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Escrevo este artigo por vários motivos, porém três fatos me fizeram pensar em sua urgência. O primeiro deles foi meu contato direto com alunos estagiários de cursos de Licenciatura em Matemática. Os relatórios referentes às suas experiências e observações, em escolas públicas e privadas do ensino básico, no Estado de São Paulo, ao longo dos últimos cinco anos, têm trazido cenas estarrecedoras quanto à formação de alunos e professores, em todas as áreas do saber.

O segundo fato que despertou minha ânsia por este compartilhar de idéias foram os resultados de exames a que nossos jovens vêm sendo submetidos e, particularmente, os resultados em matemática. Nos últimos anos, apesar do crescente aumento no número de matrículas nos ensinos fundamental e médio no País, temos verificado que alguns exames nacionais (Enem, Saresp, Saeb e outros) e internacionais apontam para desempenhos dramáticos dos alunos. Nossos estudantes, além de não adquirirem habilidades de leitura e interpretação, apresentam desempenho sofrível quanto à resolução de problemas simples. Outros estudos, como Letramento no Brasil – Habilidades matemáticas: reflexões a partir do INAF 2002, de M. Fonseca, apontam para grandes dificuldades da população brasileira em fazer uso de seus conhecimentos matemáticos em situações cotidianas (o que a autora chama de baixo índice de alfabetismo funcional, ou letramento, quanto às habilidades matemáticas).

Finalmente, a terceira motivação foi sugerida por uma frase de Paulo Freire, encontrada no livro didático Matemática aula por aula (Barreto Filho & Silva, FTD, 2000), segundo o qual “a educação é um ato de amor e, portanto, um ato de coragem. Não pode temer o debate, a análise da realidade; não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”. Como educadora, e com as duas razões anteriores em mente, essa frase se tornou quase que uma provocação e acredito que o deveria ser também para outros educadores que, como eu, ainda vêem alguma chance de transformação do País por essa via.

Polícia na escola – Começo por compartilhar com o leitor alguns fatos relatados por meus estagiários, ocorridos em escolas públicas e privadas, principalmente dos segundo e terceiro ciclos do ensino fundamental e no ensino médio, somente no ano de 2006.

Não é novidade que a violência nas escolas seja um dos principais problemas apontados pelos professores de nossa educação básica, mas esta não fica restrita aos bairros de periferia de escolas públicas, como muitos poderiam supor, e ocorre de formas sutis e variadas. Um licenciando relatou, por exemplo, que na escola pública em que estagiava, no curso noturno, as aulas somente aconteciam se houvesse um policial militar fazendo ronda nas salas, devido ao grande temor dos professores para com as atitudes dos próprios alunos. Não se tratava de medo de bandidos e traficantes externos à escola, mas daqueles que, teoricamente, deveriam ver ali um local de grandes oportunidades de formação cidadã e de respeito mútuo para com os profissionais da educação, os quais oferecem sua ajuda para ampliar tais possibilidades.

Em visita a uma escola pública da região central da cidade de São Carlos, no interior do Estado, em um projeto de colaboração com a USP, eu mesma constatei a depredação constante sofrida pelo patrimônio público da escola, como outra forma de manifestação dessa violência. Houve uma data em que as aulas tiveram que ser suspensas, porque alguns alunos arrancaram todas as torneiras do banheiro e, tendo-se esgotado a água dos reservatórios, a diretora se viu obrigada a dispensar todos os estudantes naquele dia. Adicionem-se a isso os relatos dos estagiários de que muitas aulas deixavam de ser cumpridas pelas ausências dos professores, por reuniões da própria escola ou por interferência da direção, para resolver problemas burocráticos com alunos e professores, durante os horários em que deveriam estar aprendendo e ensinando. São altas taxas de aulas perdidas, somadas às faltas dos estudantes.

As portas das salas de aula dessa mesma escola não têm fechaduras e nem trincos que lhes permitam se manter fechadas, porque simplesmente foram arrancados pelos alunos (há escolas em que as salas nem têm portas!). Desse modo, todos os ruídos externos às salas, dos corredores e das ruas, também dificultam o trabalho dos seus professores e frustram qualquer tentativa de aprendizagem. Um armário onde se guardavam calculadoras doadas pelo projeto de parceria foi arrombado e estas desapareceram, como que por encanto. Outros materiais, como vídeos, TVs e acessórios de computadores também foram furtados em várias ocasiões, nessa mesma escola pública.

Em outra delas, dois alunos lançaram uma carteira pela janela abaixo, do segundo andar do prédio, enquanto os estagiários e o professor estavam presentes, e a direção se limitou a lhes dar uma leve advertência oral, sob a alegação de que o Estatuto da Criança e do Adolescente não permite que algo mais possa ser feito. Então, concluímos que deve haver algo nesse estatuto que impede que eduquemos nossas crianças contra a depredação do patrimônio público!

