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Em 2006, o mundo perdeu uma figura cujo perfil intelectual, trabalho incansável e postura ética muito contribuíram para uma nova abordagem dos problemas contemporâneos, o escritor, professor e ativista político Murray Bookchin, profeta e visionário de nossos tempos. Face ao confronto estéril das doutrinas político-econômicas –tanto de direita como de esquerda –, Bookchin propôs uma nova síntese política e filosófica construída sobre os alicerces da teoria crítica.

Bookchin afirmava que o marxismo havia desconsiderado a inerente flexibilidade e maleabilidade do capitalismo, que cooptava os movimentos sociais com “intuitos cosméticos” – entre outros, o “movimento verde” –, colocando-se aparentemente ao lado deles. Afirmava que apenas a magnitude dos graves problemas ecológicos com que a humanidade se defronta na atualidade poderá ter alguma chance de levar ao colapso do sistema.

A ecologia social, como campo de conhecimento, vai além das explicações estritamente culturais (religião, visões de mundo), colocando o maior peso, em termos de diagnóstico e soluções, nos fatores sociais, políticos e econômicos. A questão não dependeria, pois, da “ressacralização” da natureza para viver harmoniosamente com ela, como algumas correntes da ecologia profunda poderiam levar a crer.

Apesar de identificar a crise ambiental com as formas hierárquicas dominantes na sociedade (cuja forma de domínio é estendida sobre toda a natureza), Bookchin rejeitava o pensamento libertário tradicional, afirmando que liberdade e igualdade só podem ser tratadas em conjunto com as questões sociais e ambientais (e vice-versa), postulando sua transversalidade e comunalismo, como forma de estar-no-mundo.

A dimensão utópica da ecologia social de Bookchin inspirou várias gerações de ativistas político-ecológicos a buscar explicações não- marxistas para as sucessivas crises associadas ao capitalismo, retomando propostas presentes no alvorecer do anarquismo, como a descentralização política e econômica, a produção de bens em escala humana, a cooperação entre os homens e o respeito ao ambiente natural e construído.

A emergência da autoridade privada nas grandes corporações de negócios corrói o poder do Estado, suas estratégias e métodos provocam desenraizamentos, discórdia, guerra, fome, iniqüidade, devastação e profunda divisão social, com conseqüências funestas, como o crescimento do crime organizado em todo o mundo. Riqueza, poder, crescimento, trabalho e liberdade necessitam de novos paradigmas.

Como lembram os estudos de ecologia social, a presente crise não pode ser compreendida e superada sem os seres humanos mudarem a forma com que tratam uns aos outros, sem que se deixe de identificar “progresso” e “desenvolvimento” com os interesses muito particulares das corporações de negócios, sem a mudança do conceito de homem, como espécie “dominante”, para espécie coadjutora.

Num mundo em que os benefícios são repartidos apenas entre os que detêm o poder político e econômico e os custos, “democraticamente” divididos entre os demais, a injustiça prevalece e a ciência e a tecnologia, nas mãos dos setores acadêmicos convencionais, passam a servir aos interesses oligopolísticos, sem que ocorram mudanças substanciais no conjunto do ambiente e das populações marginalizadas.

O neoliberalismo atomiza a sociedade e quebra todos os vínculos, exceto os contratuais, resultando nas piores formas de violência. Aspectos críticos dos efeitos do modelo de “desenvolvimento” adotado são ignorados, maquiados ou mantidos em silêncio por seus proponentes. Questões conceituais relevantes e a legitimidade moral das estratégias de “desenvolvimento” jamais são discutidas.

Nas “economias de mercado”, diante do crime e da violência, da política como balcão de negócios, da dissolução dos laços sociais, o Estado se enfraquece. Seres caracterizados pela irresponsabilidade, oportunismo, incoerência e ausência de valores morais prosperam livremente, passando a controlar, de forma insidiosa e hegemônica, o conjunto da sociedade e toda a sua cultura.

Quando o caos político, econômico e cultural normaliza toda sorte de procedimentos, legítimos ou ilegítimos, as transgressões, iniqüidades, violência e desmandos são considerados como parte do dia-a-dia. Projetos segmentados, manejados para reparar situações “desfavoráveis” para que se tornem “favoráveis”, geralmente as agravam, permanecendo na superfície onde estouram os problemas-bolha, sem atingir o bojo do caldeirão efervescente.

As políticas de inclusão social usualmente não contribuem para a mudança das estruturas sociais e das hierarquias dominantes, não são transformadoras, mas antes “acomodam” as pessoas no sistema vigente. Isso significa que, uma vez “incluídos”, acabam se juntando à legião de produtores e consumidores egocêntricos, que exploram as benesses do sistema em proveito próprio, sem questioná-lo, sequer quanto à sua anterior exclusão.

Uma alienação crescente contamina todas as formas, aspirações e demandas sociais, estendendo-se às instituições estabelecidas. A alienação atinge não apenas os pobres, mas também os demais segmentos sociais, não apenas os jovens, mas todas as faixas etárias, não apenas os explorados, mas também os aparentemente privilegiados, que devastam, poluem e descartam velozmente os produtos feitos pelo homem.

