A energia nuclear é realmente segura e representa uma alternativa
viável para responder às necessidades de todos os
países? Como conciliar os grandes investimentos e empreendimentos
necessários para a geração de energia com
a preservação ambiental? Há risco de que a
produção agrícola destinada aos biocombustíveis “roube” espaço
daquela destinada aos alimentos? Temas como esses estão
em debate no mundo todo e, no Brasil, a possibilidade de dar um
salto com a liderança planetária na produção
de etanol, por exemplo, faz com que sua importância seja
ainda maior.
“A revolução energética do século
21 mal está começando. O que podemos dizer com certeza é que
a transição da era do petróleo ao pós-petróleo
será longa e que é difícil antecipar o seu
transcurso. Daí as interrogações que emergem
dessa reflexão preliminar”, aponta Ignacy Sachs, professor
honorário da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais
de Paris, na França, e pesquisador convidado do Instituto
de Estudos Avançados (IEA) da USP. “O que diferencia
a revolução energética atual é que
nenhuma das energias alternativas oferece, por enquanto, vantagens
econômicas claras com relação ao petróleo
e seus derivados. Ao mesmo tempo, o imperativo ecológico
vai, segundo tudo indica, atuar com uma força cada vez maior, à medida
que se afinam os contornos da crise desencadeada pelas mudanças
climáticas.”
Sachs apresenta suas reflexões no Dossiê Energia,
ao qual o IEA dedica a maior parte da edição nº 59
de sua revista Estudos Avançados, que será lançada
no final deste mês. Os dezenove textos do dossiê são
divididos em quatro partes. A primeira aborda vários temas
da área de energia; a segunda concentra-se em energia hidrelétrica;
a terceira é sobre os biocombustíveis e a quarta é dedicada à energia
nuclear. Não são apresentadas soluções
prontas e acabadas para os problemas energéticos do País,
mas sim reflexões e propostas que contribuem para as decisões
que a sociedade deve tomar. Tanto é assim que há artigos
que defendem pontos de vista divergentes sobre os mesmos temas,
a começar pela falta de consenso a respeito dos níveis
atuais e futuros de consumo e demanda de energia no Brasil. Usinas nucleares – Um exemplo de divergência é a
discussão a respeito da utilização da energia
nuclear. Num artigo assinado em conjunto, Carlos Feu Alvim, Frida
Eidelman, Olga Mafra e Omar Campos Ferreira, da Organização
da Sociedade Civil de Interesse Público, Economia e Energia,
defendem o seu uso afirmando que o custo da geração
nuclear é competitivo com o da geração a partir
dos derivados de petróleo e com o gás natural, e
que o risco de acidentes deve ser comparado com os demais ciclos
de combustíveis. Quanto aos resíduos, afirmam que
a “solução do problema não apresenta
dificuldades tecnológicas, sendo uma questão de decisão
política e de aceitação pública”.
Para eles, “certamente” a energia nuclear faz parte
do futuro energético brasileiro.
Quem também defende a adoção mais intensiva
dessa modalidade é Carley Martins, professor do Departamento
de Física Nuclear e Altas Energias da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Em entrevista, Martins afirma que “não
há riscos significativos para a população
de Angra dos Reis decorrentes da construção de uma
nova usina”, pois “a tecnologia existente permite reduzir
a valores desprezíveis a probabilidade de ocorrência
de falhas graves no núcleo, nos sistemas de controle e de
operação dos reatores”.
Por sua vez, Jean-Pierre Dupuy, professor da Escola Politécnica
de Paris e da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, faz
um balanço dos 20 anos do acidente de Chernobyl (Ucrânia). “O
mais duro de ver são as fotos dos bebês monstros que
nasceram de mães que tiveram a infelicidade de estar grávidas
em Pripyat (cidade em que viviam os trabalhadores da central e
suas famílias), naquele 26 de abril de 1986”, escreve.
Há ainda um crescente alerta em todo o mundo quanto à possibilidade
de as usinas se transformarem em novos alvos para terroristas.