Nas escolas particulares – Em escolas privadas, a violência parece ocorrer de formas mais sutis, através de hostilidades preconceituosas e ataques de ordem moral. Foram relatados dois casos em 2006, os quais me chamaram mais a atenção: em uma das escolas, os alunos “assistiam” às aulas com fones de ouvido e aparelhos eletrônicos ligados, ouvindo música (alguns, em alto volume), enquanto os professores tentavam ensiná-los. Em outra escola, uma estagiária negra foi completamente hostilizada pelos alunos, a ponto de esse fato desencadear uma briga dentro da classe, entre dois grupos de estudantes que discordavam entre si sobre essas atitudes. Porém, o mais lastimável nesse episódio foi a postura do professor da turma, que ignorou completamente a violência moral praticada e disse à estagiária que tudo aquilo “era normal”. Talvez fosse normal para uma educação falseada, mas não para aquela que pretende formar cidadãos criativos, respeitosos e transformadores de nossa sociedade para algo melhor.

Outros relatos muito interessantes dos estagiários se referem à qualidade do ensino que se tem praticado nas escolas públicas paulistas (ao menos na maior parte das que eles visitaram). Podemos afirmar que em cerca de 70% dos relatórios, nos últimos cinco anos, há denúncias de ausência completa de qualidade no ensino de matemática. Ou seja, pelo menos nesses casos, as condições que favoreceriam a aprendizagem dessa disciplina inexistem ou são mínimas, e apenas aprendem alguns poucos alunos que fazem um esforço pessoal independente para isso (os 5%, 10% que geralmente se sentam nas primeiras carteiras e realizam as atividades solicitadas pelos professores). Houve uma narrativa emocionante sobre o caso de uma escola pública de ensino supletivo, para o qual se constatou que os alunos ali presentes não aprendiam absolutamente nada (ou, pelo menos, nada além do que a vida exterior à escola já não lhes tivesse ensinado).

Mesmo em várias escolas particulares, cujas mensalidades não são nada irrisórias, onde os pais confiam que estão promovendo uma formação pedagógica mais adequada para seus filhos, coisas estranhas acontecem: professores que corrigem tarefas de outras séries enquanto dão aulas em uma sala e deixam seus alunos “trabalhando” à vontade. Alunos que lêem revistas de novelas ou mulheres nuas ou “fazem as unhas” enquanto “estudam” na escola.

Outra questão interessante trazida pelos estagiários, especialmente para o caso da aprendizagem em matemática, foi que tanto em escolas públicas quanto privadas a maioria dos estudantes ficou de recuperação nessa disciplina. Presenciaram ameaças aos professores de algumas escolas privadas, para que lhes fossem facilitadas as notas, e o escárnio dos alunos das escolas públicas estaduais, já que estas praticam o sistema de progressão continuada de uma série a outra, o que, para esses alunos de recuperação, faz-se ler: “Não vou fazer nada, porque você não pode me reprovar”. Estudantes que se recusavam a se dedicar a qualquer atividade também foram observados em várias escolas privadas.

Parece-me que a falta de qualidade no ensino não está ligada, necessariamente, à falta de recursos e investimentos na educação. Muitos estagiários relataram que, mesmo em várias escolas públicas, viam a existência de livros, de salas de computadores, de recursos multimídia e de investimentos públicos em cursos de formação de seus professores. No entanto, a maior parte desses recursos não é utilizada. A frase do estagiário, a seguir, é característica para o caso do ensino de matemática nas escolas básicas: “A professora conhece o assunto tratado, porém me parece que não tenta abordá-lo sob novas perspectivas. Ela simplesmente ‘passa’ aquilo que já sabe fazer. Os exemplos são os mesmos, sempre aqueles que a gente já está acostumado a ver. Não há um comprometimento com mudanças, para que os alunos se sintam atraídos e interessados em aprender”.

Mínimo necessário – Esses relatos mostram um quadro de ensino dessa disciplina que se resume a uma rotina massacrante de exercícios e regras memorizadas, mais regras e mais exercícios, todos refletindo padrões e modelos já executados por seus professores. Além disso, os conteúdos programados não são cumpridos em muitas turmas ou, quando cumpridos, o são às expensas de simples memorização e de um tecnicismo sem significado, que se perdem no mês seguinte.

