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Era um tempo em que o paulistano desfrutava do prazer e do aconchego de passear e viver na cidade. Apesar do movimento cosmopolita, caminhava pelas calçadas largas, sob a sombra dos jacarandás mimosos que escondiam a visão dos prédios altos. Nos anos de 1950 e 1960, a avenida São Luiz integrava uma região pontuada por livrarias, museus de arte, sedes de jornais, restaurantes, agências de viagem, lojas elegantes. Importante também a luminosa Biblioteca Mário de Andrade e o imponente Teatro Municipal. Na avenida e na vizinha praça Dom José Gaspar, as mesas dos bares e restaurantes reuniam jornalistas, poetas, artistas, intelectuais... Uma conversa que invadia a madrugada.

No livro De beco a avenida – A história da rua São Luiz, lançado pela Editora da USP (Edusp), o arquiteto, historiador e professor José Eduardo de Assis Lefèvre, do Departamento de História da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, resgata esse bom tempo e traça um histórico das transformações da avenida São Luiz, desde sua origem como o Becco Comprido. Também acompanha as mudanças que fizeram com que a cidade perdesse a qualidade de vida e os equipamentos culturais, relacionando as transformações ocorridas na sociedade paulista e paulistana.

“A cidade de São Paulo exerce sobre os moradores sentimentos antagônicos, de fascínio e medo, de atração e repulsa”, observa Lefèvre. “Dos extremos contrastes de riqueza e miséria, do refinamento de alguns ambientes à violência de outros, resulta a convicção de que esta cidade apresenta uma enorme necessidade de potencialidade de transformação e evolução.”

A pesquisa de Lefèvre chega num momento oportuno, quando a cidade questiona os prejuízos do seu crescimento desenfreado, além do alto índice de desemprego, violência, trânsito e poluição. O arquiteto lembra que o desafio que se coloca para todos os que pensam e projetam a cidade é o de encontrar caminhos e soluções. “Para tanto, é necessário conhecer a cidade de uma perspectiva histórica, nortear por ela as ações a serem empreendidas no presente, das pequenas às maiores, das individuais às coletivas, que pretendam ter um sentido positivo para a cidade.”

Lefèvre explica que hoje se discute a recuperação e revitalização da área central da cidade. Porém reflete: “Em que termos essa discussão se coloca e com que propriedade? A quem interessa essa questão? Por que e para quem recuperar, requalificar ou revitalizar?”. E observa: “Basta andar pelo centro para se perceber que vitalidade não é o que falta ali, embora haja muitas áreas mortas em prédios vazios. Entre tudo o que foi perdido no centro, o que é possível ou tem cabimento recuperar? Não é possível retroceder o relógio do tempo, de maneira que todas as ações devem estar voltadas para o futuro, mas isso não significa eliminar o passado, o que também é impossível. Enfim, que qualidades se pretende restaurar no centro? A apreciação de qualidades está longe da universalidade, e o que é positivo para uns, é negativo para outros”.

Símbolos – Na introdução do livro, Lefèvre aponta os símbolos mais representativos de São Paulo, argumentando que na história das cidades essa identificação é muito importante. “A Torre Eiffel e o Coliseu são marcas indissociáveis de suas cidades. Em São Paulo, se fizermos uma lista com os dez mais representativos símbolos, o conjunto mais expressivo e com maior número de elementos é constituído por aqueles localizados no centro.” O arquiteto aponta o Viaduto do Chá, o Teatro Municipal, o prédio do Banco do Estado, o Edifício Copan, o Edifício Itália e o Vale do Anhangabaú. Fora do centro, cita as imagens do Pico do Jaraguá, da Ponte das Bandeiras, do Parque do Ibirapuera e da avenida Paulista, que foi eleita, há alguns anos, o símbolo da cidade.

Apesar dessa força simbólica do centro, o arquiteto questiona o seu estado de degradação e abandono. Uma pergunta que ele procura responder enfocando a avenida São Luiz e, ao mesmo tempo, as transformações urbanas e sociais de toda a cidade. “O objetivo deste livro é aprofundar o conhecimento a respeito da estruturação espacial do centro e sua relação com a estrutura socioeconômica paulistana em particular”, explica. Para tanto, Lefévre relacionou a região central com o desenvolvimento dos vários bairros da cidade. “O espaço do centro foi apropriado pela elite paulistana de diferentes maneiras em diferentes épocas. De local residencial originalmente, passou a ser o local predominante dos escritórios, bancos, hotéis, consultórios, de todas as atividades urbanas relacionadas à alta burguesia e aos remanescentes da aristocracia rural cafeeira do período do Império, quando as pessoas ligadas a essas classes se mudaram, inicialmente, para Campos Elísios e em seguida para Higienópolis, avenida Paulista e Jardins. Com a excessiva concentração de atividades e a conseqüente saturação do centro, em um processo potencializado pelo aumento do número de automóveis em circulação, novas localizações passaram a atrair a elite paulistana, ocasionando os pontos de sua maior demanda e, portanto, das áreas de maior valor, reconfigurando o que se define como centro da cidade.”


