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Em poucas semanas, São Paulo poderá lembrar o primeiro aniversário dos ataques promovidos pela facção criminosa que domina os presídios do Estado, e cujos desdobramentos levaram à morte de dezenas de pessoas em maio do ano passado. Na época, foram muitas as propostas que surgiram ou foram desengavetadas no Congresso Nacional como “resposta” à ação criminosa. Os mesmos clamores voltaram a ecoar no parlamento após o brutal crime contra o menino João Hélio, arrastado até a morte por bandidos que roubaram o carro de sua mãe, em fevereiro, no Rio de Janeiro.

Nos últimos meses, vários projetos sobre criminalidade e segurança pública foram aprovados, enquanto dezenas de outros aguardam na fila. Para estudiosos ouvidos pelo Jornal da USP, entretanto, a maioria deles não terá grande impacto na vida da população. “Para começar a pensar em soluções, não é necessário mudar lei nenhuma. Isso pode até ajudar, mas muitas coisas poderiam ser resolvidas simplesmente cumprindo as leis que existem”, diz Paulo de Mesquita Neto, doutor em Ciência Política pela Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, e coordenador da área de Monitoramento de Direitos Humanos do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. “Quando os congressistas fazem leis, não se preocupam com sua implementação nem em saber se o Judiciário, os presídios e as instituições para adolescentes terão estrutura e recursos para agüentar o impacto que elas provocam.” Para o especialista, falta análise não só do que é viável, mas também dos resultados daquilo que é implementado.

A opinião é compartilhada por Eduardo Reale Ferrari, professor da área de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP. “O Congresso acaba estabelecendo uma legislação esdrúxula, pontual e sem visão sistêmica dos problemas. Uma legislação malfeita tem conseqüências graves”, diz. O professor – neto do jurista e ex-reitor da USP Miguel Reale – afirma que a prática dos parlamentares de aprovar projetos a partir de casos de grande repercussão, como o de João Hélio, não produz mudanças concretas. “Em toda a década de 1990, no segundo semestre de anos eleitorais, tivemos a aprovação de leis extremamente rigorosas. O resultado? Nenhum. As leis por si só não resolvem nada.” Para o professor, poucos períodos na história brasileira produziram leis tão ruins quanto a década passada. Também não saiu do papel, lembra, a propalada “reforma do Judiciário”.

“Investigação pífia” – Em relação aos projetos que tramitam no Congresso, Reale Ferrari diz que o mero endurecimento da lei penal não diminui a criminalidade – “Experiências no mundo inteiro demonstram isso”, diz –, mas concorda que é necessário aumentar o tempo de cumprimento da pena. Outros projetos propõem simplificações no Código de Processo Penal. “Pode-se diminuir o número de recursos, mas não é isso que atravanca os processos”, pondera. Para o professor, o principal problema está na “investigação pífia”. “Uma investigação bem-feita dá condições para um bom trabalho posterior. O dramático é que a Polícia finge que investiga, e isso passa uma sensação de impunidade”, afirma, lembrando que 97% dos crimes de morte no Brasil ficam sem autoria conhecida.

O professor também recorda que, entre 1890 e 1940, permitiu-se que os Estados criassem diferentes Códigos de Processo Penal. Pela lógica, cada Estado adaptaria a legislação a suas condições e seus problemas. Na prática, o que aconteceu foi que alguns copiaram o que os outros criavam. A proposta volta à tona hoje, principalmente a partir da reivindicação do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho (PSDB). “Será que cada Estado vai fazer sua legislação específica? Se for para copiar Rio e São Paulo, não é necessário fazer a mudança”, diz Reale Ferrari, para quem, ainda assim, a proposta deve ser mais bem estudada. A unificação das Polícias, que estava englobada no mesmo projeto do senador Tasso Jereissati (veja quadro abaixo), poderia ser feita em etapas, com passos como a integração dos futuros policiais militares e civis já nos mesmos bancos das academias de formação.

