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O E era uma vez o pau-brasil: uma árvore de madeira vermelha, que nos deu seu nome e que interessava a outros povos como matéria-prima para o tingimento de tecidos. Até o século 18 chamaram-se brasileiros apenas aqueles que, como Fernando de Noronha, ‘fizeram brasil’, ou seja, extraíram e comercializaram o pau de tinta por aqui. Filhos da árvore, da ibirapitanga (pau de tingir panos), filhos do vermelho, portanto. Nosso nome foi brasil por associação com o vermelho, por semelhança com a brasa.

Quando conta a trajetória dos tecidos no Brasil, Teresa Cristina Toledo de Paula, professora e pesquisadora do Museu Paulista da USP – também conhecido como Museu do Ipiranga –, reconstitui episódios pouco lembrados. Teresa observa que a história dos tecidos tem um fio curioso com a história do Descobrimento. “Seria lógico deduzir que tal país, o Brasil do pau-brasil, tivesse no vermelho, nos tecidos tintos da madeira, um elemento fundador de sua cultura.” Porém, tal fato é completamente ignorado. O pau de tinta comercializado em Antuérpia pelo mesmo valor dos diamantes foi ignorado. “A idéia que a história do Brasil passa é que somos um país sem tecidos. Ou seja, um país de nativos despidos, negros vestidos com algodão e mulheres brancas envoltas por tecidos de seda. Nossa indumentária institucionalizada nos museus se resumiu até pouco tempo atrás a uniformes militares e trajes importados.”

Diante da falta de informação, Teresa começou, há 15 anos, a reconstruir a história têxtil, sendo uma das pioneiras na restauração de tecidos de acervos de museus de todo o País. O trabalho de Teresa e de especialistas do Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais e também da Itália, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, Canadá e Chile vai ser apresentado no 1o Seminário Internacional Tecidos e sua Conservação no Brasil: Museus e Coleções. O evento começa nesta segunda-feira, dia 8, e se estenderá até sábado, dia 13, no Museu Paulista da USP. “Pela primeira vez no Brasil, vamos discutir os principais temas relacionados ao tecido em suas inúmeras possibilidades”, explica Teresa, que organizou e idealizou o seminário. “Esse encontro nasceu da necessidade dos museus de discutir e planejar a preservação de suas coleções. Museus históricos, antropológicos, de arte e de moda, assim como os teatros e arquivos em todo o País, abrigam milhares de objetos têxteis que precisam de uma curadoria especializada, daí a importância dessa programação.”

Roupas e pessoas – Para Rita Andrade, especialista em história da moda e professora da Universidade Anhembi-Morumbi, de São Paulo, as roupas têm a sua própria biografia, uma vida social, cultural e política e mantêm relações com outros objetos e pessoas. “Há uma crença popular de que não se deve torcer as roupinhas dos bebês recém-nascidos antes de pendurá-las no varal para secar, sob o risco de o bebê ter cólicas gástricas”, diz Rita, lembrando a relação entre roupas, mitos, costumes e pessoas. “Elas ganham novas existências que são partilhadas através de experiências humanas.”

Rita participa do seminário lembrando que é importante priorizar a roupa como fonte histórica. “Apesar da dificuldade de acesso às fontes de pesquisa, podemos aprender a tratar as roupas como documentos históricos e, com isso, poderemos não apenas estudar os materiais que fazem parte dos acervos de nossos museus e coleções, mas também iniciar a cultura de conservação da nossa memória e história através das roupas e tecidos atuais.”

Para Káthia Castilho, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, o tecido conta a história da industrialização, da tecnologia de manufatura e da experimentação no uso de matéria-prima. Determina e influencia a estética e se especializa em produtos para diferentes fins. “É no diálogo do tecido e da pele que se apresenta uma nova possibilidade de análise do corpo revestido pela contemporaneidade, onde os fios respondem mais adequadamente às constantes exigências de beleza, conforto e bem-estar.”

Na história dos tecidos, a mulher marca presença desde a Antiguidade. “Ela era a responsável por todo o processo têxtil. Fiava, tecia, tingia e confeccionava as roupas para toda a família. As roupas representavam a manutenção de um dado posicionamento na hierarquia social que constituía seu meio cultural.” Segundo Khátia, o aparecimento de técnicas de confecção cada vez mais elaboradas, o requinte cada vez maior em torno da preparação dos tecidos e o desejo de ascensão social propiciaram o conseqüente nascimento da moda, no final do século 14, com o significado muito próximo ao de hoje, em que as pessoas buscam, através das roupas, uma identificação e também um estilo que as destacam na sociedade.

