Manhã de segunda-feira: a sala de espera está cheia
de crianças e jovens portadores de doenças graves
e deformidades severas, acompanhados principalmente pelas mães.
Os casos em geral são graves e a chegada a essa sala, muitas
vezes, representa o fim de uma longa peregrinação à procura
de atendimento adequado. Embora todos ali tenham passado, e continuem
passando, por dificuldades, o ambiente tem a agitação
e a alegria natural que as crianças levam a qualquer lugar.
O fato de contarem com o serviço gratuito e de excelência
do Centro de Atendimento a Pacientes Especiais (Cape) da Faculdade
de Odontologia da USP certamente contribui para isso.
Consultórios e especialistas em ação: nova
sede
O centro foi fundado em julho de 1989, por iniciativa dos professores
Ney Soares de Araújo e Miaki Issau, então diretor
da faculdade, já falecido. Na época, a preocupação
primordial era atender aos portadores do vírus HIV. O preconceito
e a desinformação em relação à Aids
fechavam-lhes as portas de inúmeros consultórios.
Ao longo dos anos, muitos desses primeiros pacientes acabaram morrendo
vitimados pela doença. Com a criação do tratamento
baseado numa combinação de remédios anti-retrovirais – o
chamado “coquetel” contra a Aids –, em meados
dos anos 90, os soropositivos passaram a ter uma sobrevida maior.
A
diretora do Cape,
Marina
Magalhães
durante
consulta:
7.500
pacientes
cadastrados |
“Há alguns dias, atendemos numa consulta de retorno
o nosso paciente número 3, um portador de HIV com quinze
anos de infecção”, conta a professora Marina
Helena Gallottini de Magalhães, diretora do Cape. O tempo
fez diminuir também o preconceito, atesta, mas trouxe desafios
diferentes. As lesões bucais que os soropositivos apresentam
mudaram muito, e surgiram outras alterações, fruto
de efeitos secundários da terapia. Outro problema é que
muitos pacientes deixam de tomar os medicamentos quando sentem
alguma melhora. A adesão e a continuidade, entretanto, são
fundamentais para o tratamento e a manutenção da
qualidade de vida. Recursos – O Cape atende pacientes com distúrbios
neuropsicomotores e portadores de doenças sistêmicas
crônicas. Além dos soropositivos, há transplantados,
diabéticos, hipertensos, pessoas sob tratamento oncológico
ou que façam uso constante de corticóides – que
necessitam, enfim, de cuidados especiais. A grande maioria é de
cidadãos pobres e que não teriam recursos para pagar
tratamentos dessa qualidade. Os que podem pagar dificilmente encontram
em consultórios particulares dentistas com formação
e disposição suficientes para enfrentar essas situações.
No Cape, os 11 consultórios são mais amplos do que
os convencionais, porque alguns dos pacientes chegam em macas ou
em cadeiras de rodas. Naquela manhã de segunda-feira, uma
das cadeiras estava ocupada pela menina Franciele, de 14 anos.
Nascida prematura e cardiopata, ela foi internada ainda bebê,
por um longo período, para ganhar peso e poder passar por
uma cirurgia delicada, realizada quando tinha 1 ano e meio. Com
problemas neurológicos e de desenvolvimento, não
deixava que nenhum dentista – e gente de jaleco branco em
geral – se aproximasse para tratá-la. Só os
profissionais do Cape, onde Franciele chegou há sete anos,
conseguiram a adesão da menina, com paciência, atenção
e sensibilidade. “Deu um pouco de trabalho, mas ela se habituou
com os dentistas daqui”, diz a mãe, Irani Maria de
Oliveira, moradora de Barueri.
Franciele está usando seu terceiro aparelho. No Cape já fez
obturações, extrações e restauração.
Agora, suas visitas são para acompanhamento e manutenção. “Antes
ela era agressiva e nervosa, agora está bem mais tranqüila
e sossegada com seus colegas na escola”, conta a mãe. “Não
tenho palavras para expressar o trabalho que é feito aqui.
Só tenho a agradecer”, completa. Terminada a consulta,
a garota deixa a cadeira, levanta-se sorridente e faz questão
de se despedir beijando todos os dentistas ao redor e também
a equipe do Jornal da USP.