Entre os problemas que o Judiciário enfrenta e que não são considerados pelos legisladores, diz Reale Ferrari, estão as carências administrativas da Justiça. “Falta gestão. O juiz está preparado para aplicar a lei, não para administrar o fórum”, diz. É necessário também diminuir a distância entre os operadores do Direito e a comunidade. Por isso o professor critica a recente decisão do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo de transferir, a partir de abril, as atividades da Terceira Vara do Júri do Fórum de Santo Amaro para a Barra Funda. “A Justiça tem que estar mais próxima. Assim se faz prevenção e se economiza mais tarde. Isso não implica mudança de um código, mas de uma mentalidade.”

Teia de aranha – A partir de seus estudos e pesquisas, além dos contatos com órgãos públicos, do governo e da sociedade, a Universidade poderia ajudar os legisladores a formular leis e políticas mais eficientes, inclusive apontando modelos que deram certo – ou não – em outros países. Para Paulo de Mesquita Neto, do NEV, o Legislativo, entretanto, é o poder que tem menos articulação e interação com a academia e o que menos valor dá ao aporte técnico que as universidades podem dar. Um exemplo é o projeto do Fundo de Assistência às vítimas, que o pesquisador aponta como importante. “Há programas de atendimento em outros países que nós conhecemos, e com base neles poderíamos estudar como implementar aqui”, diz.

Assim como Reale Ferrari, Mesquita Neto critica a postura do Congresso de atuar a reboque de crises ou casos dramáticos – como a tipificação do crime de tortura a partir do assassinato de um trabalhador na Favela Naval, em Diadema, em 1997. “De lá para cá, o indiciamento e a condenação por crime de tortura são praticamente inexistentes no Brasil”, revela. Para o pesquisador, muitos dos projetos em pauta “são desnecessários, atacam questões pontuais e não fariam grande diferença”. Exemplo? Qualificar como falta grave o porte de telefone celular na prisão. Além de não dotar policiais e agentes penitenciários dos meios para colocar em prática a medida, o projeto não leva em conta que os presos facilmente substituiriam essa forma de comunicação por outra.

Para Mesquita Neto, os setores que criticam as entidades de defesa dos direitos humanos não atentam para o fato de que o trabalho dessas organizações é a favor do bom funcionamento da Polícia e da Justiça, “e não de proteção aos bandidos”. “Bom funcionamento significa ver o agressor responsabilizado. Hoje a vítima não vê, e isso não se deve à falta de leis mais duras nem aos movimentos de direitos humanos, mas sim à incapacidade do Estado de aplicar as leis”, afirma. É fundamental para o Estado contar com a colaboração da população, principalmente para registrar as ocorrências, testemunhar e fornecer informações. Quando a organização estatal é deficiente e age com base em violência e corrupção, perde a confiança da população e conseqüentemente a sua colaboração.

A mudança das leis ao sabor dos acontecimentos e pressões momentâneas leva a que o sistema legal se assemelhe a uma colcha de retalhos, diz Mesquita Neto. “O sistema precisa ser mais estável e permanente, com regras que possam ser conhecidas e assimiladas por todos, desde a população até quem tem que cumpri-las, como policiais, promotores e operadores do Direito.” As mudanças freqüentes dificultam essa compreensão e também a implementação das medidas.

Mais até do que a constitucionalidade, entretanto, é preciso se preocupar com a efetividade das normas, diz o professor de Direito Penal Eduardo Reale Ferrari. “A impunidade é fruto de uma não eficiência das normas que já existem. Quanto mais a sociedade verifica que as normas não são cumpridas, maiores a descrença e a sensação de impunidade”, diz. Num país tão desigual, em que a punição leva em conta o andar que o cidadão ocupa na pirâmide social, o quadro fica ainda mais agravado pelo que disse o professor Roberto Romano, em recente entrevista ao Jornal da Unicamp: “Poucos recordam que a própria lei, como diz Diógenes, o filósofo, é uma teia de aranha que prende os fracos, mas não segura os fortes e poderosos”.


Mais penas, menor idade

Conheça a seguir alguns dos principais projetos a respeito de criminalidade e segurança pública aprovados recentemente ou ainda em debate no Congresso Nacional:

Quadrilhas com menores – Integrantes de quadrilhas ou bandos armados que utilizarem menores de 18 anos em ações criminosas terão as penas dobradas. Pelo Código Penal, formação de quadrilha estabelece reclusão de um a três anos. Projeto aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, segue agora para plenário.

