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Manhã de segunda-feira: a sala de espera está cheia de crianças e jovens portadores de doenças graves e deformidades severas, acompanhados principalmente pelas mães. Os casos em geral são graves e a chegada a essa sala, muitas vezes, representa o fim de uma longa peregrinação à procura de atendimento adequado. Embora todos ali tenham passado, e continuem passando, por dificuldades, o ambiente tem a agitação e a alegria natural que as crianças levam a qualquer lugar. O fato de contarem com o serviço gratuito e de excelência do Centro de Atendimento a Pacientes Especiais (Cape) da Faculdade de Odontologia da USP certamente contribui para isso.

Fotos: Francisco Emolo
Consultórios e especialistas em ação: nova sede

O centro foi fundado em julho de 1989, por iniciativa dos professores Ney Soares de Araújo e Miaki Issau, então diretor da faculdade, já falecido. Na época, a preocupação primordial era atender aos portadores do vírus HIV. O preconceito e a desinformação em relação à Aids fechavam-lhes as portas de inúmeros consultórios. Ao longo dos anos, muitos desses primeiros pacientes acabaram morrendo vitimados pela doença. Com a criação do tratamento baseado numa combinação de remédios anti-retrovirais – o chamado “coquetel” contra a Aids –, em meados dos anos 90, os soropositivos passaram a ter uma sobrevida maior.

Fotos: Francisco Emolo
A diretora do Cape, Marina Magalhães durante consulta: 7.500 pacientes cadastrados

“Há alguns dias, atendemos numa consulta de retorno o nosso paciente número 3, um portador de HIV com quinze anos de infecção”, conta a professora Marina Helena Gallottini de Magalhães, diretora do Cape. O tempo fez diminuir também o preconceito, atesta, mas trouxe desafios diferentes. As lesões bucais que os soropositivos apresentam mudaram muito, e surgiram outras alterações, fruto de efeitos secundários da terapia. Outro problema é que muitos pacientes deixam de tomar os medicamentos quando sentem alguma melhora. A adesão e a continuidade, entretanto, são fundamentais para o tratamento e a manutenção da qualidade de vida.

Recursos – O Cape atende pacientes com distúrbios neuropsicomotores e portadores de doenças sistêmicas crônicas. Além dos soropositivos, há transplantados, diabéticos, hipertensos, pessoas sob tratamento oncológico ou que façam uso constante de corticóides – que necessitam, enfim, de cuidados especiais. A grande maioria é de cidadãos pobres e que não teriam recursos para pagar tratamentos dessa qualidade. Os que podem pagar dificilmente encontram em consultórios particulares dentistas com formação e disposição suficientes para enfrentar essas situações.

No Cape, os 11 consultórios são mais amplos do que os convencionais, porque alguns dos pacientes chegam em macas ou em cadeiras de rodas. Naquela manhã de segunda-feira, uma das cadeiras estava ocupada pela menina Franciele, de 14 anos. Nascida prematura e cardiopata, ela foi internada ainda bebê, por um longo período, para ganhar peso e poder passar por uma cirurgia delicada, realizada quando tinha 1 ano e meio. Com problemas neurológicos e de desenvolvimento, não deixava que nenhum dentista – e gente de jaleco branco em geral – se aproximasse para tratá-la. Só os profissionais do Cape, onde Franciele chegou há sete anos, conseguiram a adesão da menina, com paciência, atenção e sensibilidade. “Deu um pouco de trabalho, mas ela se habituou com os dentistas daqui”, diz a mãe, Irani Maria de Oliveira, moradora de Barueri.

Franciele está usando seu terceiro aparelho. No Cape já fez obturações, extrações e restauração. Agora, suas visitas são para acompanhamento e manutenção. “Antes ela era agressiva e nervosa, agora está bem mais tranqüila e sossegada com seus colegas na escola”, conta a mãe. “Não tenho palavras para expressar o trabalho que é feito aqui. Só tenho a agradecer”, completa. Terminada a consulta, a garota deixa a cadeira, levanta-se sorridente e faz questão de se despedir beijando todos os dentistas ao redor e também a equipe do Jornal da USP.

