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© Cecília Bastos

Por muitas décadas, os olhares paulistanos passeavam por cores, luzes, tipos, imagens e mensagens que monopolizavam a atenção do motorista parado no trânsito ou do passageiro de ônibus ansioso pelo passar do tempo. Agora, com a entrada em vigor da Lei Cidade Limpa – iniciativa da Prefeitura paulistana que desde janeiro regulamenta a publicidade nas ruas da cidade –, São Paulo vai aos poucos tirando essa sua roupagem e atraindo os olhares para sua alma detalhista e cheia de vida.

A mídia exterior fez parte da paisagem urbana por tanto tempo que até então mal se sabia o que estava por trás dela: pessoas conversando, um parque cheio de árvores ou mesmo uma casa mal- cuidada, um prédio precisando de pintura. O olhar demora a se acostumar. Um primeiro relance descuidado no par de fotos publicadas nestas páginas (no alto, à direita) mal revela que se trata do mesmo lugar. Mas um olhar atento mostra que há muita coisa por baixo dos nomes e números de telefones, inclusive uma cidade que precisa de mais atenção. A retirada dessas mídias convida o paulistano a reavaliar sua cidade e, mais, repensar seus laços afetivos com uma paisagem que foi esquecida por trás de gigantescos cartazes.

“O outdoor é uma invasão muito grande de privacidade, algo que invade seu olhar e que não basta simplesmente desligar ou virar a página, como outras mídias”, critica Takashi Fukushima, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Mais do que uma invasão, a mídia exterior caracterizou-se, pelo excesso, como um elemento massificador que torna as cidades diferentes não mais pela sua história ou sua arquitetura, mas pelo tipo de anúncio que carrega em suas ruas e prédios.

“Sem esses outdoors, chama a nossa atenção esse patrimônio que é a própria cidade. Nós, como arquitetos e artistas plásticos, vemos a cidade como o ambiente no qual se desenvolve nossa arte, nosso trabalho, que não podem ser contemplados se escondidos por detrás dessas propagandas”, completa Takashi. O professor Benedito Lima de Toledo, também da FAU, concorda: “A arquitetura é uma arte e como tal deve ser respeitada e não usada como suporte para publicidade”.

Limpa desses estímulos, a cidade incita um novo olhar sobre ela, um olhar detalhista e contemplativo no novo que surge após ser deixado em segundo ou terceiro plano por décadas. “Sem a mídia, revela-se a urbanidade, a civilidade. No primeiro plano ficavam os cartazes, em segundo plano toda a informação artística, cultural e histórica da cidade e em terceiro plano as coisas mais sutis, a vida por detrás de uma grande metrópole como São Paulo. Agora é a vez desses dois planos ganharem atenção”, defende o também professor da FAU Carlos Zibel.

© Francisco Emolo

Radicalismo – O radicalismo da lei, afirmam unânimes os professores da FAU, era a única saída para resolver um problema que já fugiu ao controle da Prefeitura, uma forma de começar do zero. “Senão, a Prefeitura correria o risco de legalizar mídias irregulares”, acredita o professor Issao Minami, outro docente da FAU. Para ele, foi justamente o fato de lidar com o problema como uma verdadeira crise que trouxe à cidade a oportunidade de um novo olhar e a valorização de seus elementos.

Para Carlos Zibel, o radicalismo se refere somente a um primeiro momento de mudança. Agora deve-se repensar a colocação dos outdoors na cidade de forma gradual, respeitando os lugares adequados para propaganda e aqueles que simplesmente não suportam esse tipo de intervenção. Para tal, ele utiliza o conceito antropológico de lugar, um ponto da cidade que tem valor cultural e histórico para seus moradores e freqüentadores, que cria uma identificação.

Assim, acrescenta o professor, as propagandas ficariam restritas a locais impessoais, como bancos, shoppings e estradas, onde não há a relação de afetividade ou mesmo um patrimônio cultural a ser mantido intocado. “Para fazer essa divisão, eu consultaria as pessoas interessadas, os moradores da região. Eles devem opinar se aquele é um lugar ou um não-lugar em seu referencial. Para os moradores de um bairro, uma praça pode ter menos valor, por exemplo, do que um bar”, exemplifica.

Se por muito tempo São Paulo foi notada por seus enormes cartazes, placas e faixas, a retirada desse material é um convite, segundo os professores, para perceber os verdadeiros referenciais da cidade, seus edifícios, estátuas e parques. “Os cidadãos têm a chance de recuperar o olhar apaixonado pela cidade e de construir referenciais verdadeiros. Com a retirada dos cartazes, uma nova cidade se revela sob diversos pontos de vista”, afirma Minami.

As praças, prédios, calçadas, tudo é novo objeto de observação e, aos poucos, cria-se o apreço pela cidade, que vem como primeiro passo para a real mudança almejada pelos professores da FAU: uma mudança na relação do cidadão com a cidade. “Quando a cidade estava suja, ninguém se importava em limpar. Mas, agora que tudo fica mais limpo, as pessoas tendem a se importar mais com a cidade, que deixa de ser apenas o local onde vivem”, afirma Benedito Lima de Toledo. “Criou-se um novo paradigma que exige uma mudança comportamental do cidadão, que precisa se conscientizar da necessária busca pela qualidade de vida”, aponta Minami.

Essa mudança é necessária não só para a conservação da cidade – continuam os professores –, mas para a reforma de suas velhas estruturas, que acabaram escondidas sob os outdoors e agora se revelam, pedindo por cuidados. “A cidade tem muita coisa feia que vai se revelar. Muitos prédios que estão em condições deploráveis, abandonados por moradores que preferiram tapar o problema com um enorme cartaz”, aponta o professor Sérgio Martins, da FAU.

