O tema “reforma universitária” tem
ocupado algum espaço nos meios de comunicação,
que, entretanto, o tratam de maneira superficial e, muitas vezes,
com parcialidade. Mesmo no meio acadêmico as discussões
não têm
sido suficientemente profundas. Decorre daí que o tema tem
sido alvo de julgamentos equivocados.
O que se convencionou chamar de “reforma universitária” é um
conjunto de projetos de lei (PLs) que poderá ter importantes
conseqüências na educação brasileira. Portanto, é necessário
estudar o conteúdo desses PLs, bem como das emendas apresentadas,
e a forma pela qual o processo está sendo encaminhado. Aparentemente, governo e oposição apostam na confusão
e na falta de articulação no desenrolar do processo.
A própria expressão “reforma universitária”,
que empresta a seu conteúdo uma embalagem aparentemente bonita, é inadequada.
Os PLs não tratam apenas da estrutura universitária,
mas de toda a educação superior (a maioria das instituições
de ensino superior brasileiras não são universidades)
e, portanto, a expressão “universitária” é descabida.
A palavra “reforma” também é equivocada,
pois induz à idéia de alterações de caráter
acadêmico, enquanto os PLs tratam mais de questões administrativas. Para analisar a situação, é necessário
considerar como tramitarão esses PLs no Congresso. O mais
antigo data de 6 de outubro de 2004 (PL 4212/04) e é de autoria
do deputado Átila Lira. A ele estão apensados o PL
4221/04, do deputado João Matos, muito mais abrangente e também
de cunho acentuadamente privatista, e o PL 7200/06, apresentado em
junho último pelo Executivo (recentemente, um novo projeto
cuja origem é a Federação de Sindicatos de Trabalhadores
das Universidades Brasileiras, PL 7398, foi apensado ao PL 4212).
Há estranhas coincidências com relação
aos dois PLs de 2004: foram depositados no mesmo dia; citam como
justificativa o mesmo texto; foram apresentados por ex-secretários
de educação; e ficaram parados durante 20 meses.
Ao PL governamental foram apresentadas 368 emendas. Uma análise
destas e dos PLs de 2004 mostra um interesse articulado do setor
privatista, que objetiva derrubar os poucos aspectos positivos do
projeto governamental. Essa articulação é também
evidenciada pelas emendas: para eliminar alguma possível restrição
ao setor privado, uma emenda propõe a eliminação
de um determinado artigo; caso não seja aprovada, há outra
que altera sua redação; caso ainda haja insucesso,
outra emenda procura eliminar ou alterar alguns parágrafos
do artigo. Além disso, várias das justificativas apresentadas
são também idênticas.
Uma análise exaustiva do conteúdo dos PLs e das emendas
seria impossível em um texto curto. Entretanto, alguns exemplos
podem servir para ilustrar a gravidade da situação.
Segundo a LDB de 1996, para que uma instituição possa
ser considerada universidade é necessário que ela tenha “um
terço do corpo docente, pelo menos, com titulação
acadêmica de mestrado ou doutorado”, uma redação
que afronta a inteligência de qualquer leitor: ela exigiria
o mesmo se a redação fosse interrompida na palavra
mestrado. A expressão ou doutorado contribui apenas para emprestar
seriedade àquela lei. Em 1996, o Brasil já tinha um
número de doutores suficiente para que as exigências
fossem mais rigorosas. Atualmente, quando o País tem mais
do que 80 mil doutores, crescendo a uma taxa superior a 8 mil por
ano, é inconcebível uma instituição de
ensino superior sem doutor em seu corpo docente, ainda mais se for
uma universidade. Além disso, a não exigência
de doutores nos corpos docentes de instituições de
educação superior pode comprometer a manutenção
da taxa de crescimento de pessoas tituladas e o sistema nacional
de pós-graduação.
O PL governamental exige um mínimo de 25% de doutores no quadro
docente de universidades e 11% em centros universitários,
porcentuais abaixo do que seria possível considerando a realidade.
Mas essa modesta exigência poderá ser derrubada pela
força da bancada privatista no Congresso, como demonstram
os dois PLs citados, que continuam a não exigir doutores em
universidades, e as emendas que a eliminam do PL governamental. Portanto,
uma das conseqüências da “reforma” é manter
e agravar a situação atual. O PL 4221 ainda redefine o que se deve
entender por pesquisa em universidades. Segundo esse texto, a exigência mínima seria de que
apenas 3% do total dos docentes, não necessariamente doutores,
se dedicassem a essa tarefa, reunidos em pelo menos dois grupos de
pesquisa, reconhecidos como tal pela própria instituição.