Longa caminhada – O Cape realiza uma média de mil atendimentos mensais. As triagens são realizadas duas vezes por ano. É criada uma lista de espera e os pacientes vão sendo encaixados ao longo da semana – cada dia é dedicado a alguns tipos de casos. “São 7.500 pessoas cadastradas que fazem daqui o seu dentista”, diz a professora Marina, que reconhece que, sozinho, o centro está longe de dar conta da demanda de São Paulo e do País. De fato, os pacientes vêm de muitos lugares – há gente que viaja uma vez por mês do Maranhão e da Bahia, por exemplo, para um ou dois dias de tratamento.

Como é grande a carência de profissionais que realizem esse tipo de atendimento no País, o Cape recebe uma grande concentração de portadores de doenças incomuns. Um exemplo é a raríssima síndrome de Rubinstein-Taybi, que provoca anormalidades faciais e retardo mental. Segundo a associação de familiares de portadores, estima-se que haja pouco mais de cem casos da síndrome no Brasil – sessenta deles são atendidos no Cape. O centro recebe também pacientes encaminhados por entidades como a Associação Brasileira de Distrofia Muscular (Abdim), presidida pela professora do Instituto de Biociências e pró-reitora de Pesquisa da USP Mayana Zatz.

A “coleção” de casos marcantes do Cape é grande. Um deles é o do jovem Márcio, portador de uma síndrome que provoca deformações severas na face. O rapaz já passou por várias cirurgias para fechamento da mordida e implante de uma prótese nasal. Outras cirurgias ainda virão. Márcio, de 21 anos, chegou ao Cape em março de 2004, depois de sua mãe ter procurado tratamento, sem sucesso, em muitos lugares. Nascido em Macapá (AP), foi trazido a São Paulo ainda bebê por um médico e adotado por Maria Luísa de Araújo, mãe de outros três filhos adotivos e uma filha biológica. “Foram 19 anos de caminhada que tive com ele, dias e noites, até conseguir essa conquista aqui na USP”, diz Maria Luísa. “Estou muito feliz. Só tenho que agradecer. Os dentistas são ótimos e o trabalho é perfeito, com muito carinho, amor e dedicação. Só peço a Deus que continue iluminando a todos.”

Fotos: Francisco Emolo

Voluntários – Desde 2005 o Cape conta com uma nova sede de 800 m2, que abriga os consultórios, uma central de esterilização, um minialmoxarifado e um centro cirúrgico, que ainda não está em funcionamento. Para entrar em operação, aguarda verba da Fapesp para compra de equipamentos. As cirurgias ambulatoriais, nas quais os pacientes recebem anestesia geral e vão embora no mesmo dia, “resolveriam grande parte dos nossos casos”, atesta a professora Marina – que acumula a direção do centro com aulas na graduação e na pós-graduação, orientação de mestrandos e doutorandos, viagens, palestras e pesquisas.

Como o trabalho ainda parece pouco, no ano que vem a Faculdade de Odontologia passará a oferecer, sob sua responsabilidade, a disciplina Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais, aumentando as possibilidades de formação e participação de alunos da graduação no Cape. Outra meta das professoras Marina e Karem Ortega, docente de Patologia Bucal e vice-diretora do centro, é ampliar o atendimento para as camadas mais excluídas da população – aquelas que, de tão marginalizadas, sequer procuram assistência, por não se acharem merecedoras dela.

Enquanto os colegas atendem nos consultórios, o dentista Luiz Carlos Arias Araújo interrompe seu vaivém incansável e faz uma pausa para um lanche na pequena copa do centro. Quando chegou ao Cape, há 15 anos, queria “apenas” fazer trabalho voluntário, não pensava em pós-graduação e certamente não imaginava o que viria depois. Foi ficando e as coisas foram se sucedendo: vieram o mestrado e o doutorado na Faculdade de Odontologia. Hoje cabe a ele a coordenação da área de Ortodontia do Cape. “Basicamente colocamos aparelho em pacientes especiais. Não tem outro lugar no Brasil que faça isso”, diz.

