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Hercule Florence – A descoberta isolada da fotografia no Brasil, de Boris Kossoy, Edusp, 412 páginas, R$ 78,00.


Da primeira até esta terceira edição que está sendo lançada pela Editora da USP (Edusp), o livro Hercule Florence – A descoberta isolada da fotografia no Brasil, de Boris Kossoy, percorreu um caminho singular. Em 30 anos, transformou-se num clássico da historiografia da fotografia, surpreendendo pesquisadores de todo o mundo com a apresentação de Hercule Florence e seus métodos de “impressão pela luz”, que resultaram na descoberta independente da fotografia no interior do Brasil, a partir de 1833.

Com sua pesquisa, Kossoy trouxe um questionamento à história mundial da fotografia apresentando um pioneiro que ficou no anonimato durante 140 anos. A menção a Hercule Florence causou forte impacto durante o 1º Colóquio Latino-americano de Fotografia, na Cidade do México, em maio de 1978. “Nos anais desse encontro, nós, que éramos então estudantes de comunicação, encontramos não somente a pesquisa de Florence, mas uma reflexão sobre as maneiras de fazer história”, explica o historiador e crítico José Antonio Rodríguez, que assina o prefácio do livro.

Até então, a história da fotografia estava determinada pelos estudos eurocêntricos. Até o final do século 19, a fotografia era considerada uma ciência francesa, visto que, de suas 48 invenções, 34 eram de pesquisadores franceses. “Reconstruir a história da fotografia possui implicações políticas, sobretudo se a reconstrução se faz a partir dos centros de poder, isto é, a partir das capitais européias ou norte-americanas, as quais criam seus próprios parâmetros de concepção histórica”, observa o historiador Rodríguez. “O deslumbramento diante do livro de Kossoy foi imediato. Essa maneira de ir elaborando passo a passo uma história, da biografia à reconstrução e comprovação das descobertas, além de ir inserindo os documentos visuais recuperados, nos pareceu o método a ser seguido se em alguns momentos pudéssemos reconstruir histórias visuais.”

Rodríguez lembra que o mais surpreendente é que várias histórias mundiais da fotografia, inclusive aquelas posteriores à pesquisa de Kossoy, não mencionavam Hercule Florence. “Por tudo isso, a história desse livro é uma história à parte. Mostra como as histórias opulentas da fotografia, que somente se ocupam dos grandes nomes, escreveram suas histórias particulares eliminando outras.”

Edição ampliada – Com todo o cuidado de um clássico, o livro Hercule Florence ressurge em uma edição primorosa da Edusp, revista e ampliada. “O diferencial é a contextualização devidamente expandida, aspecto que possibilita ao leitor avaliar melhor a época, o lugar e as condições do meio em que Florence viveu, desenvolveu suas atividades como artista plástico e gráfico e levou a cabo suas experiências precursoras”, observa Boris Kossoy.

Na nova versão, o professor esclarece que os documentos iconográficos não se acham mais reunidos no anexo da obra. “Foram distribuídos adequadamente em relação aos textos, o que contribui para uma maior clareza da narrativa. Os manuscritos foram totalmente revisados e completados com textos que escaparam das edições anteriores. Julguei oportuno também incluir a transcrição dos diferentes diários no original francês, na forma como foram escritos por Florence, procurando aproximar o leitor da alma das palavras com que o inventor exprimiu seus conhecimentos e sentimentos, do rumo de suas investigações ao longo de sua vida e, também, das idéias que revelam seu caráter e inquietações.”

Kossoy começou a pesquisar Hercule Florence em 1972 com o objetivo de levantar dados para uma futura história da fotografia no Brasil. Na época, escrevia uma página mensal sobre o assunto no então Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo. “Fiquei sabendo do seu nome através das suas declarações sobre a fotografia, publicadas na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro no ano de 1839”, conta. “Por outro lado, seu nome me era familiar pela sua participação como membro-desenhista da expedição de Langsdorff, a legendária missão que, sob o ponto de vista da ciência e a perspectiva da aventura, percorreu o interior do Brasil entre 1825 e 1829.”

Foi no decorrer dos quatro anos de investigação que Kossoy encontrou Florence como um inventor isolado da fotografia, percebendo a importância da sua contribuição para a história da técnica, da ciência e das artes. “Submetido a precárias condições de trabalho, algumas de suas invenções se desenvolveram numa curiosa reação em cadeia e foram se direcionando, com ausência de recursos de toda espécie, para o desenvolvimento científico.” Kossoy lembra o impasse do desenhista quando decidiu tirar cópias de seu estudo sobre as vozes dos animais e, em 1829, havia apenas uma oficina impressora na então Província de São Paulo. “Viu-se então diante da necessidade de idealizar o seu próprio meio de impressão, fazendo aperfeiçoamentos contínuos. Logo a seguir, buscando sempre por um sistema de reprodução de exemplares, teve a idéia de imprimir pela luz do sol e acabou descobrindo um processo fotográfico.”

O professor não descarta a possibilidade de que outros pesquisadores tentaram desenvolver o mesmo processo de Florence. “De qualquer maneira, o desenhista está entre os pioneiros a tentar desenvolver um novo meio de impressão. Importante lembrar que os detalhes técnicos de sua descoberta foram amplamente divulgados pelo próprio e pode muito bem ter sido apropriada por outros.”

