Um rosto em forma de gota, os olhos fechados como se
ela estivesse muito distante, muito além, e as mãos
pousadas no colo, segurando um crucifixo. O véu rosa cai
leve sobre o vestido verde e branco. E a Santa Margarida, que nasceu
em 275 em Antióquia da Pisidia, uma cidade da Ásia
Menor, reaparece em uma das sete salas ocupadas pela mostra Luz
e Sombra na Pintura Italiana Entre o Renascimento e o Barroco,
na Pinacoteca do Estado.
O que impressiona na obra de Guido Reni (Bolonha, 1575-1642) é
a luz que envolve a santa, que emana da tela e se espalha sutilmente
pela sala. Não é a luz das janelas, dos refletores.
É a luz que Reni conseguiu filtrar para compor a imagem sublime
da santa, que morreu torturada aos 15 anos e está entre os
14 santos auxiliadores, que ajudam os cristãos nos momentos
mais difíceis. Ela é a protetora das mulheres no momento
do parto.
O retrato de Santa Margarida de Antióquia está entre
muitos outros assinados por Tiziano Vecellio, Lorenzo Lotto, Tintoretto,
Veronese, Luca Giordano e Guercino, além de diversos artistas
de outras regiões da Europa que viveram na Itália.
Imagens da coleção particular do milanês Luigi
Koelliker, que ainda não tinham sido vistas pelos brasileiros.
Sob a curadoria do historiador da arte Vittorio Sgarbi, o público
pode perceber como os grandes mestres dos séculos 16 e 17
manipularam as técnicas e trabalharam a sua percepção
para transmitir a luz e a sombra, que são os aspectos mais
significativos da plástica italiana entre o Renascimento
e o Barroco. Não há um tema central nesta mostra,
explica Sgarbi. Queremos mostrar a interioridade, a inquietude
e as crenças nos rostos criados por diferentes mestres. Procurei
reunir obras expressivas que pudessem traduzir o intenso intercâmbio
de idéias entre os principais centros europeus, que atesta
o caráter internacionalista do maneirismo e do barroco, em
uma época de diálogo e de transformações.
Sgarbi escolheu três vertentes fundamentais para documentar
as mais importantes escolas italianas: a veneziana, a bolonhesa
e a romana. Vertentes documentadas com clareza na coleção
de Luigi Koelliker, um milionário que conseguiu criar um
museu paralelo com 2 mil obras. Esse ambicioso colecionador,
que se move por entre relógios alemães do século
16, marfins, corais, velas, num caleidoscópio de maravilhas,
pretendeu absorver, nesses anos, a função do Estado,
adquirindo importantes obras com sistematicidade e com particular
predileção pelas pinturas caravaggescas, explica.
A sua coleção não permitiu que se perdesse
um patrimônio extraordinariamente errante espalhado pela Itália
e fora da Itália, que se estudasse, descobrisse e valorizasse
obras e artistas insuficientemente conhecidos e estudados.
Diferentes
imagens
A passagem bíblica de Davi e Golias é retratada, na
mostra, por diversos mestres, permitindo ao público estabelecer
uma comparação entre os artistas. Perceber os diferentes
modos de trabalhar com a cor, a composição, a figura,
o fundo, os planos de luz e de sombra e também a criatividade
na interpretação.
O Davi de Domenico Fetti (1589-1624) está em primeiro plano.
O crítico Massimo Pulini descreve que o observador encontra
o olhar de Davi segurando a cabeça de Golias e percebe a
espada tão gigante quanto o algoz. No recorte entre
a espada e o corpo de Davi encerra-se um horizonte embebido de luz,
e por cima dessa janela ideal abre-se um céu alto, as nuvens
rosadas esticadas pelo vento. O jovem vencedor veste um chapéu
vermelho de pluma negra, uma túnica branca com decoração
vermelha e um manto de peles amarrados por fivelas e franjas evidentes.
O heroísmo de Davi, de Fetti, contrasta com o de Giuseppe
Cesari (1568-1640). O jovem corajoso tem um ar fragilizado, acentuado
pelos cabelos encaracolados dourados e o peito nu. A espada não
aparece. Davi é apresentado com doçura e um olhar
que expressa mais dor do que ira. Segura a cabeça do gigante
pelos cabelos. O fundo do quadro tem predomínio do azul escuro
e do preto.
Há ainda o Davi com a cabeça de Golias de Bartolomeo
Manfredi (1582-1622). Nesse quadro, Davi mostra a sua vivacidade
e força. Os ombros à mostra, a espada na mão
direita e a cabeça de Golias na esquerda. Uma composição
onde o drama da passagem fica evidenciado no olhar de Davi, no manto
vermelho sobre os seus ombros e na sombra marrom que emerge do fundo
da tela.
Também Giuseppe Vermiglio (1585-1635) conta a sua versão.