Araújo coordena o atendimento em três níveis: o precoce (para quem precisa colocar um aparelho porque tem dificuldade de respiração, por exemplo), o ortopédico funcional (que visa ao crescimento da face para pacientes em idade de desenvolvimento) e o ortodôntico (para alinhamento). Muitos pacientes começam o tratamento no Cape quando bebês e ficam até a idade adulta, pois nas síndromes o crescimento e a estrutura da face são diferenciados. Se, para um paciente convencional, medidas como a correção de um dente torto podem parecer simples, para um especial significam a solução de problemas complexos, como facilitar a respiração e proporcionar melhoria na qualidade de vida.

“Às vezes ficamos um pouco frustrados porque esperávamos um resultado melhor num determinado tratamento, mas as mães ficam extremamente satisfeitas, e esse é o maior presente que existe”, diz Araújo, um dos muitos dentistas que trabalham de forma voluntária no Cape. Os cursos de atualização promovidos pelo centro são uma das fontes de “arrecadação” de novos voluntários. No momento, 75 profissionais participam da atualização. “Os pacientes especiais são uma paixão que tenho desde a faculdade. Trabalhar com eles é muito gratificante”, afirma a dentista Renata Yumi Takatu Costa, que tem consultório em Santo André.

Renata fez especialização com a professora Marina e Luiz Araújo, e voltou recentemente para a atualização. Ela chama a atenção para um aspecto que não pode passar despercebido: “Esses pacientes jovens e adolescentes estão começando a sair de casa, se desenvolver, participar mais da sociedade. Eles têm também sua vaidade, e por isso o atendimento não é só para as questões funcionais ou fisiológicas. A questão estética e o lado pessoal são muito importantes.”

Quem trabalha no Cape se envolve, cria vínculos fortes e dificilmente sai. Remuneração financeira não há, mas o ganho do trabalho, para esses dentistas, não tem preço. A experiência adquirida é levada para os consultórios particulares e gera pesquisa e novos conhecimentos. Para Luiz Araújo, a segunda-feira, que dedica ao Cape, “é o melhor dia da semana”, ao contrário do que ocorre para a maioria das pessoas. “Aqui é onde me realizo profissionalmente”, afirma, enquanto se serve do lanche: café, refrigerantes, pães de queijo e sanduíches, pagos com dinheiro do bolso dos próprios dentistas voluntários.


De Ribeirão Preto para o Xingu

A USP possui vários outros serviços de extensão em odontologia dirigidos à comunidade. Em São Paulo, a Clínica Odontológica da Faculdade de Odontologia realizou mais de 32 mil atendimentos em 2006. A Universidade também mantém pólos de referência nacional e internacional no setor com a Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) e seu Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, o popular Centrinho de Bauru.

Fotos: Francisco Emolo
A diretora do Cape, Marina Magalhães durante consulta: 7.500 pacientes cadastrados

Em Ribeirão Preto, a Faculdade de Odontologia (Forp) presta serviços que vão de cursos de aprimoramento para profissionais até tratamentos gratuitos de excelência a pacientes encaminhados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A Forp é um dos mais importantes centros de atendimento odontológico na sua região, que abrange uma população de cerca de 1,6 milhão de pessoas.

Criada em 1924, a Forp foi incorporada à USP em 1974. Ao longo desse tempo, várias atividades de extensão foram implantadas. Hoje, a faculdade realiza atendimentos em restaurações, endodontia, cirurgias, periodontia básica e especializada (tratamento gengival), próteses e disfunção de articulação temporomandibular, entre outras áreas, além de programas de prevenção ao câncer bucal.

A Forp possui uma Clínica para Atendimento a Pacientes Portadores de Necessidades Especiais e uma Clínica para Atendimento a Pacientes Mutilados de Face. Esses serviços são realizados por meio de convênios com a prefeitura, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto e o Hemocentro da cidade. O Serviço Especializado em Radiografia e Documentação Ortodôntica abriga o Laboratório de Análise e Controle da Imagem Radiográfica Odontológica e o Centro Integrado de Estudos de Deformidades da Face, em conjunto com a Faculdade de Medicina. Todas essas atividades estão concentradas em sete clínicas com 197 consultórios instalados, nas quais atendem alunos dos cursos de graduação, pós-graduação e de extensão universitária.

