Eleito
com o apoio de vários chefes de Estado da América
Latina, inclusive do brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva,
o presidente da Bolívia, Evo Morales, ainda em início
de mandato, já causa dores de cabeça aos países
vizinhos, sobretudo ao Brasil. Depois de dizer que considera o
presidente brasileiro “um
irmão mais velho”, por causa da origem sindicalista
de ambos, e de afirmar que a Petrobras, maior multinacional na
Bolívia, é “uma
parceira”, Morales anunciou, no dia 1o de maio, a nacionalização
de todas as reservas de gás natural e de petróleo
do país. Com
a medida de Morales – um ex-líder cocaleiro que
chegou ao poder filiado ao Movimento ao Socialismo (MAS), principal
partido de esquerda boliviano –, toda a produção
de gás terá que ser vendida para a YPFB, estatal
boliviana do setor, e o imposto sobre o produto aumentou de 50%
para 82%. As empresas estrangeiras têm prazo de 180 dias
para dizer se aceitam as novas condições ou se deixam
a Bolívia.
O
estardalhaço feito por Morales para anunciar as novas
determinações,
com soldados bolivianos cercando as refinarias de multinacionais
do setor de hidrocarbonetos, desagradou ao governo brasileiro e
deu a impressão de que o presidente só tomou essa
decisão
para fazer crescer sua popularidade, em constante queda nas últimas
pesquisas. “Decisões de cunho nacionalista, como essa
de Evo Morales, têm sempre um forte apoio das massas, que
vêem
como se o país tivesse recuperado um bem natural que, por
muito tempo, só foi explorado em benefício exclusivo
de empresas estrangeiras”, analisa o professor Rafael Villa,
docente do Departamento de Ciência Política da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e
coordenador acadêmico do Núcleo de Pesquisa em Relações
Internacionais (Nupri) da USP.
Embora
a nacionalização preocupe o governo brasileiro
e os analistas de relações internacionais, é muito
difícil que a Bolívia tenha recursos financeiros para
montar a infra-estrutura necessária para explorar suas reservas
de gás natural e de petróleo, acredita Villa. Para
isso, continua o professor, o Estado teria que se endividar a fim
de investir na montagem desse aparato e a economia poderia entrar
em colapso – a não ser que o país conte com a
ajuda de organismos internacionais, como o Banco Mundial e o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), ou de algum país
rico.
Depois
de passada a surpresa com as medidas de Morales e de ter prometido
uma reação forte, o governo brasileiro recuou e reconheceu
a soberania do governo boliviano para nacionalizar as sua reservas
de gás natural. É o que também acha o professor
Rafael Villa. “Os outros países devem entender que a
decisão de Morales foi soberana, ainda mais pelo fato de ele
ter estipulado um prazo de 180 dias para as empresas estrangeiras
se adaptarem à determinação. Elas não
foram obrigadas a deixar imediatamente o país”, opina
o professor.
Inflação – “As autoridades brasileiras
devem usar todos os instrumentos diplomáticos e de conciliação
com a Bolívia, pois um eventual prejuízo da Petrobras
com os investimentos naquele país pode causar um aumento
da inflação e conseqüente desarranjo na economia”,
alerta Villa, ressaltando que o processo de nacionalização
do gás e do petróleo bolivianos se consolidará,
no mínimo, em médio prazo.
Para
Villa, a Bolívia é ainda muito dependente do
comércio com outros países, principalmente com os
Estados Unidos, por isso uma radicalização do governo
Morales pode afugentar investimentos estrangeiros no país
e gerar uma grave crise econômica. Mesmo a Venezuela, com
todo o discurso antiimperialista de Hugo Cháves, é bastante
dependente da exportação de petróleo para
os norte-americanos, lembra o professor. “Esse tipo de medida
tomada por Morales sempre tem um ônus, que nesse caso é a
possibilidade de a Bolívia ficar isolada no plano do comércio
internacional”, acrescenta Villa, ressaltando que não
acredita que Morales abra mão de negociar com países
mais ricos.
O
professor critica a política externa do Brasil – “menina
dos olhos” do governo Lula – diante da
medida de Morales. Para Villa, diplomacia se faz
também com informação
de bastidores e o governo boliviano já vinha
sinalizando que poderia tomar esse tipo de decisão,
ao criar dificuldades para a atuação
da siderúrgica brasileira EBX
naquele país. “É inadmissível
que o governo brasileiro não tenha tido nenhuma
informação
de que Morales pudesse tomar essa decisão
e que tanto o ministro das Relações
Exteriores, Celso Amorim, quanto o presidente da
Petrobras, Sérgio Gabrielli, estivessem
fora do Brasil quando a nacionalização
foi determinada pelo presidente boliviano.”