Outras histórias – Ao focar a história de Antoine Hercule Romuald Florence, que nasceu em Nice, na França, no dia 29 de fevereiro de 1804, o livro traz um panorama da história do Brasil. “Ao chegar, em 1824, ele surpreendeu o País com apenas dois anos de vida independente. Avolumara-se o comércio da então colônia americana através da abertura de seus portos, decretada em 1808 pelo príncipe-regente D. João VI, ano em que transferira sua corte às pressas para o Brasil, sob a pressão das tropas napoleônicas que haviam invadido Portugal.”

Kossoy explica que, poucos anos antes da chegada de Florence, o livro era considerado um instrumento de subversão. “Era abominado e sua posse representava um sério risco, sendo aceitável apenas nas mãos dos religiosos. Entrava no Brasil por contrabando e as bibliotecas particulares eram proibidas.”

A tipografia também tinha um sério controle policial, sendo raras no Brasil do início do século 19. “Hercule Florence foi o introdutor da tipografia em Campinas e teve importância histórica por rodar o periódico O Paulista, primeiro jornal do interior da Província de São Paulo.”

A pesquisa de Kossoy reúne imagens e textos de Florence que documentam a expedição recepcionada pelos índios Apiacás, o interior da choça dos índios Mandurucus e aquarelas que documentam o céu com as estrelas, o mar e os índios. Interessante também é o caderno de anotações com as reflexões, as técnicas e descobertas de Florence. Como mostra este trecho de seus escritos:

São Carlos, 20 de julho de 1832. Será melhor se for possível fazê-los em vidro. Quanto ao sol, seus raios se concentrarão no vidro que está sobre o quadro por meio de focos; o mesmo será feito para sua imagem na água e outros pontos brilhantes, caso existam; para as claridades comuns, bastará a transparência. Os quadros serão colocados sobre as aberturas realizadas numa sala, a câmara escura, do lado do sol. Imitar-se-á perfeitamente uma paisagem durante as horas em que o sol brilha com todo o seu esplendor.

Através de Hercule Florence – A descoberta isolada da fotografia no Brasil, o professor Boris Kossoy revela uma descoberta independente no Brasil e nas Américas. É um exemplo, como ele próprio define, de que a criatividade e a determinação do homem não se limitam a fronteiras geográficas nem a contextos adversos. “Recuperar essa descoberta do anonimato representou, além do natural desafio intelectual, um verdadeiro privilégio.”


Entre a ciência e a arte


Boris: cientista e artista

A terceira edição de Hercule Florence chega em um momento luminoso. O pesquisador e professor que foi um dos pioneiros em registrar a história da fotografia no Brasil, através de incontáveis artigos publicados em diversos países e vários livros, se prepara para mostrar o fotógrafo Boris Kossoy que muitos alunos desconhecem. Um artista que integra as coleções permanentes do Museu de Arte Moderna e o Museu Metropolitano de Arte de Nova York, o Museu Internacional de Fotografia de Rochester, a Biblioteca Nacional de Paris e o Museu de Arte de São Paulo (Masp), entre outras instituições.

Kossoy irá expor, no segundo semestre, uma seleção de fotos que produziu nas últimas quatro décadas, na Pinacoteca do Estado de São Paulo. É o pesquisador resgatando o fotógrafo que não apresenta o seu trabalho desde a Bienal Internacional de Fotografia em 1998. Kossoy tinha 14 anos quando começou a fotografar. Nos anos 60, conciliava as atividades de arquiteto às de fotógrafo. Na época, abriu seu primeiro estúdio, Ampliart, fazendo fotos para publicidade, cenários de televisão, revistas e jornais. É dessa época a sua famosa série sobre o realismo fantástico, em que traça um paralelo entre a realidade e a fantasia, propondo a reflexão e a denúncia através das imagens. Kossoy se dividia entre a arte e a ciência da fotografia.

Mas, nessa trajetória, acabou sendo levado para a pesquisa e se dedicou a investigar a história da fotografia no Brasil e as suas aplicações como fonte e documento. “Quando comecei a estudar Hercules Florence, não imaginava o caminho que me aguardava.” O pesquisador aliou as suas atividades com as de professor de Fotografia do Departamento de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Continuou fotografando, mas priorizou o universo da fotografia muito além das suas próprias imagens. Junto com Maria Luiza Tucci Carneiro, professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, organizou o Projeto Integrado Arquivo do Estado (Proin), recuperando as fotos e os prontuários dos presos políticos do Deops e preservando, assim, a memória da cultura política brasileira. Kossoy é autor de vários livros, como o Dicionário histórico-fotográfico brasileiro.

Agora, o professor/cientista abre espaço para o fotógrafo/artista. O mesmo que o professor Pietro Maria Bardi, ao perceber o caminho que Kossoy, seu diretor de fotografia no Masp, estava trilhando como pesquisador, mandou viajar e sair fotografando. Bardi propôs a Kossoy que percorresse os caminhos de Hercule Florence em Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas. “Procurei fazer as fotos dos mesmos ângulos das imagens de Florence e pude perceber a sua preocupação e percepção com a composição.” A experiência resultou em um livro publicado pelo Masp, que rapidamente se esgotou. Com certeza, Bardi, com a sua sensibilidade incomum para as artes, deve ter notado a integração entre os dois artistas.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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