Os problemas atuais não derivam apenas do não-atendimento das necessidades básicas do ser humano, mas têm como contrapartida o consumo conspícuo, o imenso desperdício, o planejamento a serviço de interesses privados, cujos poderosos lobbies se confundem com as estruturas de poder. Os movimentos ambientalistas, por sua vez, não podem ficar no “varejo”, enfatizando a mudança de hábitos e atitudes pessoais, em detrimento da ação coletiva.

Uma complexa configuração de fatores políticos, econômicos, educacionais, culturais e ambientais responde pelas crescentes vulnerabilidades nas megacidades do mundo de hoje, cujos efeitos perversos se evidenciam na criminalidade, nos espaços públicos reduzidos a mercados de consumo, na monocultura de lazer regida pelos meios de comunicação de massa, nos locais de moradia afastados, inseguros e carentes, no tráfego e transporte congestionados, na poluição ambiental.

No Brasil, os principais centros urbanos estão entre os mais violentos, economicamente desiguais e problemáticos do mundo. Uma minoria privilegiada se resguarda em enclaves fortificados, outros buscam lugar na sucessão caótica dos prédios de apartamentos, os demais (um quarto da população) vivem em moradias improvisadas (as favelas), não sendo surpresa que a vida cívica e social esteja prejudicada como um todo.

Diante desse quadro, faz-se necessária “uma revolução a longo prazo”, que não se esvazia na mera denúncia de problemas e deficiências, mas implica organização e participação coletiva em ações conjugadas, destinadas à transformação da realidade em que vivemos, abrangendo política, economia, cultura, educação, trabalho, transporte, moradia, lazer, saúde, ambiente natural e construído e demais aspectos relevantes à qualidade de vida.

Para lidar com as vulnerabilidades existentes (community building), o trabalho com os nichos socioculturais levaria em conta as configurações formadas pela conjugação de diferentes dimensões de estar-no-mundo (íntima, interativa, social e biofísica), com vistas à sua sustentação mútua, a seu equilíbrio dinâmico, incrementando seu papel de doação e recepção, face aos enlaces e desenlaces que afetam a qualidade de vida:

• dimensão íntima: crenças e valores básicos, auto-estima, desejos, expectativas, capacidades, resiliência, controle existencial (cognitivo, afetivo, conativo) e perfil cívico;

• dimensão interativa: coesão grupal e apoio mútuo (família, amigos, vizinhos, companheiros de trabalho, lazer, redes e associações diversa;

• dimensão social: políticas públicas, contexto socioeconõmico, educação, cultura, saúde, transportes, saneamento, aspectos de cidadania (local, nacional e global);

• dimensão biofísica: ambientes naturais e construídos (ecúmenos, espaços vitais, solo, água, fauna, flora, paisagens, arquitetura, cenários, vias, logradouros, saneamento).

Ao invés de um planejamento normativo – projeção para o futuro das tendências de hoje –, sugere-se uma postura exploratória, suscetível de congregar as pessoas para uma tomada de consciência e um compromisso coletivo para a mudança das atuais formas de estar-no-mundo, cujos efeitos já estão se tornando quase irreversíveis: indigência física e cultural, aquecimento global e desaparecimento de espécies (eventualmente, a humana).

Pierre Gripari foi outro profeta dos tempos que vivemos. Um dos seus contos (O Partido dos Mortos) é um convite à reflexão sobre os rumos do mundo atual. Em um país qualquer, toda a população, insensivelmente, passa para a condição de mortos que perambulam pelas ruas, assumem o poder e passam a determinar as políticas públicas mais convenientes para eles (como a expansão dos cemitérios).

Afluente e organizado, o Partido dos Mortos procura, atualmente, estender seus domínios sobre toda a Terra, apoderando-se, de forma avassaladora, de postos-chave na política, na economia, na indústria cultural e onde quer que possam promover o “enterro” dos que ainda estão vivos. Maquiavélicos e habilidosos, estão sempre prontos “para condenar as armadilhas que os apanham, mas nunca a si mesmos”.

Manipulados e controlados por um sistema que nos oferece a nossa própria mortalha, privados de discernimento e vontade própria, transmutamo-nos em “zumbis” ou “mortos-vivos”, que participam de uma dança macabra, cujo terrível contraponto é orquestrado, com igual maestria, tanto pelas chamadas “culturas da pobreza” como pelas “culturas da riqueza”, gerando toda sorte de malefícios, pessoais e coletivos, culturais, sociais e ambientais.

Consciente ou inconscientemente, somos cúmplices de interesses políticos e econômicos hegemônicos e, diante deles, permanecemos passivos e inertes. Como observa o poeta, “nossos pecados são renitentes, nossos arrependimentos, frágeis, nossas promessas, pagas grosseiramente e, exultantes, afundamo-nos na lama das estradas, acreditando, através de prantos vis, lavar todas as nossas máculas” (Baudelaire).

André Francisco Pilon é professor da Faculdade de Saúde Pública da USP

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