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O mestre partiu na sexta-feira, 21 de abril, Dia de Tiradentes. Foi divulgar pela eternidade os ensinamentos do futebol-arte. Quando estava por aqui, deixou a máxima de que na vida o homem deve privilegiar o talento, sem usar da arbitrariedade que tanto maltrata este país. Era o fio de esperança que confortava o povo nos momentos sombrios. A derrota para a Itália, em 1982, na Copa do Mundo da Espanha, encheu de orgulho verde-amarelo todos aqueles que acreditam no trabalho, no reconhecimento, na alegria de viver, enfim, no povo brasileiro. O suíço Jornal de Genéve assim relatou o momento, em texto reproduzido pelo Jornal O Estado de S. Paulo, em 20 de julho de 1982: “O mais surpreendente é a admiração unânime que o time brasileiro despertou no público europeu. A alegria de jogar, a elegância de movimentos talentosos, numa formação que, como o próprio país, apresenta um mosaico único e harmonioso de raças e indivíduos”.

fotos: reprodução

Dez anos depois, com a vitória no Mundial Interclubes de 1992, pelo São Paulo Futebol Clube, Telê despertou a criatividade brasileira como elemento diferencial para a sobrevivência, num universo marcado por homens que são maltratados pelo destino, como Zico, no pênalti que perdeu na Copa do México, em 1986, ou por ele mesmo, quando foi chamado de “pé- frio” por toda a imprensa brasileira após perder duas Copas do Mundo, mas que recuperaram a estima, levantaram a cabeça e pensaram sempre no passo adiante. O jornalista Armando Nogueira ilustrou a figura do mestre nesta crônica, publicada também no Estadão, em 1º de janeiro de 1993: “Eis que das trevas do antijogo desponta magnífica a bola do renascimento. Chegada pelas mãos provinciais do São Paulo, o mais iluminado entre os doze apóstolos. Eleito pelo senhor, tocou-lhe a incumbência de restituir ao rebanho dos estádios a santa alegria do futebol jogado com engenho e arte. Tal como prega o capítulo 1 do Evangelho. Segundo o fiel discípulo Telê, filho de Santana”. No bicampeonato mundial de 1993, veio a certeza de que a felicidade está no cotidiano das ações, na continuidade, no acreditar em si mesmo, mesmo sabendo que esse momento vai passar. A influência do técnico foi exemplificada pelo jornalista Matinas Suzuki Júnior, na crônica “E então a gente faz amor por Telê-patia”, publicada no jornal Folha de S. Paulo, em 14 de dezembro de 1993. No texto, o autor divide o futebol brasileiro das últimas quatro décadas em duas fases: a de Pelé, em que apenas o jogador apresentava o espetáculo, e a de Telê, que aliava a individualidade ao planejamento tático. Duas novas derivações foram apresentadas: teleza (beleza no futebol) e telear (disputar e vencer com ética e beleza). O caráter marcaria a trajetória do indivíduo, que, como ele, serviria de referência pelas atitudes marcadas pela honestidade e pela luta contra a desorganização e a violência. “O exemplo vencedor de sua luta no futebol deveria ser o exemplo de uma luta obrigatória em todas as esferas da sociedade”, escreveu Suzuki.

A disciplina como liberdade era a marca do Mago dos Onze. Organizava um time sem desprezar seus comandados. Observava o homem como cidadão que sabe lutar diante das suas deficiências. Transformou o botinudo Ronaldão num respeitado zagueiro, tetracampeão do mundo em 1994. Os conselhos eram fundamentados em ações. Pedia que guardassem o dinheiro e se preservassem, como ele fez quando jogador, na tentativa de alertar sobre o acaso. O desequilíbrio (emocional e/ou físico) serviria como aprendizado para se repensar sobre as atitudes e pensamentos.

A orientação do mestre chegou a ser observada nos artigos publicados pela Folha, quando colaborava com o jornal. Alguns meses após a conquista da Copa de 1994, nos Estados Unidos, Telê se dirigiu diretamente ao atacante Romário, quando, no auge da carreira, se meteu em algumas confusões. O título do artigo, “Romário, deixa de lado os prazeres que te prejudicam”, publicado em 12 de fevereiro de 1995, reflete o intuito da mensagem. É que, para Telê, qualquer deslize poderia colocar a amargura no lugar do conforto. Isso foi refletido pelo músico e professor da USP José Miguel Wisnik, na crônica “Dener não encontrou o treinador certo”, publicada na Folha, em 22 de abril de 1994, sobre a morte trágica do jogador (ex-Portuguesa de Desportos e Vasco da Gama), após um acidente de automóvel: “No futebol brasileiro, Telê Santana assumiu o papel moderador de pai que forma e transforma o jogador, fazendo com que ele surja e ressurja metamorfoseado pelos limites que são impostos e ao mesmo tempo pela extraordinária liberdade que ele conquista. Telê arca com esse papel solidário, inclusive na neurastenia com que lamenta cronicamente ser, ele mesmo, o assumido portador da Lei num país sem ela”.

Encontrei Telê apenas duas vezes, uma em 1993, no auge da carreira como treinador, e outra, em 1998, já debilitado pela doença. Em ambas, a bandeira seria a defesa do futebol-arte, do espetáculo como jogo da vida. Ele me ensinou a acreditar nas pessoas. Mostrava que o essencial era incentivar o próximo a descobrir o próprio talento, sem desistir da batalha diante de uma derrota ou de atitudes medíocres de alguém que julga o outro por benefício próprio.

Há pouco mais de dez anos, eu vivia numa cidade do interior, sem saber o que fazer da minha vida. Sempre admirei Telê como exemplo do homem que trazia a esperança nos momentos de desespero. A dignidade conquistada pelos princípios que defendeu, mesmo sendo maltratado nas derrotas por aqueles que colocam a competição em primeiro lugar, foi o estímulo que eu precisava para encontrar o meu caminho. O modelo de Telê me fez acreditar que é possível organizar o Brasil, quando se explora a criatividade deste povo e quando se luta contra a desigualdade, a violência e as diferenças, sendo a atitude de cada um o exemplo para o outro. Obrigado, Mestre, por eu estar aqui na USP escrevendo este artigo para este importante periódico.

Luciano Maluly é professor na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, autor da dissertação “O futebol-arte de Telê Santana no jornalismo esportivo de Armando Nogueira”.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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