A pós-graduação se constituiria em alternativa à exigência
anterior, podendo restringir-se a um único “curso ou
programa”, mesmo que apenas em nível de mestrado.
Esses exemplos ilustram a concepção que o setor privatista
mercantil tem do que seja uma universidade.
Outro aspecto importante da “reforma” diz respeito à gratuidade
do ensino. A Constituição de 1988 prevê “gratuidade
do ensino público em estabelecimentos oficiais”, sendo
que sempre se entendeu a palavra “ensino” como toda e
qualquer atividade de aprendizado que envolva estudantes e professores.
O PL governamental, entretanto, redefine como “ensino” apenas
as atividades associadas a cursos de graduação e de
pós-graduação stricto sensu. Assim, cursos de
extensão, pós-graduação no sentido mais
amplo e outros poderão ser cobrados. Ainda que haja muitas
pessoas a favor da cobrança do ensino superior nas instituições
públicas, é razoável supor que elas não
concordem que essa possibilidade venha a ser imposta por meio de
uma sutileza de redação.
Há vários outros aspectos que devem ser considerados.
Um deles é quanto à abrangência emprestada à educação
a distância, bastante beneficiada pelos PLs, também
o governamental, incluindo inclusive o mestrado e o doutorado (note-se
que o assunto, por incrível que possa parecer, já está regulamentado
por decreto desde dezembro do ano passado). É necessário
observar que a educação a distância, liberada
incondicionalmente às instituições mercantis,
contribuirá para rebaixar ainda mais a qualidade da educação
brasileira, já tão comprometida por cursos abreviados,
e abrirá uma brecha enorme aos interesses mercantis transnacionais.
Há inúmeros outros retrocessos nos PLs e nas emendas
em discussão. O PL 4221 cria a figura abominável do
professor “horista”, que deveria ser eliminada e não
regulamentada. Outra pérola do mesmo PL é permitir
que qualquer instituição de ensino superior atribua
validade a diplomas de pós‑graduação obtidos
no exterior, mesmo que essa instituição não
tenha curso equivalente.
Entre as justificativas das propostas
apresentadas por defensores do setor mercantil, apela-se para a
liberdade de ação
do setor privado e os “princípios da livre iniciativa”.
Nas justificativas das emendas aparecem argumentos contra, até mesmo,
a exigência de regularidade fiscal das mantenedoras. A pequena
limitação da participação do capital
estrangeiro contida no PL governamental é qualificada de xenófoba.
Propostas de regulamentação da educação
privada são rechaçadas por serem “ingerências
na iniciativa privada” ou “excrescência”;
contra a existência de ouvidoria em universidades privadas
apela-se para a autonomia; a atuação da Capes como órgão
responsável pelo reconhecimento da pós-graduação é eliminada
por ser uma “excrescência centralizadora”.
O próprio PL governamental mostra traços mercantis.
Por exemplo, a limitação do capital estrangeiro em
instituições de ensino superior é apenas para
o capital votante, não para o capital total; ao proibir franquias
no setor educacional, próprias de modalidades empresariais
e associadas ao uso de uma marca, o projeto governamental reconhece
implicitamente o aspecto mercantil da educação.
Até meados de agosto os PLs em questão tramitavam em
regime de urgência. Como conseqüência das pressões,
o Executivo solicitou a retirada desse regime e, agora, eles tramitam
em regime de prioridade. Considerando a importância do tema,
a superficialidade e a parcialidade com que é tratado pelos
meios de comunicação e a sua importância para
toda a sociedade, a participação da comunidade acadêmica
na discussão da legislação é fundamental.
Para isso, é necessária a retirada do regime de prioridade
ou, mesmo, a retirada dos próprios projetos da tramitação,
conforme reivindicação do recente congresso da Anped
(Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Educação), para que haja tempo para estudos
e debates dos conteúdos e das conseqüências dos
PLs e de suas emendas. Se isso for feito, teremos alguma chance de
reduzir as derrotas previsíveis. Caso não, a educação
superior será ainda mais dominada pelo caos da mercantilização. Informações sobre o conteúdo e o andamento
dos Projetos de Lei (PLs) no Congresso podem ser encontradas na
página eletrônica da Câmara.
Os diferentes PLs podem ser localizados por seus números
e datas.
Otaviano Helene é professor do Instituto de Física
da USP, ex-presidente da Associação dos Docentes
da USP (Adusp) e ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais (Inep).
Lighia B. Horodynski Matsushigue é professora no mesmo instituto
e diretora da Adusp e do Andes (Sindicato Nacional dos Docentes
das Instituições de Ensino Superior).
|