O poeta Carlos Drummond de Andrade vivia
no Rio de Janeiro quando, um dia, faltou água no seu bairro.
Indignado, escreveu uma carta aos jornais denunciando o problema.
Algumas pessoas recriminaram publicamente sua atitude, pois não
compreendiam como um poeta grandioso como Drummond poderia usar
seu nome para reclamar de algo tão cotidiano. “Sem água
não tomo banho”, respondeu o poeta em uma simplicidade
que calou os críticos.
Com essa anedota, a nova edição da Revista USP – de
número 70 –apresenta um dossiê sobre o elemento
primordial da vida, a água. Com nove textos de diferentes
autores, a questão da água é debatida em seus
aspectos mais importantes e atuais. E esse debate começa
com a polêmica transposição do rio São
Francisco. Neste ano, com a promessa de água para todos,
o governo federal propôs a retirada de 1% do volume do rio,
que seria levado para o Nordeste semi-árido.
O geógrafo Aziz Ab’Sáber, professor honorário
do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e grande
crítico do projeto de transposição do rio,
abre o dossiê apontando a necessidade de um estudo básico
das características físicas e sociais da região,
antes de se fazer tal alteração. Já o professor
Francisco Sarmento, da Universidade Federal da Paraíba e
integrante do projeto, alerta para a urgência da ação
devido ao previsível desabastecimento dos centros urbanos
da região.
Para Sarmento, 1% do volume do rio é uma “irrisória
fração”, não comprometendo em nada as
atividades econômicas já baseadas em suas águas. “Volumes
de cheias não têm utilidade econômica local
nem sequer servem à geração de energia elétrica,
dado que as cheias passam pelos vertedores das hidrelétricas
e não pelas turbinas instaladas”, explica.
Para Ab’Sáber, essa porcentagem não pode ser
confirmada e, portanto, não se pode afirmar que não
haverá prejuízo para as hidrelétricas ou mesmo
para as comunidades locais. “É exatamente quando as águas
do rio ficam mais baixas que se torna necessário maior volume
delas para manter as hidrelétricas, no mesmo período
em que seria necessário transpor mais águas para
Além-Araripe, onde todos os rios sertanejos perdem correnteza
por longos meses”, aponta. Problema
de gestão – O professor José Galizia
Tundisi, presidente do Instituto Internacional de Ecologia em São
Carlos, apresenta um panorama sobre a gestão das águas
no Brasil e no exterior, onde é feita de forma integrada
e descentralizada, tendo a bacia hidrográfica como unidade
de administração.
Ele associa a crise da água à crise de gestão
de seus recursos, mais do que à contaminação
ou escassez. Segundo ele, é necessária uma integração
entre o conhecimento científico adquirido e o gerenciamento. “Nessa
questão, a contribuição da universidade e
dos institutos de pesquisa, públicos e privados, tem um
papel relevante, pois é fonte permanente de ampliação
de conhecimento e de novos avanços tecnológicos”,
escreve.
A mesma preocupação com a integração
do conhecimento científico e o poder público é expressa
pela professora do Instituto de Química da USP Eni Cardoso
Tolle. Ela cita o rio Pinheiros, em São Paulo, como símbolo
da falta de ação da comunidade científica
em busca de uma solução para a questão das águas.
Correndo a menos de 500 metros da USP, o Pinheiros é um
dos rios mais poluídos da cidade. “Não há como
responder aos problemas sem que toda a comunidade científica
esteja empenhada na solução, pois existe ainda um
profundo abismo entre o conhecimento científico e o consenso
social”, diz.
As águas poluídas de São Paulo são
tema também de Zuleika Beyruth, professora da Faculdade
de Saúde Pública (FSP) da USP. Ela destaca a “intrínseca
relação” entre o desmatamento da mata atlântica
e a poluição e mesmo a redução do volume
das bacias hidrográficas do Estado. Aponta ainda que a poluição
das águas é fator inerente à diminuição
da qualidade de vida do homem. “Entre 1998 e 2000, o Sistema Único
de Saúde (SUS) gastou cerca de R$ 22 bilhões em internações
hospitalares no Estado de São Paulo, devidas a doenças
estreitamente relacionadas às condições sanitárias
e ambientais.” Chuva ácida – “Há chuva ácida
no Brasil?” Com essa pergunta, a professora do Instituto
de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas
(IAG) da USP Adalgiza Fornaro apresenta um breve histórico
desse que é um dos fenômenos mais característicos
das grandes cidades. A chuva ácida é formada pela
absorção de partículas e poluentes gasosos
do ar pelas gotas d’água. Adalgiza conclui que há,
sim, chuva ácida no Brasil, apesar do pouco estudo sobre
sua real extensão. “Há exemplos importantes
de compostos que, na chuva ácida, chegam a comprometer sistemas
de fornecimento de água”, resume.
Na busca do homem pelo aproveitamento do espaço, rios
que cortavam São Paulo foram eliminados da cena urbana
sob uma camada de asfalto ou modificados com a construção
de corredores de circulação em suas margens. Essa
mudança na paisagem é analisada na nova edição
da Revista USP por Vladimir Bartalini, professor da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Ele aborda os casos mais
conhecidos – como o rio Tamanduateí – e propõe
algumas medidas de intervenção, visando à melhor
integração desses rios à paisagem urbana. “Trazer à consciência
coletiva a existência dos córregos ocultos é um
dos passos possíveis, se não uma condição
indispensável, no sentido de reverter a comum associação
dos rios a aspectos negativos como esgotos e lixos.”
Em seu artigo, a professora Elisabete Saraiva, do Instituto
de Oceanografia (IO) da USP, aborda as múltiplas relações
do homem com a água. “A humanidade estabeleceu relacionamentos
com o oceano que percorreram aspectos tanto de criação
de mitos e medos, de sobrevivência, aventura e desafios quanto
de pesquisas de zonas profundas e abissais”, ressalta.
“A água é o princípio de tudo.” Por
volta do século 6 antes de Cristo, o pensador grego Tales
de Mileto inaugurou a filosofia ocidental com essa idéia e
instaurou o pensamento racional que hoje é a base do conhecimento
científico no Ocidente. Tales teria observado que a água
está presente em tudo o que cresce e tudo o que é natural – afirmação
comprovada pela ciência moderna. Quem faz essas considerações
na revista é o professor do Departamento de Filosofia da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Roberto
Bolzani Filho. Ele cita a relação dos gregos antigos
com a água, considerada elemento e princípio da natureza,
cujos fenômenos eram atribuídos à vontade dos
deuses. “Essa não é uma história linear.
E também não é tão simples como poderia
parecer à primeira vista”, avisa Bolzani.
A edição 70 da Revista USP marca o início
de uma trilogia dedicada aos quatro elementos – água,
terra, ar e fogo –, que serão abordados nos próximos
números. Além do dossiê, a revista traz suas
tradicionais seções, como Homenagem – que nesta
edição é dedicada ao jurista Miguel Reale,
tema de texto escrito pelo professor da Faculdade de Direito da
USP Celso Lafer – e Textos, com cinco artigos sobre diversos
assuntos, entre eles as possibilidades do retrato, por Teresa Barreto,
professora da FFLCH. Outra seção da revista, Livros,
traz os artigos “Memoria en Construcción – el
Debate sobre la Esma”, de Marcelo Brodsky, e “Entre
o Mediterrâneo e o Atlântico – Uma aventura teatral”,
de Maria Lúcia Pupo. |