Para que um portador do vírus HIV possa levar uma vida
mais longa e saudável, ele deve se tratar com um coquetel
de variados medicamentos. Isso exige dedicação e
rígida organização e é a maior causa
do alto índice de desistência do tratamento, que no
ano 2000 alcançou 70% dos pacientes do Estado de São
Paulo, de acordo com o Núcleo de Estudos para Prevenção
da Aids (Nepaids) da USP.
Foi pensando nesse público que o pesquisador Luiz Marcos
de Lira Faria, do Laboratório de Eletroativos do Instituto
de Química da USP, resolveu desenvolver, em sua tese de
doutorado, um sistema-modelo de liberação controlada
de drogas. Assim, o coquetel contra a Aids pode ser substituído
por um aplicativo automático, adesivo ou subcutâneo,
quase invisível aos olhos e imperceptível na rotina
dos pacientes.
Em cinco anos de pesquisa, o professor desenvolveu um sistema
composto de materiais biocompatíveis, que não reagem com as
células sanguíneas, evitando reações
adversas. O pequeno sistema, de 0,7 por 0,5 centímetros, é formado
por uma matriz de hidrogel – um material poroso, transparente,
similar a uma gelatina e composto por 80% a 90% de água. “Como
nossa idéia é fazer um dispositivo que fique no organismo
do paciente, precisamos de um material que não o agrida.
O hidrogel não adere a plaquetas no sangue, não causa
trombose e não tem nada tóxico em sua solução”,
explica Faria.
Nessa cápsula é inserido um polímero condutor – metal
sintético que conduz cargas elétricas – que,
de acordo com sua intensidade, muda de cor e tamanho. É esse
polímero que dá a coloração preta ao
sistema. “Como o hidrogel é muito poroso, o polímero
condutor cresce e permeia o material, formando uma camada de revestimento
em seus poros, tudo em escala nanométrica”, afirma
Faria. Após a aplicação do polímero,
o sistema é mergulhado em uma solução com
o medicamento desejado. O sistema age como uma esponja, absorvendo
o medicamento por difusão.
O que permite o controle na liberação dessa droga é o
contato elétrico do polímero com uma fonte de energia,
seja uma pequena bateria ou um chip. “Daí nós
lançamos um sinal para o polímero, que se expande
e contrai, aumentando ou diminuindo o tamanho do revestimento do
poro do hidrogel e assim liberando o medicamento que está lá dentro”,
relata Faria.
Como esse sinal elétrico pode ser controlado automaticamente,
o paciente recebe sempre a dose adequada do medicamento, mantendo
o nível deste no sangue sempre acima do mínimo para
ser efetivo e abaixo do máximo, quando pode se tornar tóxico
(veja gráfico nesta página). “É como
um soro de hospital, em que as gotas caem sempre a uma velocidade
determinada para que o nível do medicamento se mantenha
adequado ao paciente. Mas, com esse aplicativo em miniatura, o
paciente não precisa ficar deitado na cama nem ter uma enfermeira
sempre controlando o soro”, propõe Faria.
Faria e sua orientadora, Susana Torresi: técnica pronta
para ser utilizada Aplicativo multiuso – Os sistemas de liberação
controlada de medicamento já são conhecidos no mercado,
principalmente pelas mulheres, que utilizam desde adesivos cutâneos
até dispositivos intra-uterinos, para aplicação
de anticoncepcionais por tempo prolongado. Mesmo o hidrogel já é utilizado
desde 1960, em sistemas de liberação controlada para
insulina. A diferença do novo sistema concebido por Faria é sua
versatilidade de uso e seu baixo custo de produção. “Os
sistemas que existem no mercado funcionam apenas com uma velocidade
de liberação já programada. Este pode tanto
funcionar assim como ser ajustado de acordo com o organismo de
cada paciente, liberando mais droga quando for preciso e interrompendo
a liberação quando não for necessário”,
ressalta.
Apesar de ter sido produzido em pequenas cápsulas para aplicação
subcutânea, o sistema pode ser produzido em qualquer tamanho,
de acordo com a dose do medicamento e o tempo de duração
do tratamento. Sua estrutura permite ainda a aplicação
de qualquer droga, ao contrário dos sistemas já encontrados
no mercado, que só funcionam com insulina. “Como é primordialmente
um sistema de liberação de moléculas, poderia
ser utilizado até em outras áreas, como dispositivo
de liberação de agrotóxicos em plantações
de forma controlada ou mesmo para aplicação de essências”,
afirma Faria.
O pesquisador também propõe a acoplagem do seu sistema
químico a um biossensor que, aplicado no organismo, reconhece
o momento necessário para a liberação do medicamento. “Esse
uso pode ser muito útil no caso da diabete, já que
a aplicação da insulina depende do nível de
glicose no sangue. Um biossensor de glicose, como os que já existem
no mercado, pode ser acoplado ao sistema liberando a insulina de
acordo com o nível da substância no organismo do paciente”,
explica Faria.
Com a possibilidade de diversos usos, Faria não tem dúvidas
de que seu sistema terá espaço garantido no mercado.
Segundo ele, grande parte dos investimentos da indústria
farmacêutica está concentrada em sistemas de liberação
controlada. “Nesta era de genéricos, a fórmula
do medicamento não é mais um diferencial. A novidade
está no meio de aplicá-la no organismo. Por isso
vejo uma grande possibilidade de retorno financeiro ao nosso laboratório
e à USP com esta invenção”, prevê.
Com uma novidade promissora em mãos, Faria busca agora patenteá-la
para defender sua descoberta e garantir os direitos sobre sua comercialização. “A
união desses materiais neste sistema é inédito
e não queremos perder a posse desta invenção,
que é fruto de árduo trabalho”, explica.
Mas, antes de chegar às farmácias, o aplicativo tem
de passar por diversas etapas de teste, inclusive testes in vivo
(em seres vivos) já que durante sua pesquisa foram realizados
apenas testes in vitro (no laboratório). “Nós
desenvolvemos a etapa inicial do sistema. Estamos cientes de que
este é o caminho para que outros pesquisadores se interessem
pelo projeto e o levem adiante, seja fazendo testes com outras
substâncias, seja realizando os testes necessários
para chegar à indústria farmacêutica”,
diz Faria.
O sistema foi proposto a Faria por sua orientadora, a professora
Susana Córdoba Torresi, do Instituto de Química da
USP. “Eu ia fazer um estudo em outra área, algo que
já vinha desenvolvendo na minha iniciação
científica. A professora Susana me deu um artigo falando
sobre o assunto e propôs uma pesquisa que abriria novos caminhos
no laboratório, e eu aceitei.”
No gráfico acima, vê-se a diferença entre os
métodos convencionais
de aplicação de medicamento, como vacinas e pílulas,
e o novo sistema projetado pelo pesquisador Luiz Marcos de Lira
Faria. No gráfico de cima, há uma grande oscilação,
causada pelos métodos mais conhecidos, no qual o medicamento
demora a entrar na corrente sanguínea
e resulta em grandes picos no nível da droga no sangue a
cada dose
tomada. Já no gráfico de baixo, o método de
aplicação controlado
através de sinais elétricos resulta em uma constante
liberação da
droga no sangue e, conseqüentemente, produz estabilidade no
nível de medicamento e maior tempo de ação
do tratamento. “Este sistema foi elaborado para que o paciente
mantenha sempre um nível adequado do medicamento no sangue
e com isso possa tomar o mínimo de doses
possível. Isso facilita a vida de todo paciente e garante
que haja
também o mínimo possível de efeitos colaterais”,
explica Faria.
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