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A pouca relevância da educação infantil brasileira se revela na irrisória taxa de atendimento de crianças de 0 a 3 anos, de 12%, que reflete o descaso com o direito constitucional à educação infantil. Prevalece, ainda, uma infância rica nos discursos, mas pobre nas práticas pedagógicas. Para desafiar essa situação, a Rede de Pesquisadores: Contextos Integrados de Educação Infantil encontra a via da participação, da estreita relação entre a pesquisa, a formação e as intervenções, por meio do trabalho conjunto entre a universidade, as escolas infantis e os órgãos oficiais para formar profissionais e melhorar a qualidade da educação.

A formação em contexto entende que é na atividade situada da escola, junto aos professores, crianças e famílias, especificamente nas práticas pedagógicas, que deve incidir o foco formador. A rede de pesquisadores se diferencia das tradicionais propostas que separam a formação da pesquisa e das práticas pedagógicas. Difere, ainda, de tradições comuns, de uso de “pacotes de treinamento”, vindas de hierarquias superiores, de ideologias que fragmentam a ação dos gestores, das questões pedagógicas, de cursos de formação contínua que se tornam descontínuos. Distancia-se de práticas que não ouvem as vozes de três protagonistas: crianças, professores/pedagogias e pais/comunidade.

Com a colaboração dos professores João Formosinho e Júlia Oliveira-Formosinho, responsáveis pelo Projeto Infância do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho e da Associação Criança, ambos em Braga, Portugal, a equipe brasileira se organiza para criar uma rede de pesquisadores que trata da educação infantil.

A Faculdade de Educação da USP se insere no processo de internacionalização, com acordos de cooperação internacional, entre os quais cabe destacar o Capes/Grices: Infância/Formação/Pesquisa/Intervenção, que visa a formar professores para o segmento da infância (crianças de 0 a 10 anos).

A formação em contexto é a concepção que reúne pesquisadores de sete universidades públicas e privadas de São Paulo, Ceará e Minas Gerais, tendo o compromisso de envolver pesquisadores em processos de pesquisa aliados à formação dos professores de escolas apoiadas pela equipe. Ao refletir sobre a práxis, os professores introduzem inovações, beneficiando as crianças.
O Seminário Internacional sobre a Rede de Pesquisadores: Contextos Integrados de Educação Infantil – realizado em agosto na USP – traz o resultado de seis anos de trabalho (2000-2006) e divulga como os grupos de pesquisa utilizam a estrutura da universidade para dar apoio às escolas infantis. Nesse processo, envolvem diretores, coordenadores, supervisores e professores, que encontram nessa rede ressonância em suas inquietações, aprofundam suas reflexões e investem nas práticas de melhor qualidade.

As instituições infantis apoiadas se diferenciam, oferecendo aos estagiários oportunidades de formação prática de melhor qualidade. Os profissionais das escolas, ao discutirem suas práticas, se desenvolvem, em um longo processo de formação profissional, que requer empenho, esforço e envolvimento. Os gestores, ao compreenderem o papel da liderança no processo de gestão democrática, discutem as culturas docentes e institucionais. Não se trata da clausura na sala ou em sua função, mas a compreensão de que, na instituição infantil, todos são educadores, independente de suas atribuições e que as funções de gestão se imbricam nas pedagógicas.

A participação é um valor que se deseja para a criança, o professor e o gestor. Esse processo se adquire no fazer. Não se aprende a andar senão andando, como diria Paulo Freire, assim como não se aprende a participar senão pela sua prática.
Entre os impactos do seminário internacional se encontram pesquisas do tipo estudo de caso, com implicações para as práticas e para as políticas públicas.

Os estudos de casos apresentados nas sessões de pesquisa indicam que se pode mudar práticas pedagógicas, mesmo nas condições estruturais perversas como as da rede pública municipal das escolas infantis de São Paulo, que tem de 36 a 40 crianças de 4 a 6 anos em cada sala, funcionando em três turnos, à semelhança de fábricas ou sessões seriadas de cinema (das 7h às 11h; das 11h às 15h; das 15h às 19h). Mesmo à revelia das condições adversas, professoras que têm ideais pedagógicos implantam a pedagogia dos projetos e mostram o impacto na educação das crianças, que pesquisam, narram suas investigações, ampliam suas experiências, alargam o conhecimento adquirido e constroem conhecimento. Em outro centro infantil, é a gestão colaborativa que possibilita a uma funcionária da lavanderia propor a racionalização do uso de toalhas. É a compreensão de que a educação é um trabalho complexo, que não se faz sozinho e que requer a colaboração de todos, que leva a mesma funcionária a contar história para as crianças, uma história simples, a sua própria, a da Mariinha, que trouxe economia de água, de luz, racionalizou o uso de toalhas e que, agora, encanta as crianças com sua caixa de contar história.

As políticas públicas pouca atenção têm dado à educação infantil. Basta o exemplo de um sistema que não exige de supervisores, diretores e coordenadores a formação especializada para a função para a qual são nomeados, o que gera conflitos e inadequações. Em uma das unidades, uma professora relata, em lágrimas, como a mudança de gestão acabou com o trabalho arduamente construído: um ambiente educativo de melhor qualidade com materiais e brinquedos, em áreas opcionais, que foi demolido com a entrada de novo diretor. Não há normas sobre tipos de materiais e brinquedos, espaços, quantidade de crianças e de adultos e há fraca delimitação sobre a qualificação de profissionais. Se um diretor ou coordenador, com licenciatura em inglês, geografia ou matemática, quiser “descansar”, como dizem alguns, nas escolas infantis, fazem sua remoção sem dificuldade. Assim, perpetuam o descaso, a falta de perspectiva para a melhoria das condições de educação para o período que, segundo pesquisas das neurociências, requer melhor atenção porque se definem as possibilidades de desenvolvimento do ser humano.

A falta de especificidade da formação dos professores de educação infantil cria o absurdo de não se exigir uma formação prática similar à de médicos e dentistas, que têm contato com pacientes em sua fase inicial de formação, um forte teor de teoria e prática para o desempenho da especialidade que abraçam. Na educação, há a tradição de se utilizar a experiência de ex-aluno, desde a educação infantil até a universidade, o contato com os professores, como conteúdo prático para uso na profissão para qualquer tipo de educação. Não se exige uma formação prática como iniciação à profissão nem conteúdos especializados. O estágio é uma passagem pouco importante, portanto sem supervisão da universidade, muito menos da escola em que se estagia. Ora, o professor é o único profissional que usa sua experiência de ex-aluno para ser profissional. Só um louco admitiria um médico sem formação prática, com a justificativa de que tenha ido ao médico várias vezes, ou outro que vá operar o coração apenas com formação teórica em anatomia geral.

Como garantir a especificidade da formação para a educação infantil? É na compreensão de que a criança pequena é vulnerável, que requer cuidados especiais, precisa de ambiente com bem-estar, de profissionais que saibam utilizar as múltiplas linguagens, na perspectiva da globalidade (movimento, grafismo, simbolismo), que integrem a educação/cuidado e os serviços à infância (saúde, assistência social e psicológica, jurídica, prisional, educativa). Essa tarefa é de responsabilidade das políticas públicas de formação e de atendimento à infância, que devem repensar as condições estruturais e processuais para a melhoria das condições da educação infantil.

Tizuko Morchida Kishimoto é professora da Faculdade de Educação da USP

 

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