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Na década de 90, como alunos de pós-graduação brasileiros no exterior, ficávamos extremamente contrariados com as observações dos estrangeiros logo no primeiro contato, pois eles mencionavam, em primeiro lugar, o futebol, depois as favelas e por fim as diferenças entre pobres e ricos. Tudo verdadeiro. Na realidade, é o reflexo do que somos realmente. Ou, pelo menos em parte, éramos.

Algo começou a mudar na década entre 1995 e 2005. Fiquei surpreendido ao visitar o John Innes Institute, um dos maiores centros de biologia vegetal da Inglaterra, em 1998. Em uma roda de cientistas, todos olharam para mim e indagaram: “Quer dizer que agora o Brasil é uma nova potência na genômica? Como foi que vocês conseguiram isso?”. Esse foi um dos efeitos do projeto de mapeamento do genoma da Xylella fastidiosa. Vários genomas depois, em nível mundial, nossos biólogos moleculares se tornaram respeitados nacional e internacionalmente.

Em agosto de 2006, visitei Boston, nos Estados Unidos, para assistir a um encontro nacional da American Society of Plant Biology (ASPB), atualmente uma das mais prestigiadas sociedades científicas em biologia de plantas do planeta.

Já na abertura da sessão de Mudanças Climáticas Globais, o professor Steve Long, mundialmente conhecido e respeitado como editor-chefe da revista Global Change Biology, mencionava: “Temos que seguir o exemplo do Brasil, um país que usa a cana-de-açúcar e hoje é o primeiro país do mundo em tecnologia biocombustível”. Mas isso não foi mencionado somente pelo professor Long. Outras pessoas importantes também o fizeram, e praticamente nos mesmos termos. Entre elas, nada menos do que George Bush, presidente dos Estados Unidos. E não foi só uma vez. Por exemplo, em 19 de novembro de 2006, durante uma entrevista coletiva na Indonésia, transmitida pela CNN, na resposta à pergunta de uma repórter sobre o uso do álcool como combustível, Bush usou o exemplo do Brasil como o país mais avançado do mundo em biocombustíveis. Assim, hoje, além do futebol, do vôlei, da maratona de Nova York e outros esportes em que o Brasil vem dominando ou está quase lá, somos também mencionados como um exemplo de ciência e tecnologia de alto nível.

Durante o congresso da ASPB que mencionei acima, o poderoso Department of Energy dos Estados Unidos (DOE) estava oferecendo gratuitamente dois volumes com os textos de seus workshops mais recentes e importantes. Ambos sobre produção de energia alternativa ao petróleo, ou seja, a partir de biomassa vegetal. Nesse documento já fica claro que os Estados Unidos irão plantar muito pouca cana-de-açúcar, pois já há naquele país a cultura do milho, que está muito bem estabelecida.

Segundo o workshop intitulado “Breaking the Biological Barriers to Cellulosic Ethanol: a Joint Research Agenda”, patrocinado pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos em 2005, o caminho sugerido é a utilização dos resíduos da planta de milho para transformar a produção de açúcares – através de hidrólise da parede celular e a subseqüente fermentação dos açúcares – em um processo economicamente viável. Paralelamente, estudos já foram iniciados pelos americanos com gramíneas nativas que crescem bem naquele país, como uma espécie chamada Mischathus.

Cana e milho – Por que a planta de cana é melhor que o milho para produzir álcool? Um dos motivos é que nós começamos primeiro a desenvolver a tecnologia de produção de álcool combustível a partir da cana. Porém, os estudos com a cultura de milho se iniciaram bem antes e, em geral, do ponto de vista fisiológico e agronômico, se sabe muito mais sobre ele do que sobre a cana. Além disso, o Brasil é também um grande produtor de milho e promoveu grandes avanços nessa cultura.

Por que, então, não se consegue produzir sacarose de milho com o mesmo rendimento obtido a partir da cana, se ambos são gramíneas (da família Poaceae) e têm um genoma muito parecido? Uma das diferenças mais importantes está em como as duas espécies usam o carbono que absorvem. Após um período de intenso crescimento, o milho floresce e drena todo o carbono que pode para encher os grãos nas espigas com amido. Por outro lado, a cana armazena tudo diretamente na forma de sacarose no colmo (caule) e ainda por cima foi desenhada pelos geneticistas para não florescer. O milho, para produzir o amido, tem que transformar primeiro o carbono, que absorve pela fotossíntese, em sacarose e aí transportá-lo para as sementes em desenvolvimento. Com isso, a planta tem que arcar com gastos energéticos muito maiores do que a cana, que só executa metade desse processo.

“Redesenhar” geneticamente o milho para que produza sacarose e não floresça poderia ser uma opção estratégica, principalmente a partir de 2008, quando será comemorado, no congresso da ASPB, no México, o término do seqüenciamento completo do genoma do milho.

