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“Luz e Sombra na Pintura Italiana – Entre o Renascimento e o Barroco”, em cartaz até 30 de abril na Pinacoteca do Estado (Praça da Luz, 2), de terça-feira a domingo, das 10 às 18 horas. O ingresso custa R$ 4,00. Grátis aos sábados. Mais informações: (011) 3229-9844.



U
m rosto em forma de gota, os olhos fechados como se ela estivesse muito distante, muito além, e as mãos pousadas no colo, segurando um crucifixo. O véu rosa cai leve sobre o vestido verde e branco. E a Santa Margarida, que nasceu em 275 em Antióquia da Pisidia, uma cidade da Ásia Menor, reaparece em uma das sete salas ocupadas pela mostra “Luz e Sombra na Pintura Italiana – Entre o Renascimento e o Barroco”, na Pinacoteca do Estado.

O que impressiona na obra de Guido Reni (Bolonha, 1575-1642) é a luz que envolve a santa, que emana da tela e se espalha sutilmente pela sala. Não é a luz das janelas, dos refletores. É a luz que Reni conseguiu filtrar para compor a imagem sublime da santa, que morreu torturada aos 15 anos e está entre os 14 santos auxiliadores, que ajudam os cristãos nos momentos mais difíceis. Ela é a protetora das mulheres no momento do parto.

O retrato de Santa Margarida de Antióquia está entre muitos outros assinados por Tiziano Vecellio, Lorenzo Lotto, Tintoretto, Veronese, Luca Giordano e Guercino, além de diversos artistas de outras regiões da Europa que viveram na Itália. Imagens da coleção particular do milanês Luigi Koelliker, que ainda não tinham sido vistas pelos brasileiros.

Sob a curadoria do historiador da arte Vittorio Sgarbi, o público pode perceber como os grandes mestres dos séculos 16 e 17 manipularam as técnicas e trabalharam a sua percepção para transmitir a luz e a sombra, que são os aspectos mais significativos da plástica italiana entre o Renascimento e o Barroco. “Não há um tema central nesta mostra”, explica Sgarbi. “Queremos mostrar a interioridade, a inquietude e as crenças nos rostos criados por diferentes mestres. Procurei reunir obras expressivas que pudessem traduzir o intenso intercâmbio de idéias entre os principais centros europeus, que atesta o caráter internacionalista do maneirismo e do barroco, em uma época de diálogo e de transformações.”

Sgarbi escolheu três vertentes fundamentais para documentar as mais importantes escolas italianas: a veneziana, a bolonhesa e a romana. Vertentes documentadas com clareza na coleção de Luigi Koelliker, um milionário que conseguiu criar um museu paralelo com 2 mil obras. “Esse ambicioso colecionador, que se move por entre relógios alemães do século 16, marfins, corais, velas, num caleidoscópio de maravilhas, pretendeu absorver, nesses anos, a função do Estado, adquirindo importantes obras com sistematicidade e com particular predileção pelas pinturas caravaggescas”, explica. “A sua coleção não permitiu que se perdesse um patrimônio extraordinariamente errante espalhado pela Itália e fora da Itália, que se estudasse, descobrisse e valorizasse obras e artistas insuficientemente conhecidos e estudados.”

Diferentes imagens

A passagem bíblica de Davi e Golias é retratada, na mostra, por diversos mestres, permitindo ao público estabelecer uma comparação entre os artistas. Perceber os diferentes modos de trabalhar com a cor, a composição, a figura, o fundo, os planos de luz e de sombra e também a criatividade na interpretação.

O Davi de Domenico Fetti (1589-1624) está em primeiro plano. O crítico Massimo Pulini descreve que o observador encontra o olhar de Davi segurando a cabeça de Golias e percebe a espada tão gigante quanto o algoz. “No recorte entre a espada e o corpo de Davi encerra-se um horizonte embebido de luz, e por cima dessa janela ideal abre-se um céu alto, as nuvens rosadas esticadas pelo vento. O jovem vencedor veste um chapéu vermelho de pluma negra, uma túnica branca com decoração vermelha e um manto de peles amarrados por fivelas e franjas evidentes.”

O heroísmo de Davi, de Fetti, contrasta com o de Giuseppe Cesari (1568-1640). O jovem corajoso tem um ar fragilizado, acentuado pelos cabelos encaracolados dourados e o peito nu. A espada não aparece. Davi é apresentado com doçura e um olhar que expressa mais dor do que ira. Segura a cabeça do gigante pelos cabelos. O fundo do quadro tem predomínio do azul escuro e do preto.

Há ainda o Davi com a cabeça de Golias de Bartolomeo Manfredi (1582-1622). Nesse quadro, Davi mostra a sua vivacidade e força. Os ombros à mostra, a espada na mão direita e a cabeça de Golias na esquerda. Uma composição onde o drama da passagem fica evidenciado no olhar de Davi, no manto vermelho sobre os seus ombros e na sombra marrom que emerge do fundo da tela.