Longa caminhada – O Cape realiza uma média
de mil atendimentos mensais. As triagens são realizadas
duas vezes por ano. É criada uma lista de espera e os pacientes
vão
sendo encaixados ao longo da semana – cada dia é dedicado
a alguns tipos de casos. “São 7.500 pessoas cadastradas
que fazem daqui o seu dentista”, diz a professora Marina,
que reconhece que, sozinho, o centro está longe de dar conta
da demanda de São Paulo e do País. De fato, os pacientes
vêm de muitos lugares – há gente que viaja uma
vez por mês do Maranhão e da Bahia, por exemplo, para
um ou dois dias de tratamento.
Como é grande a carência de profissionais que realizem
esse tipo de atendimento no País, o Cape recebe uma grande
concentração de portadores de doenças incomuns.
Um exemplo é a raríssima síndrome de Rubinstein-Taybi,
que provoca anormalidades faciais e retardo mental. Segundo a associação
de familiares de portadores, estima-se que haja pouco mais de cem
casos da síndrome no Brasil – sessenta deles são
atendidos no Cape. O centro recebe também pacientes encaminhados
por entidades como a Associação Brasileira de Distrofia
Muscular (Abdim), presidida pela professora do Instituto de Biociências
e pró-reitora de Pesquisa da USP Mayana Zatz.
A “coleção” de casos marcantes do Cape é grande.
Um deles é o do jovem Márcio, portador de uma síndrome
que provoca deformações severas na face. O rapaz
já passou por várias cirurgias para fechamento da
mordida e implante de uma prótese nasal. Outras cirurgias
ainda virão. Márcio, de 21 anos, chegou ao Cape em
março de 2004, depois de sua mãe ter procurado tratamento,
sem sucesso, em muitos lugares. Nascido em Macapá (AP),
foi trazido a São Paulo ainda bebê por um médico
e adotado por Maria Luísa de Araújo, mãe de
outros três filhos adotivos e uma filha biológica. “Foram
19 anos de caminhada que tive com ele, dias e noites, até conseguir
essa conquista aqui na USP”, diz Maria Luísa. “Estou
muito feliz. Só tenho que agradecer. Os dentistas são ótimos
e o trabalho é perfeito, com muito carinho, amor e dedicação.
Só peço a Deus que continue iluminando a todos.”
Voluntários – Desde 2005 o Cape conta com uma nova
sede de 800 m2, que abriga os consultórios, uma central
de esterilização, um minialmoxarifado e um centro
cirúrgico, que ainda não está em funcionamento.
Para entrar em operação, aguarda verba da Fapesp
para compra de equipamentos. As cirurgias ambulatoriais, nas quais
os pacientes recebem anestesia geral e vão embora no mesmo
dia, “resolveriam grande parte dos nossos casos”, atesta
a professora Marina – que acumula a direção
do centro com aulas na graduação e na pós-graduação,
orientação de mestrandos e doutorandos, viagens,
palestras e pesquisas.
Como o trabalho ainda parece pouco, no ano que vem a Faculdade
de Odontologia passará a oferecer, sob sua responsabilidade,
a disciplina Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais,
aumentando as possibilidades de formação e participação
de alunos da graduação no Cape. Outra meta das professoras
Marina e Karem Ortega, docente de Patologia Bucal e vice-diretora
do centro, é ampliar o atendimento para as camadas mais
excluídas da população – aquelas que,
de tão marginalizadas, sequer procuram assistência,
por não se acharem merecedoras dela.
Enquanto os colegas atendem nos consultórios, o dentista
Luiz Carlos Arias Araújo interrompe seu vaivém incansável
e faz uma pausa para um lanche na pequena copa do centro. Quando
chegou ao Cape, há 15 anos, queria “apenas” fazer
trabalho voluntário, não pensava em pós-graduação
e certamente não imaginava o que viria depois. Foi ficando
e as coisas foram se sucedendo: vieram o mestrado e o doutorado
na Faculdade de Odontologia. Hoje cabe a ele a coordenação
da área de Ortodontia do Cape. “Basicamente colocamos
aparelho em pacientes especiais. Não tem outro lugar no
Brasil que faça isso”, diz.