Ignacy Sachs afirma que a decisão a respeito não
pode ser deixada unicamente aos cientistas: é um processo
que “requer o debate e a participação ampla
dos cidadãos”.
Ao traçar uma retrospectiva da produção e
consumo de energia no Brasil e no mundo, José Goldemberg,
ex-reitor da USP e ex-secretário de Meio Ambiente de São
Paulo, e Oswaldo Lucon, assessor técnico da Secretaria,
dizem que o Brasil possui uma condição bastante favorável
no momento. Cabe ao País aproveitar a oportunidade de explorar
as energias renováveis, que devem ser cada vez mais utilizadas
em todo o mundo. Os atuais padrões de produção
e consumo de energia são baseados nas fontes fósseis,
o que gera emissões de poluentes locais e gases de efeito
estufa, colocando em risco o suprimento de longo prazo no planeta. Preocupação ambiental – Goldemberg e Lucon
defendem que “a vocação” do Brasil “está nas
hidrelétricas”, havendo “grandes potenciais
ainda não explorados”. Para evitar os enormes impactos
ambientais ocorridos em empreendimentos como Tucuruí (PA)
e Balbina (AM), “o que se impõe é que os órgãos
ambientais encontrem saídas para o complicado processo de
licenciamento das usinas hidrelétricas”. A solução,
dizem, passa por “compensações ambientais,
pelas quais o empreendedor deve alocar pelo menos 0,5% do valor
total da implantação de seu projeto na criação
de novas unidades de conservação ou na manutenção
das existentes”, além do reassentamento adequado das
populações atingidas pela construção
das usinas.
Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
diz que é preciso colocar em discussão os impactos
da reestruturação e privatização do
setor elétrico. “Trata-se de examinar se, e em que
medida, o processo em marcha tende a favorecer o recrudescimento
de um tratamento insensível e irresponsável dos impactos
sociais e ambientais de grandes barragens. Trata-se, sobretudo,
tanto do ponto de vista legal-institucional quanto do ponto de
vista político prático, de garantir às populações
atingidas, e à sociedade civil de modo geral, uma efetiva
participação nos processos de decisão e um
efetivo controle sobre os novos empreendimentos”, afirma.
Encerrando o dossiê, a revista reproduz uma crônica
publicada por Carlos Drummond de Andrade no Jornal do Brasil em
junho de 1980. No texto, o poeta se refere a um documento que recebeu
do Movimento em Defesa da Vida, “formado por pessoas de todas
as classes, homens e mulheres, sob orientação de
geneticistas reputados e físicos nucleares não menos
categorizados da USP”. O documento alertava para os perigos
das usinas nucleares, focando na intenção do governo
brasileiro – o presidente era o general João Figueiredo,
o último da ditadura militar – de construir uma planta
desse tipo na região florestal da Juréia, entre os
municípios paulistas de Peruíbe e Iguape. O projeto
fazia parte do acordo entre Brasil e Alemanha, mas acabou não
vingando, e hoje a Juréia é preservada como reserva
ambiental.
Citando o documento, o poeta fala de casos ocorridos em várias
partes do mundo – seis anos antes, recorde-se, da tragédia
de Chernobyl e sete anos antes do acidente com o Césio 137
em Goiânia – e critica os “riscos impostos ao
País para nos envaidecermos de empreendimentos que buscam
o chamado progresso e liquidam a segurança de viver”. “Eu,
homem do povo e escrivão público, participo desse
terror. E acho que o Poder Legislativo tem obrigação
de pedir contas desse programa assustador, desenvolvido a sua revelia
e sob total ignorância do povo”, encerra, com palavras
que mantêm sua atualidade em meio ao debate sobre os desafios
para a produção de energia no Brasil e no mundo do
século 21.
Os destaques entre os demais textos que compõem a edição
são o artigo “Origens da vida”, de Augusto Damineli
e Daniel Damineli, e uma entrevista com o cineasta Nelson Pereira
dos Santos, que fala sobre sua vida e obra e o Brasil das últimas
décadas. |