Também Giuseppe Vermiglio (1585-1635) conta a sua versão. Davi e Golias em primeiro plano. Davi se apresenta tão forte quanto o gigante. Embora exiba a cabeça triunfante, o seu olhar é tímido. “A obra, que compareceu no mercado antiquário no final dos anos 80, se encontra, no conjunto, em bom estado de conservação”, descreve a crítica Laura Damiani Cabrini. “Traduz um episódio bíblico que teve muita sorte entre os pintores atraídos pelo naturalismo caravaggesco. Davi parece tímido, o corpo de três quartos voltados para a direita, a cabeça ligeiramente reclinada para a esquerda, acenando, de má vontade, um sorriso forçado. A espada, protagonista do delito terrível, se ergue para caber na vista do pintor, a cabeça da vítima designada erguida e exibida como troféu macabro.”

O pintor e o poeta

Entre os grandes da escola de Veneza está Tiziano Vecellio (1490-1576), representado por três retratos que testemunham as suas melhores fases. O do poeta Pietro Aretino (1492-1556), com o rosto emoldurado por barba e bigodes apoiado na mão direita, em posição contemplativa, reflete bem a sensibilidade de Tiziano.
O pintor procurou captar o momento do poeta e grande amigo na frase “Apoiados os braços à sacada da janela, olhei para o espetáculo mirável que faziam os barcos infinitos”. Ao olhar o retrato, o público da Pinacoteca se depara não só com a perfeição e os detalhes da pintura, mas com a história que o pintor quis lembrar:
Pietro Aretino nasceu em Arezzo, filho de sapateiro, dotado de uma inteligência e sensibilidade singulares, que o levaram a escrever diversas obras teatrais e poemas satíricos. Da sutileza no contorno dos olhos até o pulso plissado da camisa branca, é possível observar, segundo o curador Vittorio Sgarbi, uma natureza de que só Tiziano era capaz. “A superfície pictórica é feita de camadas diáfanas e luzentes, conservando, porém, uma prodigiosa força de caráter. A partir dessa atentíssima observação de um amigo em atitude pensativa, Tiziano sairia para uma vida dedicada à exploração do retrato psicológico.”

Outro quadro que surpreende pela beleza e dramaticidade é Sansão e Dalila, de Pietro Liberi (1614-1687). O pintor conseguiu contar a história do Velho Testamento. Liberi pintou Sansão entregue sobre o colo de Dalila com o seio nu e a tesoura na mão direita. “Esse tema, freqüente na iconografia cristã, era interpretado pelos artistas desrespeitando as Escrituras, já que não fora Dalila a cortar os cabelos de Sansão e sim um filisteu”, explica o historiador Edward Safarik. “Os cabelos, símbolo da virtude, são o atributo principal do homem: a virilidade, a potência e a força vital. Seu corte corresponde a uma rendição, renúncia e perda da personalidade. Em alguns povos, os cabelos são a senha mágica do reconhecimento.”

Centro artístico

A mostra “Luz e Sombra” traz um período histórico que corresponde às grandes descobertas náuticas de Cristóvão Colombo e Fernão de Magalhães e da conseqüente reconfiguração do mundo. “Destaca dois séculos de produção artística de diferentes movimentos, que foram essenciais para a formação da cultura nas Américas, impulsionando o pensamento e as artes no Brasil”, afirma o crítico e historiador Fábio Magalhães. “Esta exposição inclui importantes artistas do Renascimento, mas se volta, sobretudo, para o maneirismo e o barroco.”

Magalhães lembra que a Itália já era um grande centro artístico, científico e cultural no século 15. Mas foi nos séculos seguintes que os grandes mestres italianos dominaram as artes e o pensamento da Europa, influenciando artistas de todo o continente. “Nesse longo período, a Itália foi outra vez, em muitos aspectos, o centro do mundo. Inúmeros artistas de outras regiões procuraram na Itália a fonte para sua criação. Muitos trabalharam nos estúdios dos mestres da pintura ou realizaram viagens de estudos e regressaram para sua cidade levando na bagagem as técnicas e idéias adquiridas em Veneza. É o caso do grande pintor alemão Pieter Paul Rubens (1577-1640), que viveu em Veneza e foi influenciado por Tiziano, Veronese e Tintoretto.”

Na avaliação de Magalhães, “Luz e Sombra” é a mais importante mostra de arte italiana apresentada no Brasil desde a exposição “De Caravaggio a Tiepolo”, exibida em 1954 pela Pinacoteca e organizada pelo governo italiano, durante as comemorações do quarto centenário de São Paulo. “Importante lembrar que possuímos no Brasil uma extraordinária coleção de arte italiana dos períodos do Renascimento e do barroco no Museu de Arte de São Paulo e no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.”

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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