Somem-se a esses relatos alguns outros fatos sobre a educação brasileira e suas políticas públicas que temos observado em nossas vivências acadêmicas, como falas constantes de muitos professores do ensino básico de que não acreditam no potencial de aprendizagem de seus alunos, ensinando-lhes sempre “o mínimo necessário”, porque, segundo esses professores, “eles não vão aprender mesmo”. Outros estão completamente desmotivados com a carreira e, embora façam vários cursos de formação continuada, não acreditam nos mesmos para a transformação de suas aulas. Fazem-nos para obter alguma melhoria salarial, mas não acreditam que as teorias da educação, geralmente priorizadas nesses cursos, que se distanciam de suas práticas e do contexto de suas escolas, lhes sirvam para alguma coisa.

Finalmente, uma conseqüência de todos esses problemas da educação básica é que tenho acompanhado, dentro das universidades e outras instituições de ensino superior, a formação de uma cultura de estudantes que se recusam a assistir à maior parte das aulas, porque passam a acreditar que elas não lhes ajudarão em nada para sua formação profissional. Se alguns desses, ao menos, conseguissem estudar autonomamente, isso poderia ser até um fator interessante, evitando o paternalismo excessivo que vemos, ainda, em nosso ensino. O grande problema é que muito poucos conseguem uma disciplina de estudos independentes e boa parte deles não valoriza essa formação como uma oportunidade de profissionalização real, mas apenas como a chance de obtenção de mais um diploma, para facilitar seu acesso aos empregos.

Sobre a questão do diploma, pesquisas mostram que há taxas de retorno financeiro para cada ano adicional de estudos e a população sabe por que quer ensino superior para seus filhos. Resta pensarmos se ela sabe que qualidade de ensino quer e de que ensino necessita, para garantir acesso real à melhoria de suas condições de vida. A ampliação exclusiva de números de acesso ao ensino superior e, dos números gerais de nossa educação, não garantirá que haja pessoas mais preparadas para o mercado, que sejam capazes de enfrentar, de fato, os desafios sociais do nosso século, se essa mesma educação finge ser o que não é.

Com esse quadro obscuro, somado a baixos salários, quem quer ser professor? Quando poderemos transformar essa perspectiva de um país condenado à farsa de uma educação que faz números, mas não educa verdadeiramente?

Sem dúvida, existem tentativas isoladas de melhoria do ensino público por parte de algumas universidades brasileiras (como um projeto do Instituto de Estudos Avançados (IEA) de São Carlos, por exemplo), e algumas escolas que conseguem bons resultados de ensino e aprendizagem por esforço próprio, de seus professores, diretores e comunidades. Porém, várias pesquisas sérias que são feitas nas mesmas, sobre as práticas escolares, têm sido desprezadas pelo poder público e não atingem políticas públicas para as transformação necessária da realidade da maior parte das escolas brasileiras.


“Talvez os membros da comunidade acadêmica devessem mudar suas posturas para algo mais ativo, em termos de propostas concretas aos nossos governantes e também na comunicação com a sociedade, sobre possibilidades reais para nossa educação”

Ação da academia – Deixo aqui registradas minhas angústias, como alguém que deseja contribuir para mudanças reais na educação brasileira, mas sabe da impossibilidade de alterar esse quadro isoladamente, sem um esforço coletivo dos grandes pensadores deste país, de homens e mulheres que trabalham para o bem comum e de professores do ensino básico, que poderiam fazer toda a diferença se unissem forças nessa empreitada.

Como fazer isso? Em primeiro lugar, talvez os membros da comunidade acadêmica devessem mudar suas posturas para algo mais ativo, em termos de propostas concretas aos nossos governantes e também na comunicação com a sociedade, sobre possibilidades reais para nossa educação. Em segundo lugar, como afirma a professora Sonia Penin em artigo recente, “a universidade deve engajar-se para atuar, mais intensamente, junto aos professores e alunos da educação básica, especialmente no ensino médio”, num esforço coletivo de propor políticas públicas para alterar os resultados lastimáveis que verificamos em índices de avaliação escolar de nossos jovens, os quais ainda nos colocam na lanterna mundial em matemática, ciências e no domínio da língua. Isso, sem dúvida, traria conseqüências imediatas para o nível de aprendizagem de estudantes de nosso ensino superior e, a longo prazo, traria reflexos em nosso potencial de pesquisa e de desenvolvimento tecnológico, o que é de grande interesse dos meios acadêmicos.
Ficam, então, as questões: quantos de nós, acadêmicos de grandes universidades do Brasil, faremos esse esforço coletivo para deixarmos de ter uma educação que finge? Será que devemos esperar eternamente pelas decisões exclusivas de nossos governantes e burocratas sobre essa questão? Para o momento, há uma única resposta certa: nenhum herói descerá dos céus e o fará por nós.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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