Enfim, a casa velha da ponte, desenhada
entre versos e contos. É como se, de repente, Cora Coralina
fosse abrir a janela. E convidar:
“Entre moça, não fique parada aí.” Um
convite doce, com o sabor das frutas cristalizadas que ela preparava
com suas mãos laboriosas nos tachos de cobre, as mãos
goianas ocupadas a cozer e coser. E, como dizia Cora: “Abertas
para dar, ajudar, unir e abençoar”.
É assim que Goiás, igual às Estórias
da casa velha da ponte, salta das páginas. E se desenha
bonita e imponente. A antiga Vila Boa, capital do Estado de Goiás,
fundada em 1727, terra dos índios Goyazes.
A primeira visão de quem chega na cidade é a do rio
Vermelho, afluente do Araguaia, cantando sob a chuva. Uma voz que
acalenta os sonhos da cidade de preservar sua história e
ser bonita para sempre. “Nossa Goiás não pode
ser chamada de Goiás Velho, como ficou conhecida”,
protesta o historiador Hecival Alves da Costa. “A nossa cidade
nasceu com a redescoberta do ouro pelos bandeirantes. Foi capital
de 1749 até 1937, quando o governo se mudou para Goiânia.”
Hecival, como todos os vila-boenses, se
orgulha de Goiás
ter sido tombada pela Unesco, em 2001, como patrimônio histórico
da humanidade. “Agora nossa Goiás é para sempre
a menina-moça da história.”
Goiás mocinha, com todo o encanto das ruas de pedra, dos
lampiões das casas caiadas de branco, azul, amarelo, verde...
Goiás que ficou famosa nos textos de Cora Coralina e nos
quadros de Goiandira Ayres do Couto.
No poema “Minha cidade”, Cora lembra e se apresenta:
Goiás, minha cidade...
Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
umas das outras.
Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
Pela janela – Goiás da gente hospitaleira que espia
o dia espreguiçar à tarde pela janela. Gente com
pensamento longe e olhar saudoso. “Posso tirar uma foto,
dona?”, pergunto com cuidado. “Pode, sim, moça.” Não é preciso
nem enquadrar. O retrato tem a moldura certa da janela, feita pelos
troncos serrados no tempo dos escravos. “Eh, moça.
Essa foto vai contar o dia mais triste da minha vida. Enterrei
meu marido ontem.”
Dona Nilza, de 83 anos, faz questão de contar sua história: “Agostino
Manocci sempre foi daqueles italianos fortes. Trabalhou no comércio,
fazia um pouco de tudo. Eu não me conformo. Ele morreu sem
nenhum aviso. Foi embora da minha vida como chegou. Ficamos casados
54 anos. Meu consolo é que tenho uma filha”.
“Cora também gostava de ficar observando o movimento
da cidade pela janela”, conta Marlene Gomes de Velasco, historiadora
e presidente da Associação da Casa de Cora Coralina.
Daí o carinho de um artista anônimo de Pirinópolis,
que esculpiu o busto da poetisa para que ela continuasse olhando
a paisagem, dizendo “bom dia”, “boa tarde”.
No conto Procissão das almas, a escritora conta: “Antigamente,
as boas casas de Goiás tinham janelas de rótulas,
como tiveram todas as cidades coloniais deste imenso Brasil. Em
Goiás, elas sobreviveram por mais de dois séculos.
Sobrevivem ainda com velhos costumes domésticos, que vão
se diluindo através das gerações, ao tempo
que as rótulas se modificam, sem desaparecer de todo...
Movendo trincos, pinos e tramelinhas era que a gente da casa via
o pequeno mundo da cidade e tomava conhecimento de seus moradores”.
Mas o de que Cora não gostava era o diz-que-diz e o cuidar
da vida alheia. “Cada rua tinha sua observadora devotada à tarefa,
tecendo sua teia laboriosa de conclusões e que, fora da
rótula, era moralista feroz e impiedosa com os pecados do
próximo, vizinho ou não”, escreve no mesmo
conto.
Há quem conte que foi esse moralismo que fez com que Aninha
fosse embora da cidade. Em 1911, conheceu o advogado Cantídio
Tolentino Bretas, divorciado, e, para os padrões da época,
moça de família tinha que se casar com homem solteiro.