Crime organizado – Projeto tipifica “organização criminosa” como a associação de três ou mais pessoas, caracterizada pela divisão de tarefas, que busca vantagem mediante a prática de crimes como tráfico de drogas, terrorismo, seqüestro, contrabando de armas ou crimes contra a administração pública, entre outros. Aprovado na CCJ do Senado, segue para votação na Câmara.

Videoconferência – Interrogatórios e audiências dos quais participem o juiz, o acusado preso e seu advogado poderão ser realizados por videoconferência, sem necessidade de deslocamento do preso. Aprovado na CCJ do Senado, segue para sanção presidencial.

Regime diferenciado – Projeto cria o Regime Penitenciário de Segurança Máxima (RDD Max) para presos envolvidos com organizações criminosas. O regime disciplinar diferenciado restringe os direitos dos presos considerados mais perigosos. Projeto que amplia de um para dois anos (prorrogáveis) o prazo de aplicação do RDD Max está na CCJ da Câmara.

Fundo para as vítimas – Familiares de vítimas da violência e agentes do poder público envolvidos no combate à criminalidade serão auxiliados com recursos financeiros. Fundo será composto por receitas arrecadadas com leilão de bens apreendidos do crime organizado (75%), arrecadação do Imposto de Renda (5%) e do Orçamento da União (20%). A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) foi aprovada na CCJ do Senado e, após promulgação, comissão especial deve ser instalada para, em 90 dias, elaborar projeto de lei complementar que regulamentará o fundo.

Delação premiada – Projeto estende o benefício de redução de pena aos presos que colaborarem com investigação policial ou processo criminal. Está em análise na CCJ do Senado.

Prescrição retroativa – Projeto aprovado na CCJ do Senado estabelece que, depois de transitar em julgado a sentença condenatória, a prescrição “regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da publicação da sentença ou acórdão”. Texto segue para plenário.

Crimes hediondos – Regime de progressão de pena para os condenados por crimes hediondos fica mais rígido. Presos só terão direito a progressão após o cumprimento de dois quintos da pena em regime fechado, em vez de um sexto. Aprovado no Senado, projeto segue para sanção presidencial.

Autonomia dos Estados – Senador Tasso Jereissati (PSDB/CE) retirou da pauta na semana passada a PEC, apresentada em 2005, que dá competência aos governos estaduais para legislar sobre segurança pública, incluindo unificação das Polícias. O senador afirmou que pretende apresentar um substitutivo melhorado.

Maioridade penal – Seis PECs tramitam no Senado. Substitutivo apresentado pelo relator, senador Demóstenes Torres (DEM/GO), é favorável à antecipação da maioridade penal de 18 para 16 anos. Tema estava na pauta da CCJ no final da semana passada, após o fechamento desta edição.


“A dor de perder um filho não tem nome”

Entre 1993 e 2003, 325 mil pessoas morreram vitimadas por armas de fogo no Brasil. As estatísticas, porém, não traduzem a dor e o sofrimento de famílias como a do menino Ives Ota – seqüestrado e morto em 1997 pelos seguranças contratados pelo próprio pai do garoto (dois PMs envolvidos) – ou de Tainá Alves de Mendonça, morta no Dia dos Pais de 2002, aos 5 anos de idade, por um tiro disparado numa briga de trânsito na zona oeste de São Paulo.


Rodrigo, morto em 1999

“Você fica viúvo quando perde sua companheira, fica órfão quando morrem os pais, mas perder um filho é tão dolorido que essa dor não tem nome”, diz o administrador de empresas Jorge Damús, 53 anos. Damús começou a se tornar – “infelizmente”, ressalta – um expert em temas de violência e segurança pública a partir do assassinato de seu filho Rodrigo, de 20 anos, em 1999. O jovem, que trabalhava e era estudante de Jornalismo, foi morto por quatro criminosos que queriam roubar seu carro para revender num desmanche e fazer uma festa de aniversário para um deles. Três eram maiores e um estava a três dias de completar 18 anos. Foi justamente o menor que assumiu ter atirado em Rodrigo. “Ele ficou um ano e oito meses na Febem e saiu, está vivendo a vidinha dele. E para o Rodrigo, cova fria de cemitério”, diz Damús. Os outros criminosos foram condenados a 22 anos de reclusão, mas após recurso a pena caiu para 19 anos.