A indústria no Brasil – A trajetória dos tecidos no Brasil, desde o pau-brasil explorado para o tingimento dos tecidos, foi ignorada pela historiografia oficial. Os museólogos que, desde meados de 1980, decidiram se dedicar à restauração dos tecidos tiveram de buscar cursos especializados na Europa. Teresa Cristina, do Museu Paulista, estudou no The Textile Centre, do Instituto Pourtauld de Arte, na Inglaterra. “A pouca bibliografia disponível sobre os tecidos no Brasil se dedicou, quase que exclusivamente, ao estudo da produção de algodão e, assim mesmo, a partir da metade do século 19. As quantidades, o maquinário, as relações de trabalho e o capital movimentado por aquela atividade econômica foram o centro das atenções e das pesquisas. O tecido com seus padrões, cores, estampas, tipos e qualidades foram esquecidos”, diz Teresa.

Segundo os pesquisadores, no século 18 a indústria têxtil estava em ascensão nos países europeus. Mas, no Brasil, um alvará de 1785, assinado por D. Maria I, proibiu os brasileiros de se dedicar às atividades de fiação e tecelagem. “Ela receava que os trabalhadores agrícolas abandonassem os campos, procurando melhores oportunidades na indústria manufatureira.” Khátia conta que D. Maria I mandava fechar todas as fábricas de tecidos de lã, algodão e outras fibras, com exceção daquelas que fabricavam tecidos grosseiros para as roupas dos escravos. “Somente a partir do século 19 é que a indústria têxtil no Brasil começou a crescer, especialmente durante a Primeira Guerra Mundial. Com a limitação da importação de tecidos, as nossas indústrias têxteis tiveram a oportunidade de se desenvolver.”

Hoje, no Brasil, a indústria têxtil está consolidada e, o mais importante, nos últimos anos começou a surgir um número significativo de instituições de ensino que oferecem cursos superiores para a formação de profissionais da moda. “Apesar desse interesse, o número de estudos e pesquisas acadêmicas no setor ainda é incipiente, mesmo porque essa é uma área de estudo com menos de 20 anos”, observa Khátia. “Cabe à universidade brasileira promover uma metodologia de análise dos têxteis, buscando a sistematização do conhecimento com rigor acadêmico, evidenciando a pesquisa para o reconhecimento do que já produzimos, sua conservação e possibilidades futuras.”

 

Uma iniciativa pioneira

Com o 1° Seminário Internacional Tecidos e sua Conservação no Brasil: museus e coleções, os pesquisadores do País têm a oportunidade de conhecer os trabalhos que vêm sendo desenvolvidos na preservação das coleções. Também vão aprender com a participação de especialistas como a professora Dinah Eastop, da Universidade de Southampton e Escola de Arte de Winchester, na Inglaterra. Dinah vai mostrar os dilemas da preservação através do enredo do filme Toy Story 2, que leva à reflexão sobre a verdadeira natureza de um objeto.

A inglesa Lesley Miller – especialista do Departamento de Mobiliário, Têxteis e Moda do Victoria and Albert Museum, de Londres – trará a história dos têxteis que vem sendo ensinada no Reino Unido nos últimos 50 anos, sob um conjunto de disciplinas. Outra experiência curiosa é a preservação e montagem de uma coleção de figurinos circenses apresentada por Sylvie François, especialista do canadense Cirque du Soleil. Kathrin Gill, também professora da Universidade de Southampton, da Inglaterra, falará sobre a conservação dos estofados no mobiliário como uma prática de investigação. O departamento têxtil do Museo Histórico Nacional, de Santiago, no Chile, será representado pela especialista Isabel Alvarado Peroles, que mostrará os critérios desenvolvidos na conservação das peças. Importante lembrar que o Chile possui um rico patrimônio têxtil,
que inclui peças arqueológicas e etnográficas.

Um exemplo de preservação está no trabalho da restauradora Deborah Lee Trupin, da Agência de Parques, Recreação e Preservação Histórica de Nova York, nos Estados Unidos. Ela mostrará seu trabalho em coleções de bandeiras usadas em batalha, de propriedade do governo. Muitas são bandeiras únicas, confeccionadas por cidadãos para homenagear o regimento ou comemorar suas vitórias.

O seminário vai reunir 200 participantes. Uma mostra do trabalho desses especialistas está no livro Tecidos e sua conservação no Brasil: museus e coleções, com versão em inglês, que será lançado durante o seminário. A edição é da equipe do Museu Paulista da USP e a impressão, da Imprensa Oficial do Estado.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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