Davi e Golias em primeiro plano. Davi se apresenta tão forte
quanto o gigante. Embora exiba a cabeça triunfante, o seu
olhar é tímido. A obra, que compareceu no mercado
antiquário no final dos anos 80, se encontra, no conjunto,
em bom estado de conservação, descreve a crítica
Laura Damiani Cabrini. Traduz um episódio bíblico
que teve muita sorte entre os pintores atraídos pelo naturalismo
caravaggesco. Davi parece tímido, o corpo de três quartos
voltados para a direita, a cabeça ligeiramente reclinada
para a esquerda, acenando, de má vontade, um sorriso forçado.
A espada, protagonista do delito terrível, se ergue para
caber na vista do pintor, a cabeça da vítima designada
erguida e exibida como troféu macabro.
O
pintor e o poeta
Entre os grandes da escola de Veneza está Tiziano Vecellio
(1490-1576), representado por três retratos que testemunham
as suas melhores fases. O do poeta Pietro Aretino (1492-1556), com
o rosto emoldurado por barba e bigodes apoiado na mão direita,
em posição contemplativa, reflete bem a sensibilidade
de Tiziano.
O pintor procurou captar o momento do poeta e grande amigo na frase
Apoiados os braços à sacada da janela, olhei
para o espetáculo mirável que faziam os barcos infinitos.
Ao olhar o retrato, o público da Pinacoteca se depara não
só com a perfeição e os detalhes da pintura,
mas com a história que o pintor quis lembrar:
Pietro Aretino nasceu em Arezzo, filho de sapateiro, dotado de uma
inteligência e sensibilidade singulares, que o levaram a escrever
diversas obras teatrais e poemas satíricos. Da sutileza no
contorno dos olhos até o pulso plissado da camisa branca,
é possível observar, segundo o curador Vittorio Sgarbi,
uma natureza de que só Tiziano era capaz. A superfície
pictórica é feita de camadas diáfanas e luzentes,
conservando, porém, uma prodigiosa força de caráter.
A partir dessa atentíssima observação de um
amigo em atitude pensativa, Tiziano sairia para uma vida dedicada
à exploração do retrato psicológico.
Outro quadro que surpreende pela beleza e dramaticidade é
Sansão e Dalila, de Pietro Liberi (1614-1687). O pintor conseguiu
contar a história do Velho Testamento. Liberi pintou Sansão
entregue sobre o colo de Dalila com o seio nu e a tesoura na mão
direita. Esse tema, freqüente na iconografia cristã,
era interpretado pelos artistas desrespeitando as Escrituras, já
que não fora Dalila a cortar os cabelos de Sansão
e sim um filisteu, explica o historiador Edward Safarik. Os
cabelos, símbolo da virtude, são o atributo principal
do homem: a virilidade, a potência e a força vital.
Seu corte corresponde a uma rendição, renúncia
e perda da personalidade. Em alguns povos, os cabelos são
a senha mágica do reconhecimento.
Centro
artístico
A mostra Luz e Sombra traz um período histórico
que corresponde às grandes descobertas náuticas de
Cristóvão Colombo e Fernão de Magalhães
e da conseqüente reconfiguração do mundo. Destaca
dois séculos de produção artística de
diferentes movimentos, que foram essenciais para a formação
da cultura nas Américas, impulsionando o pensamento e as
artes no Brasil, afirma o crítico e historiador Fábio
Magalhães. Esta exposição inclui importantes
artistas do Renascimento, mas se volta, sobretudo, para o maneirismo
e o barroco.
Magalhães lembra que a Itália já era um grande
centro artístico, científico e cultural no século
15. Mas foi nos séculos seguintes que os grandes mestres
italianos dominaram as artes e o pensamento da Europa, influenciando
artistas de todo o continente. Nesse longo período,
a Itália foi outra vez, em muitos aspectos, o centro do mundo.
Inúmeros artistas de outras regiões procuraram na
Itália a fonte para sua criação. Muitos trabalharam
nos estúdios dos mestres da pintura ou realizaram viagens
de estudos e regressaram para sua cidade levando na bagagem as técnicas
e idéias adquiridas em Veneza. É o caso do grande
pintor alemão Pieter Paul Rubens (1577-1640), que viveu em
Veneza e foi influenciado por Tiziano, Veronese e Tintoretto.
Na avaliação de Magalhães, Luz e Sombra
é a mais importante mostra de arte italiana apresentada no
Brasil desde a exposição De Caravaggio a Tiepolo,
exibida em 1954 pela Pinacoteca e organizada pelo governo italiano,
durante as comemorações do quarto centenário
de São Paulo. Importante lembrar que possuímos
no Brasil uma extraordinária coleção de arte
italiana dos períodos do Renascimento e do barroco no Museu
de Arte de São Paulo e no Museu Nacional de Belas Artes do
Rio de Janeiro.
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