A São Luiz e a história da cidade

O livro De beco a avenida – A história da rua São Luiz convida os leitores a conhecer a evolução urbana da cidade no século 19. Apresenta as primeiras plantas da cidade, como a de 1810, levantada por Rufino José Felizardo e Costa. Traz ainda desenhos e fotos. O leitor pode apreciar as imagens de vários palacetes, como a do Circolo Italiano, de 1925, com as suas festas e bailes, entre outras imagens curiosas de casas que foram demolidas para a construção dos edifícios Esther, Moreira Salles, Vila Sonia e Linneu Gomes, entre outros. É exatamente essa preocupação com a visualização de imagens que já desapareceram que torna a pesquisa inusitada e a leitura agradável. Lefèvre se preocupa em contextualizar essas imagens, apresentando o que existe hoje naqueles antigos endereços. Divide o estudo em três grandes temas: a formação da área da rua São Luiz, os palacetes e o parcelamento familiar e a transformação da área.

“A rua São Luiz foi o eixo principal do loteamento da chácara da família Souza Queiroz”, conta o arquiteto. “A mais antiga construção conhecida da propriedade era a chamada Chácara Velha, situada próximo à rua da Consolação, aproximadamente onde hoje se situa a Biblioteca Municipal. Há informação na família de que teria sido construída ou mais provavelmente reformada em 1857.”

Do bonde de tração animal até o metrô, a cidade passou por mudanças radicais. “A rua São Luiz faz hoje parte do centro. Com uma breve caminhada a pé se atinge qualquer parte da área central, seja do chamado Centro Velho como do Centro Novo. Mas, no século 19, e mesmo até os anos de 1940, a São Luiz era considerada afastada do centro”.

Lefèvre lembra que antes da abertura do Viaduto do Chá, em 1892, as ladeiras eram um grande obstáculo para a caminhada a pé e para a circulação dos carros de tração animal. “Os bondes a burro foram substituídos por bondes elétricos a partir de 1900. Em 1930, duas linhas de trilhos convergiam para a rua da Consolação, uma vindo do Largo da memória e subindo a rua Quirino de Andrade, outra, percorrendo a rua Coronel Xavier de Toledo, após atravessar o Viaduto do Chá.” Com a nova configuração, a São Luiz ficou muito próxima do sistema de transportes que dava acesso à área urbanizada da cidade e às estações da estrada de ferro. Com as obras de alargamento, a partir de 1941, várias casas foram demolidas e a pacata São Luiz passou a sediar prédios de apartamentos de alto nível, com comércio sofisticado no pavimento térreo. “Na segunda metade da década de 1950, novos empreendimentos caracterizam uma tendência que se tornará dominante a partir de então, de construções destinadas a escritórios, inclusive levando à progressiva substituição de usos em prédios construídos para apartamentos, como os edifícios Vila Sonia e Princesa Isabel.”

Até o decorrer da década de 1950, os jacarandás da São Luiz ainda conviviam com os prédios e sobreviviam ao trânsito. Mas, com o alargamento da rua da Consolação, muitos tiveram de ser retirados.

E, no início de 1970, foram retirados sob a justificativa de estarem condenados. “A única massa de vegetação que restou do arvoredo original é a que ficou na praça Dom José Gaspar, que pertencia às duas casas ali existentes, de Nicolau e de Carlos de Souza Queiroz.”

Diante dessa paisagem, Lefèvre atenta para a necessidade de se repensar as ações de revitalização do centro da cidade. “Enquanto permanecer apenas como oportunidade para realização de investimentos lucrativos, o centro perde em potencial para outras áreas da cidade, que apresentam retorno econômico em prazos mais curtos”, avalia. “De maneira que os realmente interessados no destino do centro são apenas aqueles que têm com ele uma relação concreta de propriedade imobiliária ou de estabelecimento comercial como ponto definido, ou uma relação intelectual, afetiva ou política bem definida.”

Para Lefèvre, a relação de propriedade imobiliária ou de estabelecimento comercial também não é suficiente diante do desinteresse pela manutenção dos imóveis de proprietários que aguardam oportunidades para um investimento mais lucrativo. “Será necessário que o poder público dê sinais inequívocos de que irá intervir e permanecer presente no centro, para que esse interesse se estenda além dos setores que hoje dão sustentação à sua vitalidade”, reivindica. “Conhecendo as relações recíprocas entre espaço e sociedade, é de se esperar que, construindo um espaço mais justo, esteja se contribuindo para construir uma sociedade mais justa.”

De beco a avenida – A história da rua São Luiz, de José Eduardo de Assis Lefèvre, Edusp, 312 páginas, R$ 145,00

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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