Com
os sinais de que Morales pode fazer um governo radical de esquerda,
já se especula sobre a formação de
um eixo que reuniria Cuba, Venezuela e Bolívia, de oposição
aos Estados Unidos. Essa união colocaria ainda
mais tensão
na América Latina, sobretudo no que se refere às
pretensões dos Estados Unidos de formar a Área
de Livre Comércio entre as Américas
(Alca) e aos planos de Brasil e Argentina de ampliar
o Mercosul para mais países
do continente. “Contudo, essa aliança
teria pouca força justamente por causa da
dependência que Bolívia
e Venezuela têm do comércio com os Estados
Unidos”,
diz Villa. A oposição boliviana e o
empresariado brasileiro acreditam que a Venezuela
pode estar por trás
da decisão de Evo Morales. A intenção
de Hugo Chávez, de acordo com os analistas
que acreditam nessa hipótese, é firmar
a estatal venezuelana do petróleo e do gás – a
PDVSA – como grande multinacional do ramo na
Bolívia,
em substituição à Petrobras.
Em
nota oficial, o governo brasileiro garantiu que a decisão
de Evo Morales não deve prejudicar a distribuição
de gás no mercado brasileiro, pelo menos no curto prazo.
A Bolívia é responsável por abastecer a maioria
dos consumidores residenciais que possuem gás encanado,
parte das indústrias que usam o gás como fonte de
energia e os proprietários de automóveis movidos
a Gás Natural Veicular (GNV) – muito apreciado pelos
motoristas das grandes cidades, por causa do preço mais
barato do que o álcool e a gasolina. O gás de botijão,
produto de fabricação nacional, não é proveniente
da Bolívia.
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Força e fraqueza da Bolívia
O governo brasileiro terá que repensar a presença
da Petrobras sem comprometer a integração energética
com os bolivianos. É o que afirma o professor Edmilson Moutinho
dos Santos, do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE)
da USP. Ele ressalta que três questões devem
ser consideradas nas negociações: a distribuição
dos ganhos, a presença da Petrobras na Bolívia e
a garantia do suprimento de gás para o Brasil. “Entre
o preço que é pago pelo gás na fonte e a quantia
paga pelos consumidores, há uma diferença de 200%,
no caso de usuários industriais, e de 1.500% nas contas
residenciais”, explica.
“A Bolívia quer uma parte maior dos ganhos, e está
em um momento de força para fazê-lo, pois a dependência
brasileira do gás importado,
a curto prazo, é muito
grande, especialmente no
Sul e no Sudeste.”
Mas Moutinho ressalta que a Bolívia precisa manter o fornecimento
de gás para evitar perda de confiança no gás
natural. “O mercado para esse tipo de energia no Brasil ainda
está engatinhando”, afirma. “O aumento dos investimentos
depende mais da segurança na disponibilidade
do que dos preços.” A Bolívia é responsável
pelo fornecimento diário de 30 milhões de metros
cúbicos
de gás natural para
o Brasil, o que representa 30% do consumo interno.
Negociações – Para Moutinho, a solução
do impasse deve ser negociada pelo governo brasileiro com serenidade,
evitando pressões dentro do País e uma definição
de preços baseada apenas em critérios políticos. “O
projeto do gasoduto é binacional e de longo prazo”,
aponta. “As reservas bolivianas têm duração
estimada de cem anos e circunstâncias de momento não
podem comprometer a integração.”
O papel da Petrobras na Bolívia terá de ser revisto
durante as negociações, diz o professor. “Embora
a operação boliviana seja pouco relevante em seu
faturamento global, a empresa é responsável por 20%
do Produto Interno Bruto (PIB) daquele país”, destaca.
Grandes empresas evitam ter esse tamanho na economia dos países,
mas hoje, segundo o professor, a Petrobras é mais influente
na Bolívia do que no Brasil. Moutinho acrescenta que as
reservas de gás encontradas na Bacia de Santos, no Estado
de São Paulo, deverão entrar em produção
após 2008.
JÚLIO BERNARDES,
da Agência USP de Notícias |