Enquanto isso, a bola de neve continua rolando e crescendo. Na semana passada, o presidente dos Estados Unidos fez uma visita estratégica ao Brasil e muitos afirmam que a principal razão seria discutir sobre biocombustíveis. Os Estados Unidos estão começando a jogar, e estão falando sério. Para se ter uma idéia, uma semana depois do congresso da ASPB, em agosto de 2006, a NPR (National Public Radio) já anunciava que os Estados Unidos iriam investir cerca de US$ 200 milhões em pesquisa sobre bioenergia. Segundo a rádio, os americanos querem formar uma base científica que permita aos Estados Unidos atingir o nível de adição de 25% de álcool na gasolina em todo o país até o ano de 2030. Isso equivale a dizer que, em 24 anos, os Estados Unidos querem atingir o nível de independência que o Brasil tem hoje. Os Estados Unidos hoje produzem álcool principalmente a partir de amido de milho e adicionam entre 5% e 10% de álcool na gasolina. Será que essa será uma das vias a serem adotadas pelos Estados Unidos para obter etanol?

Tecnologia brasileira – Historicamente, o Brasil teve duas vantagens estratégicas importantes, que foram: 1) ter dominado a cultura de cana-de-açúcar, praticamente a partir da descoberta do País pelos portugueses; e 2) ter implantado o Programa Pró-Álcool já na década de 70, quando da primeira crise do petróleo. Até agora aproveitamos essas vantagens, mas como será o futuro?

Para se ter uma idéia de onde estamos, no biênio 2005/2006 o Brasil produziu cerca de 386 milhões de toneladas de cana. Nessa conta empatamos com os Estados Unidos. A diferença está no custo de produção, que no nosso caso é bem menor, pois os Estados Unidos subsidiam a produção de álcool.

No Brasil, aproximadamente metade desse material foi utilizada para produzir açúcar e a outra metade foi processada para produzir 15,9 milhões de metros cúbicos de álcool. Em média, a produção de álcool e açúcar a partir da cana gera aproximadamente 7% de material fibroso, que é considerado como resíduo no processo. Esse resíduo consiste principalmente de parede celular (celulose, hemiceluloses e pectinas) e tem sido queimado para complementar as necessidades energéticas das usinas, visando à produção de açúcar e álcool.

Se nos lembrarmos que celulose, hemiceluloses e pectinas são polímeros de açúcares, seria possível fragmentar essas macromoléculas para produzir açúcares menores e fermentá-los para produzir álcool. Viável economicamente? Provavelmente não neste momento, mas há uma outra pergunta a ser feita: temos base científica e tecnológica para tornar viável a produção de álcool a partir de resíduos vegetais? Certamente!

Enquanto os Estados Unidos iniciam somente agora estudos sobre espécies potenciais de gramíneas para produzir álcool, o Brasil finalizou em 2001 um passo importante para melhorar ainda mais a sua capacidade produtiva. Foi implantado um programa sobre o genoma da cana, o Sucest, e em dois anos produziu 238 mil fragmentos de genes (ESTs ou expression sequence tags), que equivalem a aproximadamente 50 mil genes da planta.

O Sucest formou um banco de dados, aberto inicialmente a um número restrito de pesquisadores, que “mineraram” o banco à procura de contextos que fizessem nexo biológico. Um volume inteiro (volume 24) da revista brasileira Genetics and Molecular Biology foi dedicado aos trabalhos de “mineração”.

Recentemente, um grupo de pesquisadores iniciou um consórcio financiado pela Fapesp, pelo Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) e pela Central de Álcool Lucélia. O grupo, denominado Sucest-Fun, tem como objetivo atribuir funções biológicas a genes que tenham sido identificados no banco de dados do Sucest. Utilizamos esse banco de dados para construir um mapa de expressão de genes relacionados à parede celular vegetal. O trabalho levou a uma lista de 459 genes potenciais, que estariam relacionados ao metabolismo da parede celular.

Em colaboração com uma universidade americana (Purdue), começamos a comparar o milho com a cana. Já desvendamos as estruturas químicas dos polissacarídeos de parede celular dos vários tecidos da cana-de-açúcar, confirmando os resultados com o trabalho de expressão gênica. Temos, assim, disponíveis em nossa comunidade científica os mapas de expressão gênica e de estrutura química da parede celular e as ferramentas para manipular tudo isso. Estamos, portanto, prontos para começar a aprender como desmontar os polímeros presentes na fibra da cana e passar, para os especialistas em fermentação, a incumbência de tentar fechar o ciclo e produzir álcool. Com todo esse conhecimento sobre o genoma da cana e a composição dos polissacarídeos da parede celular, também podemos pensar em transformar plantas para que os genes que codificam enzimas de hidrólise da parede sejam expressos logo após a extração da sacarose e facilitem o trabalho de produção de açúcares livres para a fermentação.

Biodiversidade – Um outro grande e importante problema a ser enfrentado nos próximos anos é como fazer para aumentar a produção da cana e/ou dos seus açúcares. Segundo apurado pela União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), o Brasil seria teoricamente capaz de atender a 25% da demanda mundial de etanol, mas, para isso, com a produtividade atual, teríamos que usar cerca de 40% da área agrícola do País. Porém, numa situação como essa, teríamos que colocar a cana no lugar de outras culturas ou então invadir áreas de biomas que devem ser conservados, como o cerrado, sob risco de perdas irreparáveis de biodiversidade.