Araújo coordena o atendimento em três níveis:
o precoce (para quem precisa colocar um aparelho porque tem dificuldade
de respiração, por exemplo), o ortopédico
funcional (que visa ao crescimento da face para pacientes em idade
de desenvolvimento) e o ortodôntico (para alinhamento). Muitos
pacientes começam o tratamento no Cape quando bebês
e ficam até a idade adulta, pois nas síndromes o
crescimento e a estrutura da face são diferenciados. Se,
para um paciente convencional, medidas como a correção
de um dente torto podem parecer simples, para um especial significam
a solução de problemas complexos, como facilitar
a respiração e proporcionar melhoria na qualidade
de vida.
“Às vezes ficamos um pouco frustrados porque esperávamos
um resultado melhor num determinado tratamento, mas as mães
ficam extremamente satisfeitas, e esse é o maior presente
que existe”, diz Araújo, um dos muitos dentistas que
trabalham de forma voluntária no Cape. Os cursos de atualização
promovidos pelo centro são uma das fontes de “arrecadação” de
novos voluntários. No momento, 75 profissionais participam
da atualização. “Os pacientes especiais são
uma paixão que tenho desde a faculdade. Trabalhar com eles é muito
gratificante”, afirma a dentista Renata Yumi Takatu Costa,
que tem consultório em Santo André.
Renata fez especialização com a professora Marina
e Luiz Araújo, e voltou recentemente para a atualização.
Ela chama a atenção para um aspecto que não
pode passar despercebido: “Esses pacientes jovens e adolescentes
estão começando a sair de casa, se desenvolver, participar
mais da sociedade. Eles têm também sua vaidade, e
por isso o atendimento não é só para as questões
funcionais ou fisiológicas. A questão estética
e o lado pessoal são muito importantes.”
Quem trabalha no Cape se envolve, cria vínculos fortes e
dificilmente sai. Remuneração financeira não
há, mas o ganho do trabalho, para esses dentistas, não
tem preço. A experiência adquirida é levada
para os consultórios particulares e gera pesquisa e novos
conhecimentos. Para Luiz Araújo, a segunda-feira, que dedica
ao Cape, “é o melhor dia da semana”, ao contrário
do que ocorre para a maioria das pessoas. “Aqui é onde
me realizo profissionalmente”, afirma, enquanto se serve
do lanche: café, refrigerantes, pães de queijo e
sanduíches, pagos com dinheiro do bolso dos próprios
dentistas voluntários.
De Ribeirão Preto
para o Xingu A USP possui vários
outros serviços de extensão em odontologia dirigidos à comunidade.
Em São Paulo, a Clínica Odontológica da
Faculdade de Odontologia realizou mais de 32 mil atendimentos
em 2006. A Universidade também mantém pólos
de referência nacional e internacional no setor com a Faculdade
de Odontologia de Bauru (FOB) e seu Hospital de Reabilitação
de Anomalias Craniofaciais, o popular Centrinho de Bauru.
A diretora do Cape, Marina Magalhães
durante consulta: 7.500 pacientes cadastrados |
Em Ribeirão Preto, a Faculdade de Odontologia (Forp) presta
serviços que vão de cursos de aprimoramento para
profissionais até tratamentos gratuitos de excelência
a pacientes encaminhados pelo Sistema Único de Saúde
(SUS). A Forp é um dos mais importantes centros de atendimento
odontológico na sua região, que abrange uma população
de cerca de 1,6 milhão de pessoas. Criada em 1924, a Forp foi incorporada à USP em 1974.
Ao longo desse tempo, várias atividades de extensão
foram implantadas. Hoje, a faculdade realiza atendimentos em
restaurações, endodontia, cirurgias, periodontia
básica e especializada (tratamento gengival), próteses
e disfunção de articulação temporomandibular,
entre outras áreas, além de programas de prevenção
ao câncer bucal.
A Forp possui uma Clínica para Atendimento a Pacientes
Portadores de Necessidades Especiais e uma Clínica para
Atendimento a Pacientes Mutilados de Face. Esses serviços
são realizados por meio de convênios com a prefeitura,
o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
de Ribeirão Preto e o Hemocentro da cidade. O Serviço
Especializado em Radiografia e Documentação Ortodôntica
abriga o Laboratório de Análise e Controle da Imagem
Radiográfica Odontológica e o Centro Integrado
de Estudos de Deformidades da Face, em conjunto com a Faculdade
de Medicina. Todas essas atividades estão concentradas
em sete clínicas com 197 consultórios instalados,
nas quais atendem alunos dos cursos de graduação,
pós-graduação e de
extensão universitária.