Aninha deixa Goiás para morar em Jaboticabal, interior de
São Paulo, onde nasceram seus seis filhos: Paraguaçu,
Jacinta, Cantídio, Vicenza, Enéias e Ísis. “Nos
seus escritos Cora não diz que fugiu de Goiás, como
lembram as más línguas. Fala que se casou e foi embora
de Goiás com o seu marido”, explica Marlene. “Enfrentava
os comentários dizendo que Cantídio era seu marido
e se considerava casada. Quando ele ficou viúvo, o casamento
foi oficializado. Ela sempre aconselhava: toda mulher tem que se
casar e obedecer ao marido.”
Foi por obedecer ao marido que Cora deixou de se integrar à Semana
de Arte Moderna de 1922, a convite de Monteiro Lobato. E ela escrevia
poemas sobre coisas simples do cotidiano desde 1903. Teve seu primeiro
livro publicado aos 76 anos e tinha quase 90 quando seu talento
passou a ser reconhecido. Começou a ficar famosa em 1980,
quando Carlos Drummond de Andrade se deparou com os seus poemas
e histórias e passou a divulgá-los.
No dia 14 de julho de 1979, Drummond escreveu: “Não
tendo o seu endereço, lanço estas palavras ao vento,
na esperança de que ele as deposite em suas mãos.
Admiro e amo você como a alguém que vive em estado
de graça com a poesia. Seu livro é um encanto, seu
lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais.
Ah, você me dá saudade de Minas, tão irmã do
teu Goiás! Dá alegria na gente saber que existe bem
no coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina”. Pelas ruas – Um coração que, com o tombamento
pela Unesco, passou a ser imortal. E toca o coração
do visitante. É só atravessar devagar a ponte secular
de madeira e num instante vem a sensação boa de estar
chegando em casa.
O pão de polvilho, o cheirinho bom de café, coado
sempre na hora (e no coador de pano), o limãozinho cristalizado
com doce de leite. Um bem-querer que tempera o feijão de
Ana Maria Peres, proprietária do restaurante Braseiro, no
centro da cidade. “Quantas e quantas vezes Cora mandava buscar
o meu feijão. Ela sempre dizia que eu tinha que procurar
fazer sempre o melhor, como tudo na vida. Parece que vejo Cora
na minha frente aprovando: ‘Olha, Ana, tempero não é técnica,
tempero é mão’.”
O encanto pelo fogão se deve aos doces que dona Ana, bem
menina, furtava da janela de Cora. Mas como resistir às
frutinhas expostas ao sol para secar? “Eu era vizinha dela. Éramos
11 irmãos. Quando ela estava cozinhando, levantava aquele
cheiro gostoso. Não tinha como evitar a traquinice. Mas
ela já estava acostumada. Brigava com a molecada, mas também
gostava muito de conversar, de aconselhar. Repetia que ler era
muito importante.”
Um encanto e incentivo que fizeram dona Ana dividir seu talento
com os cuidados com o marido, filhos e, agora, os netos que estão
vindo, a zelar pelo restaurante com porta na praça e também
a se dedicar como professora. “Qual a receita de tanta luta? É a
vida quem ensina. Mulher vila-boense é matriarca. Tem cultura
e espírito forte.”
Foi essa luta característica das mulheres da cidade que
fez Aninha ou Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, iluminar
Cora Coralina. A menina que saiu de Goiás mocinha e voltou
de cabelos brancos, para contar as histórias da casa velha
da ponte:
Minha casa velha da ponte... assim a vejo
e conto, sem datas e sem assentos. Assim a conheci e canto com
minhas pobres letras. Desde sempre. Algum dia cerimonial foste
casa nova, num tempo perdido do passado, quando mãos escravas a levantaram em pedra,
madeirame e barro. Esquadrejaram tua ossatura bronca, traçaram
teus barrotões na cava certa e profunda dos esteios altos,
encaixaram teus linhamentos, cumeeiras, pontaletes, freixais, arrochantes
e empenas, duras aroeiras, lavradas a machado, com cheiro de florestas,
arrastadas em carretões de bois.
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