Ao lado de outros familiares de vítimas da violência, Damús fundou o Movimento de Resistência ao Crime, que defende a realização de um plebiscito para a redução da maioridade penal no Brasil, restrita aos menores de 18 anos que praticarem crimes graves, como homicídio, seqüestro ou estupro. “Queremos separar: aquele que comete crime grave tem que responder como adulto”, diz. “Toda inclusão social que se possa fazer no País vai inibir as pessoas de ir para a criminalidade. Temos que recuperar esses meninos, porque hoje estamos fabricando criminosos de alta periculosidade.” Veja a seguir os principais pontos do depoimento que Damús concedeu ao Jornal da USP:

“A partir da tragédia que aconteceu com minha família, quando perdemos o Rodrigo, e que eu não desejo nem para o meu pior inimigo, começamos a ter contato com muitos pais e mães que perderam seus filhos e criamos um movimento que não iria de forma nenhuma trazê-los de volta, mas trabalharia para minimizar a violência e a impunidade. Poderíamos ficar chorando num quarto escuro pelo resto da vida ou arregaçar as mangas e dizer: não quero que isso aconteça com o filho dos outros. Mas, ao contrário, estamos vendo que as coisas estão só aumentando.

Os crimes de menores estão crescendo assustadoramente porque eles têm consciência da impunidade que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) apregoa. Defendo o plebiscito porque a população tem que ser envolvida nisso, e a decisão deve sair da soberania do povo.

Venho tratando do tema da redução da maioridade, que é muito polêmico, há oito anos. Há 76 países no mundo que têm maioridade penal abaixo de 18 anos. Segundo dados da própria Febem (atual Fundação Casa), se reduzíssemos para 16 anos, atingiríamos 64% dos atos infracionais no geral, e mais de 90% dos atos infracionais violentos e contra a pessoa.

As pessoas me perguntam: você prefere que se construa uma escola ou um presídio? Eu digo: os dois. A educação vem em primeiro lugar, mas aquele que não vive dentro da lei tem que ir para o presídio.

Dizer que basta cumprir as leis que já existem é o discurso do comodismo de sempre. Se não adianta mudar, o que adianta então? Qual a solução? É nossos filhos morrerem nas ruas enquanto parlamentares e juízes andam de carro blindado com seguranças em volta?

Há muitos recursos e brechas na lei. Aí estão os casos do promotor Igor e do jornalista Pimenta Neves, que mataram e estão livres. Nossa indignação é a de Santo Agostinho: não se acostumar com as coisas como são e ter coragem para modificá-las.

Os presos que recebem indulto têm cinco datas comemorativas para passar com as famílias: dias dos Pais, das Mães, das Crianças, Páscoa e Natal. Os que não têm indulto recebem visita das mães, que choram na fila porque vão ver o filho preso. Agora, para o Rodrigo, para a Liana (Friedenbach), para o Felipe (Caffé), para o João Hélio, só sobrou cova fria de cemitério. Para as famílias, para a minha esposa no Dia das Mães, sobrou levar flores num túmulo.

Tivemos que fazer um esforço tremendo para continuar vivendo, trabalhando e não sujar as mãos de sangue. Eu e muitos familiares de vítimas não vamos desistir dessa luta. Primeiro para honrar o nome de nossos entes queridos que se foram, que eu chamo de ‘república dos inocentes’. Segundo, para que não aconteça com outras pessoas. Terceiro: ainda tenho esperança de que tenhamos um país melhor, com um povo mais participativo, que cobre os seus direitos.

Muitas vezes não dá certo. A luta não é fácil, mas faz com que nossos filhos vivam através de nós. Isso é amor incondicional, sem limites, que transcende até a morte física. Enquanto eu agüentar, vou tocar o barco. Estou cansado de perder, mas tenho esperança de que as coisas mudem, porque não podem continuar do jeito que estão.”

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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