de que a dificuldade/recalque de sujeitos
para com as letras é conseqüência de um
amplo sistema de significações diversas em que o sujeito
em relação com o seu meio atribui à sua
própria relação com a letra, ou seja,
que os problemas da alfabetização vão além
da dificuldade de compreensão e associação).
Destacamos que esse conceito biarnesiano se aplica à situação
atual de inúmeras crianças que não se apossam
do mundo letrado, apesar de estarem na escola há alguns anos.
Quando o fato é percebido, os alunos podem passar por diversos
processos de exclusão e discriminação ao serem
taxados de fracassados, problemáticos e, muitas vezes, incapazes
de aprender. Esses alunos têm a sua auto-estima corroída
e as portas do aprendizado se fecham para eles.
O mundo dos cavalos, inclusive por suas características terapêuticas,
tem conseguido resgatar a confiança dos alunos em si mesmos
perdida num processo de educação exclusivo
, o que contribui para diminuir a demanda por cursos de alfabetização
de jovens e adultos. Além disso, há que se resgatar
o médico belga Ovide-Jean Decroly (1871-1932), que já
no início do século passado apresentava o mundo animal
como um dos centros de interesse das crianças.
A
mãe e o bebê
À luz da teoria do psicanalista inglês D. Winnicott,
e de acordo com a metodologia espaço de criação,
o cavalo constitui um objeto transicional na medida
em que é, ao mesmo tempo, externo ao cavaleiro e forma com
o homem uma só peça. Dito de outro modo, cavalo e
cavaleiro se fundem e formam um objeto que não
é realidade externa nem interna ao indivíduo. Eles
formam um objeto transicional.
O conceito espaço de criação ou
ainda espaço transicional foi desenvolvido por
Winnicott na primeira metade do século 20 e publicado em
1951, num artigo intitulado Objetos transicionais e fenômenos
transicionais. Ele significa o espaço cultural em que
o brincar, o ato criativo e a experiência cultural se desenvolvem.
Existe entre a mãe e o bebê de modo hipotético.
Na medida em que o bebê percebe que ele não é
a mãe, que entre ele e a mãe existe um espaço
físico e temporal ou que a mãe é
realidade exterior a ele, o bebê faz inúmeras tentativas
para preencher esse espaço e diminuir a sua angústia
pela espera do seio materno. Para preencher esse espaço,
o bebê precisa inventar algo, colocar algum substituto
da mãe enquanto a aguarda, ou seja, ele precisa criar para
não sofrer. E assim, o bebê, enquanto a mãe
não vem, se contenta com uma mamadeira, uma chupeta, um paninho
ou mesmo o próprio dedo.
Esses objetos que se encontram entre a espera do bebê
pela mãe e sua chegada, objetos que minimizam a angústia,
foram chamados por Winnicott de objetos transicionais,
e o despertar da criatividade para a solução da angústia
da separação foram conceituados como fenômenos
transicionais.
Biarnès defende que cada aluno é um sujeito singular
e, por isso, portador de saberes, de imagens, de metáforas
e de potencialidades diferentes, que não conhecemos e que
não sabemos reconhecer. A única possibilidade, então,
é a criação em conjunto, tal como nos apresentou
Paulo Freire.
Na medida em que o processo de alfabetização se constitui
por meio do diálogo entre aquele que educa e aquele que aprende,
inspiramo-nos também em Paulo Freire para ensinar a ler e
a escrever no Recanto dos Cavaleiros. Para o ilustre educador, há
que se alfabetizar a partir da fala de nossos alunos. Por isso,
muitos livros didáticos, cartilhas e outros materiais didáticos
se tornam vazios e abstratos para o aluno em situação
de pouco domínio da língua escrita. Em direção
oposta a isso, o trabalho freireano se inicia com uma pequena pesquisa
do vocabulário acerca da realidade local em que os indivíduos
serão alfabetizados.
No caso do projeto entre a USP e a Hípica Recanto dos Cavaleiros,
nós poderíamos nos inserir no cotidiano desses 36
alunos da zona sul de São Paulo e, por meio do vocabulário
utilizado por eles, alfabetizar tal qual o mestre nos ensinou. Mas
preferimos inovar e inserir esses alunos em um mundo novo, o mundo
dos cavalos, e, a partir da fala necessária para a vida cultural
no Recanto dos Cavaleiros, construir um universo vocabular.
Depois de conviver nessa escola de equitação, começamos
a aprender com os proprietários do local, com seus freqüentadores
e professores, entre outros, todas as situações que
poderiam ser exploradas. Parafraseando Freire, notamos o vivido
e o pensado expressos nas palavras, frases, comentários e
dizeres de todos que ali estão.
Os
animais utilizados no projeto de alfabetização de
crianças em São Paulo: com a iniciativa, pesquisadores
ampliam os locais em que se realizam as práticas educativas
Bucéfalo
Feito isso, com a FMVZ, obtivemos recursos para inserir nossos alfabetizandos
nesse novo contexto e nesse universo particular específico
e iniciamos a aventura pelo mundo da escrita. Dessa realidade sociocultural,
destacamos três grupos semânticos de palavras que, juntos,
compõem o universo vocabular do mundo dos cavalos. Estes
podem ser denominados da seguinte maneira: 1) o mundo natural; 2)
a arte de montar; e 3) a cavalhada.
Para prosseguirmos nosso trabalho, palavras que se referem aos cavalos
e cavalhadas, que nos remetem a outros lugares e outros tempos,
serão utilizadas. Sugerimos, nesta segunda etapa do trabalho,
sempre na perspectiva dos três grupos semânticos apresentados
acima, os seguintes termos: Bucéfalo (cavalo de Alexandre,
com protuberâncias semelhantes aos chifres do boi, que, curiosamente,
tinha medo da própria sombra); Oxer (nome de obstáculo
olímpico, constituído por dois obstáculos dispostos
em sentido crescente para serem transpostos num salto); Cavalhadas
de Santo Amaro da Purificação (festa popular com uso
de eqüestres na Bahia no século 18), dentre outros.
Dessa maneira, unindo fundamentos da equoterapia e estudos feitos
na área da educação, crianças em situação
de exclusão social e escolar poderão reviver
o desenvolvimento do seu eu, quando sentiam o corpo
da sua mãe como um prolongamento do seu, já que, ao
aprender fundamentos da arte da montaria, projetarão esse
bem-estar quando sobre os cavalos, numa união
centáurea. E assim nossos jovens cavaleiros serão
carregados pelos animais, tal como foram carregados por suas mães,
e por isso poderão ter uma série de lembranças
infantis, (re)fazer um percurso de renarcisização
do eu e transformar o universo letrado do mundo dos
cavalos num ambiente vocabular materno, possível de ser aprendido.
Nilce
da Silva (nilce@usp.br) é professora da Faculdade de Educação
da USP e coordenadora do Projeto Acolhendo Alunos em Situação
de Exclusão Social e Escolar (www.projetoacolhendo.ubbihp.com.br).
Birgit G. Von Pescatore da S. Araújo é professora
de equitação do Recanto dos Cavaleiros. Raquel Yvonne
Arantes Baccarin (baccarin@usp.br) é professora da Faculdade
de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP
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