Todas as espécies de moluscos
nativas brasileiras estão em séria ameaça
de extinção. Inclusive espécies que nem chegamos
a conhecer. Com esse alerta, Luiz Ricardo Simone lançou
em outubro o livro Land and freshwater molluscs of Brazil (“Moluscos
de terra e água doce do Brasil”). Professor do Museu
de Zoologia da USP, Ricardo Simone passou 12 anos pesquisando os
moluscos nativos brasileiros para elaborar esse catálogo,
que traz informações de cerca de 1.100 espécies.
Apesar de ser o segundo maior grupo animal brasileiro, abaixo
apenas dos insetos, grande parte das espécies de moluscos nativas é ainda
desconhecida. Lembrando a necessidade de mais estudos sobre esse
grupo, Ricardo Simone estima que apenas um terço das espécies
de moluscos terrestres e metade dos moluscos de água doce
brasileiros foram identificados. “É um ciclo vicioso.
Como é uma área muito abrangente e com pouco material
de referência bibliográfica, os pesquisadores acabam
preferindo outros animais e os moluscos continuam mal estudados”,
afirma.
Foi para preencher parte dessa lacuna que o professor lançou
o catálogo com os moluscos encontrados nos diversos ecossistemas
brasileiros: mata atlântica, cerrado, caatinga, floresta
amazônica, bacias hidrográficas do Paraná e
do Amazonas e o rio São Francisco. “É um inventário
para ser consultado como um primeiro passo para qualquer interessado
em conhecer os moluscos brasileiros”, explica o professor.
Baseado numa extensa pesquisa bibliográfica, o catálogo
apresenta 1.074 espécies nativas e um apêndice com
33 espécies invasoras. A idéia é que o catálogo
seja posteriormente revisado e ampliado, sempre atualizado com
as novas espécies descobertas. Fêmeas – Nos 12 anos de pesquisa, Simone desenvolveu
diversos projetos paralelos, que resultaram em cerca de 50 novas
espécies inclusas no livro. Uma delas é chamada Aylacostoma
ci Simone, descoberta em 2001 em Rondônia. Essa espécie
só tem fêmeas, que se reproduzem por partenogênese,
um tipo de reprodução assexuada. “Por isso
coloquei o nome ci, que em tupi significa mãe”, explica
Luiz.
Estritamente para consulta, o livro separa os moluscos por família
e gênero e traz breves informações sobre cada
uma das espécies, como nome, hábitat, lista de trabalhos
publicados sobre ela e tamanho. No final, apresenta uma referência
bibliográfica com quase 3 mil livros sobre moluscos.
Baseada em informações publicadas em diversos estudos
de todo o mundo, a obra é ilustrada com centenas de fotografias. “Assim
a pessoa pode pegar sua concha e comparar com as fotos, para ver
se aquele indivíduo é um exemplar conhecido ou não”,
explica.
Financiado pela Fapesp, USP e algumas instituições
privadas, o livro foi resultado de uma pesquisa realizada por Simone
com a colaboração de diversos professores, pesquisadores
e instituições internacionais.
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Um risco para o ambiente
Com a rápida degradação do ambiente, diversas
espécies descritas no catálogo do professor Luiz Ricardo
Simone estarão extintas no futuro. Outras desaparecerão
até mesmo antes de serem conhecidas. “Estamos correndo
para salvar a fauna que nem conhecemos”, afirma Simone. “No
caso dos moluscos terrestres, o perigo de extinção
se torna ainda mais drástico. Muitas dessas espécies
são endêmicas, só ocorrem num local específico,
que, se for destruído, causará a extinção
do animal.”
Esse foi o caso do Anodontites moricandi. Essa espécie foi
primeiramente identificada em 1860. Com cerca de 10 centímetros
de comprimento, habitava o baixo Rio São Francisco e com as
modificações em seu curso, entrou para a lista de animais
brasileiros em extinção.