Numa parceria com o governo federal e a Prefeitura de Ribeirão,
a Forp participa do projeto Brasil Sorridente, que oferece principalmente
a confecção de próteses totais e parciais
removíveis. Desde agosto de 2005, quando o programa entrou
em operação, foram realizados mais de 4.500 procedimentos
em
500 pacientes.
Em 2004, em convênio com a Fundação Nacional
de Saúde, a Forp passou a atender às populações
indígenas do Xingu, em parceria com a Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp). Atualmente, os profissionais e
estudantes da USP de Ribeirão atendem a cerca de 3.000 índios,
distribuídos em 32 aldeias. Dez indígenas já receberam
treinamento como agentes de saúde.
Outro projeto no qual a faculdade está envolvida é o
programa Pró-Saúde, também do governo federal,
que visa a incentivar transformações na formação
e prestação de serviços em medicina, enfermagem
e odontologia.
Os recursos obtidos através desse convênio serão
revertidos para melhorias dos Centros Saúde-Escola e Unidades
Básicas de Saúde
de Ribeirão Preto.
(ROSEMEIRE SOARES TALAMONE,
de Ribeirão Preto)
Frutos espalhados pelo País
Além do atendimento, o Cape também
procura gerar conhecimento e formar profissionais especializados
que multipliquem iniciativas semelhantes pelo Brasil. Em termos
de inovação, pode ser citado o caso recente de
um jovem de 16 anos portador de epidermólise bolhosa,
doença que provoca perda de adesão da pele e desenvolvimento
de bolhas ao mínimo trauma.
O jovem perdera os dentes da frente e não podia receber
uma prótese. Também não havia possibilidade
de se fazer um molde em gesso, pelas lesões que seriam
causadas na boca. A equipe então partiu para um implante.
O molde foi feito por tomografia, a partir da qual gerou-se um
modelo de acrílico que serviu de base para a realização
do implante.
Os custos, bastante altos,
foram cobertos por um
doador particular.
Entre os frutos que o Cape está gerando em outras regiões
do País está o Núcleo de Estudos em Pacientes
Especiais (Nepe), mantido em Fortaleza pela Faculdade de Farmácia,
Odontologia e Enfermagem da Universidade Federal do Ceará (UFC).
O Nepe já existe desde 1997, mas foi sob a direção
de seu atual coordenador, Fabrício Bitu Sousa, que se
transformou em referência para tratamento desses casos
no Estado.
O jovem Fabrício Sousa, de 33 anos, assumiu a coordenação
do núcleo ao retornar de seu período na USP, onde
realizou doutorado (na Faculdade de Odontologia, entre 1999 e
2002, sob orientação da professora Marina Magalhães)
e pós-doutorado (na Faculdade de Medicina, até 2004).
Nesse período, fazia paralelamente um estágio clínico-teórico
no Cape. “Ali aprendi toda a minha base em odontologia
para pacientes especiais, recebi muitos ensinamentos técnico-científicos,
mas aprendi também como me tornar mais humano diante de
todos esses pacientes que passaram por mim”, relata. Ter
contato com pessoas com Aids, câncer ou síndrome
de Down, diz, permitiu “que houvesse toda uma transformação
na minha vida profissional e pessoal”.
O plano de trabalho do Nepe é semelhante ao existente
em São Paulo. Além dos atendimentos, são
desenvolvidos projetos científicos de inclusão
odontológica para os pacientes neurológicos, de
diagnóstico precoce de câncer de boca e de saúde
bucal para pessoas vivendo com HIV-Aids. “Ainda estamos
longe de nos tornarmos um Cape, mas com certeza devemos essa ‘semente’ à USP”,
afirma Sousa, que divide a coordenação do núcleo
com as aulas de Patologia Bucal e Estomatologia Clínica
na faculdade. “Arriscaria dizer que aprendi quase tudo
o que sei com a professora Marina. Foi com ela que aprendi
um misto de técnica
e humanidade”, define.
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