Uma solução para minimizar esses impactos seria aumentar a produtividade. Mas o problema é que a cana-de-açúcar é como uma “planta diabética” e todas as diversas tentativas de aumentar a produção de sacarose têm falhado, pois produzem plantas menos vigorosas. A impressão é que talvez se tenha atingido um limite natural da cana. No entanto, um trabalho recém-publicado na revista Plant Biotechnology Journal deu um passo aparentemente crucial no sentido de aumentar o nível de açúcar na cana, mas não da sacarose. Luguang Wu e Robert Birch, da Universidade de Queensland, em Brisbane, Austrália, transferiram um gene da batata-doce que transforma a sacarose em um açúcar parecido, mas com uma diferença fundamental para o modo como a planta “compreende” o seu status interno de açúcares. A enzima sacarose isomerase (SI) transforma a sacarose em isomaltulose, um açúcar que também é digerido pelos seres humanos, mas é degradado apenas no intestino e com isso evita grandes flutuações no nível de açúcar no sangue. Além disso, a isomaltulose é pouco cariogênica, ou seja, pouco acessível às bactérias que temos na boca. Mas o mais interessante para a planta da cana é que o acúmulo da isomaltulose “engana” o seu metabolismo, levando a uma mensagem interna de que o nível de sacarose não é tão alto. Com isso, a cana mantém altos níveis de fotossíntese e produção de açúcares.

Nós, brasileiros, já temos soluções nessa área, mas serão protegidas por patentes e ainda teremos que esperar para ver o que vai acontecer, tanto por parte dos brasileiros como dos sul-africanos e australianos, que também vêm estudando a cana-de-açúcar intensamente.

Uma outra via alternativa ao aumento de área seria utilizarmos nossas descobertas recentes de que a cana-de-açúcar responde muito bem ao incremento de gás carbônico na atmosfera, aumentando em cerca de 60% a sua biomassa e ainda mais a produção de sacarose e de fibras. Em 2006, o Brasil produziu, segundo a Unica, 386,6 toneladas de cana, que geraram 15,9 milhões de metros cúbicos de etanol e tudo isso resultou na produção de 25,7 toneladas de fibras. Nossos dados indicam que, com o aumento de gás carbônico, previsto para dobrar por volta de 2050, a nossa produção, com a mesma tecnologia de hoje, poderia chegar a 649,6 toneladas de cana, o que resultaria em 26,8 milhões de metros cúbicos de etanol e 46,3 toneladas de fibras. Como deve haver uma produção considerável de gás carbônico excedente durante a produção do próprio etanol pelas usinas durante a fermentação, será que não seria possível utilizar esse excesso para aumentar a produtividade da cana? Devemos lembrar que a mudança climática inexorável se encarregará disso em parte, com o aumento gradativo da concentração de gás carbônico na atmosfera.

O dilema – Mas há aí um dilema a ser enfrentado. Para plantar mais cana hoje, será necessário um aumento espetacular na área ocupada por essa cultura. Por outro lado, essas áreas deveriam ter, mantidos ou recuperados, os seus respectivos biomas naturais (florestas, cerrados etc.) e a manutenção destes tem se mostrado fundamental para mitigar os efeitos do aquecimento global e aumentar o seqüestro de carbono de longo prazo. No Brasil, a maior parcela de emissão de gás carbônico para a atmosfera vem das queimadas de florestas. Além da emissão de carbono, há também a perda irreparável de biodiversidade.

A solução talvez seja seguir o caminho do meio. Derrubar qualquer floresta ou cerrado para plantar cana não merece sequer discussão. Porém, se trabalharmos com eficiência e melhorarmos ainda mais a tecnologia de produção de açúcar e álcool a partir da cana, talvez possamos pensar em um aumento de produtividade com impacto mínimo na área de plantio e assim preservar o que existe. Melhor ainda seria se pudéssemos aumentar a produtividade a tal ponto que pudéssemos começar a plantar corredores de florestas em meio às plantações de cana.

A pergunta estratégica é como o Brasil quer ser visto no futuro: como uma Arábia Saudita do álcool? Ou como um país que descobriu uma forma de atingir um nível de equilíbrio socioeconômico-ambiental nunca antes visto no planeta? Será que um álcool combustível produzido com um selo socioambiental desses não teria um valor de mercado maior do que o álcool produzido com altos custos socioambientais? Será que, com isso, o Brasil não continuaria na frente quando vários outros países atingirem um bom nível de produção de etanol a partir de cana ou de outras fontes vegetais?

Se decidirmos estabelecer metas como essas nos próximos 10 a 15 anos, talvez o Brasil possa fazer uma contribuição com um peso sem precedentes para o bem-estar não só do nosso país, mas de todo o planeta.

Marcos Buckeridge é professor do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da USP

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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