A extinção dessas espécies traz conseqüências
graves para a natureza, destaca Simone. Os moluscos são os
maiores responsáveis pela reciclagem de nutrientes no ambiente,
o que os torna essenciais para a manutenção dos ciclos
de preservação. Por essa sua função,
o caracol foi escolhido como símbolo da reciclagem de materiais – como
acontece com o USP Recicla, programa de educação ambiental
da Universidade. “Se um molusco desaparece, o ecossistema do
qual ele faz parte acaba. Tudo na natureza é muito conectado,
como uma rede. O molusco é predador de uma espécie
e presa de outra. Se ele some, esse delicado equilíbrio é rompido
e todos os seres vivos dessa teia somem”, alerta Simone.
Invasores – Além da degradação ambiental,
as espécies brasileiras enfrentam uma desleal competição
com espécies invasoras, que também são responsáveis
por graves problemas sanitários e agronômicos. Trazidas
para criação ou mesmo acidentalmente, essas espécies
são estranhas ao ecossistema local e por isso não
possuem predadores naturais, o que proporciona um crescimento descontrolado
da população, que, conseqüentemente, extingue
as espécies nativas.
O caso mais comum no Brasil é o Achatina fulica, mais conhecido
como gigante africano. Trazido da África como alternativa
ao escargot europeu, que não se adaptou ao clima quente
brasileiro, a espécie não obteve sucesso comercial
e hoje pode ser encontrado em todo o País. Muito resistente,
o gigante africano come praticamente de tudo, o que o transforma
em uma grande praga agrícola, especialmente no sul da Bahia. “Recebemos
ligações de agricultores de todo o Brasil reclamando
de ataques de gigantes”, conta Simone.
Hoje, o governo brasileiro proíbe a criação
do gigante africano – uma ação tardia, já que
a espécie se espalhou pelo País. “Depois que
uma espécie invasora se instala, não tem o que fazer. É impossível
matar todos os espécimes. A questão é prevenir”,
diz o professor.
Esse quadro é agravado pela ausência de uma consciência
de preservação desses animais, que dificilmente figuram
nas listas de animais ameaçados divulgadas por entidades
ecológicas, continua Simone. “Ninguém vai preservar
uma área porque ali tem um caramujo. Os moluscos têm
um apelo bem menor com a população do que o mico-leão-dourado,
por exemplo, apesar de ser fundamental para o equilíbrio
ecológico.”
Mesmo dentre as centenas de espécies já conhecidas,
há ainda muito para se conhecer. Diversas famílias
de moluscos foram identificadas em meados do século 19 e
nunca mais foram revistas, tornando muito difícil identificar
suas espécies. Exemplo disso é o Aylacostoma decapitata.
Visto no sul da Bahia em 1827, esse molusco nunca mais foi encontrado
e a única imagem que se tem dele é um desenho. “Não
se sabe ao certo se essa espécie existe. Esse registro pode
ser o desenho errado de outra espécie parecida”, ressalta
Simone.
Outra dificuldade nessa identificação é que
a fauna brasileira, diferente das demais, se caracteriza por uma
diversidade muito grande de espécies, mas com poucos indivíduos. “Nós
falamos sempre para os biólogos: se encontrou, traz, porque
pode não achar mais.”
Além disso, muitas dessas espécies têm seus
registros somente em museus e instituições do exterior.
Como praticamente toda pesquisa em biologia realizada no Brasil
até meados do século 20 era feita por europeus e
norte-americanos, os tipos dessas espécies foram levados
para museus de fora.
É também no exterior, acredita Simone, que está cerca
de 85% do público interessado em seu livro, que, por essa
razão, foi escrito em inglês. “A maioria dos compradores é estrangeira,
colecionadores de conchas, pesquisadores de outros países,
museus. O mercado lá fora é muito grande, maior do
que o brasileiro”, explica. Mais um sinal da epidêmica
falta de interesse brasileiro por sua rica fauna.
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