Numa parceria com o governo federal e a Prefeitura de Ribeirão, a Forp participa do projeto Brasil Sorridente, que oferece principalmente a confecção de próteses totais e parciais removíveis. Desde agosto de 2005, quando o programa entrou em operação, foram realizados mais de 4.500 procedimentos em
500 pacientes.

Em 2004, em convênio com a Fundação Nacional de Saúde, a Forp passou a atender às populações indígenas do Xingu, em parceria com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Atualmente, os profissionais e estudantes da USP de Ribeirão atendem a cerca de 3.000 índios, distribuídos em 32 aldeias. Dez indígenas já receberam treinamento como agentes de saúde.

Outro projeto no qual a faculdade está envolvida é o programa Pró-Saúde, também do governo federal, que visa a incentivar transformações na formação e prestação de serviços em medicina, enfermagem e odontologia.

Os recursos obtidos através desse convênio serão revertidos para melhorias dos Centros Saúde-Escola e Unidades Básicas de Saúde de Ribeirão Preto.

(ROSEMEIRE SOARES TALAMONE, de Ribeirão Preto)


Frutos espalhados pelo País

Além do atendimento, o Cape também procura gerar conhecimento e formar profissionais especializados que multipliquem iniciativas semelhantes pelo Brasil. Em termos de inovação, pode ser citado o caso recente de um jovem de 16 anos portador de epidermólise bolhosa, doença que provoca perda de adesão da pele e desenvolvimento de bolhas ao mínimo trauma.
O jovem perdera os dentes da frente e não podia receber uma prótese. Também não havia possibilidade de se fazer um molde em gesso, pelas lesões que seriam causadas na boca. A equipe então partiu para um implante. O molde foi feito por tomografia, a partir da qual gerou-se um modelo de acrílico que serviu de base para a realização do implante. Os custos, bastante altos, foram cobertos por um doador particular.

Entre os frutos que o Cape está gerando em outras regiões do País está o Núcleo de Estudos em Pacientes Especiais (Nepe), mantido em Fortaleza pela Faculdade de Farmácia, Odontologia e Enfermagem da Universidade Federal do Ceará (UFC). O Nepe já existe desde 1997, mas foi sob a direção de seu atual coordenador, Fabrício Bitu Sousa, que se transformou em referência para tratamento desses casos no Estado.

O jovem Fabrício Sousa, de 33 anos, assumiu a coordenação do núcleo ao retornar de seu período na USP, onde realizou doutorado (na Faculdade de Odontologia, entre 1999 e 2002, sob orientação da professora Marina Magalhães) e pós-doutorado (na Faculdade de Medicina, até 2004). Nesse período, fazia paralelamente um estágio clínico-teórico no Cape. “Ali aprendi toda a minha base em odontologia para pacientes especiais, recebi muitos ensinamentos técnico-científicos, mas aprendi também como me tornar mais humano diante de todos esses pacientes que passaram por mim”, relata. Ter contato com pessoas com Aids, câncer ou síndrome de Down, diz, permitiu “que houvesse toda uma transformação na minha vida profissional e pessoal”.

O plano de trabalho do Nepe é semelhante ao existente em São Paulo. Além dos atendimentos, são desenvolvidos projetos científicos de inclusão odontológica para os pacientes neurológicos, de diagnóstico precoce de câncer de boca e de saúde bucal para pessoas vivendo com HIV-Aids. “Ainda estamos longe de nos tornarmos um Cape, mas com certeza devemos essa ‘semente’ à USP”, afirma Sousa, que divide a coordenação do núcleo com as aulas de Patologia Bucal e Estomatologia Clínica na faculdade. “Arriscaria dizer que aprendi quase tudo o que sei com a professora Marina. Foi com ela que aprendi um misto de técnica e humanidade”, define.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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