Por isso, acreditam, lidar com o problema do excesso de mídia exterior é apenas o primeiro passo para uma série de ações de preservação e reforma, vindas não só da população, mas também da Prefeitura. “A medida é boa, mas deve ser seguida de outras ações, como a limpeza das praças e a pintura de prédios. Só assim a cidade volta a ser como a conhecemos”, afirma Benedito Lima de Toledo.

Mais do que instigar um novo pensar no visual de São Paulo, a Lei Cidade Limpa pode ser a indicação de que a cidade volte a ser objeto de análise e a qualidade de vida volte à tona, acreditam os professores da FAU. “Isso é só a ponta do iceberg. São necessárias ações contra a poluição geral, não só visual. Sem lidar com os demais problemas da cidade, a melhora da qualidade de vida será apenas efêmera”, explica Takashi. “Nosso sonho de cidade feliz é muito mais. Nós queremos ainda gostar da cidade, queremos poder apreciá-la de todas as formas, passear tranqüilamente e ter uma vida de qualidade em todos os sentidos”, diz Sérgio Martins.

© Francisco Emolo/ Fotomontagem

Redescobrir a afetividade – Mais do que o reconhecimento da verdadeira cidade de São Paulo, o professor Carlos Zibel defende que limpar a cidade traz a oportunidade de recriar seus laços afetivos, revelando detalhes esquecidos na memória, mas carregados de sentimentos únicos para cada cidadão. “Quando passava pela Marginal Pinheiros, eu mal conseguia ver a massa verde da USP, escondida atrás de uma sucessão de outdoors. Os olhares foram moldados, monopolizados e comprados para que lêssemos essas mensagens. E a maior perversidade é que esses outdoors estavam sempre nos lugares de maior valor ao olhar paulistano, os lugares mais bonitos, mais plenos de história”, critica.

Para o professor, a retirada dos cartazes permitiu que os cidadãos usufruíssem de um de seus direitos mais básicos: saber o que é sua cidade e agir sobre ela. “Não é só o direito de ir e vir e de ter acessibilidade a serviços básicos. É ter também dignidade e prazer de viver na cidade. Como você pode usar todo o patrimônio cultural e histórico que a arquitetura oferece se você não o vê, se está camuflado sob as propagandas?”, questiona.

Com a intensificação da urbanização e da globalização, esses laços de afeto ganham importância, afirma Zibel. “Neste mundo onde todo lugar se parece, é cada vez mais importante existirem lugares onde você se sente bem, se identifica com a arquitetura e com as pessoas que ali estão. Um valor sentimental acima dos valores materiais”, destaca, referindo-se ao que acredita ser o verdadeiro conceito de qualidade de vida em uma cidade como São Paulo.

Assim como seus colegas, Zibel aposta numa mudança de comportamento gradual da população, que exige ações maiores e mais abrangentes, das quais o veto à mídia exterior é apenas o começo. “A retirada dos outdoors é o começo para um repensar que pode levar a novas relações com a cidade e os cidadãos”, conclui.


Porta fechada para o mercado publicitário

O mercado publicitário sente mais do que qualquer outro setor os efeitos da Lei Cidade Limpa, que, segundo a Coordenadoria das Subprefeituras de São Paulo, até o feriado de Páscoa já tinha retirado 650 peças publicitárias da cidade, entre as cerca de 12.300 espalhadas pelas ruas, prédios e casas paulistanas. “A Prefeitura não tem, por si só, meios de inibir as mídias exteriores. São milhares de peças na cidade e, até agora, só um número irrisório foi retirado. O que realmente prejudicou o mercado foi a fuga das grandes empresas que não querem mais anunciar nesse tipo de mídia”, explica Arlindo Ornelas Figueira Neto, professor do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

Para o meio publicitário, o outdoor representa um veículo de comunicação único, já que é exclusivamente voltado à propaganda e tem um alto poder de impacto em seus leitores, pelo tamanho e pela mensagem, sempre curta e impactante. Criado no início do século 20, o outdoor surgiu com o crescimento gradual dos cartazes lambe-lambe, colados em paredes e muros da cidade, e desde então se mostrou muito eficiente na divulgação de mensagens.

A perda de uma mídia como o outdoor causa um vazio no mercado tanto para anunciantes como para as dezenas de empresas que trabalhavam apenas com mídia exterior em São Paulo, lembra Figueira Neto. “Agora a tendência é que essas empresas migrem para outras cidades ou mesmo descentralizem sua atuação entre várias cidades vizinhas, para que não percam de vez o trabalho. Mais do que ajudar na limpeza da cidade, a lei proibiu essas pessoas de trabalhar.”

Para o professor, as empresas de publicidade nunca acreditaram realmente na aprovação da lei, que achavam radical demais para uma cidade como São Paulo. Por isso tiveram uma reação tão forte quando ela foi aprovada. A tendência agora, diz, é que o mercado se adapte e compense a falta de placas e outdoors com o investimento em outras mídias, de acordo com as necessidades e vontades de cada anunciante. “A publicidade consegue se recuperar dessa proibição porque a tendência é que, com o tempo, surjam novas alternativas. Mas isso vai demorar e, por enquanto, apenas se sentem as perdas de verbas e empregos. Somente os outdoors representavam cerca de 5% do faturamento da mídia brasileira”, calcula Figueira Neto.

Para Figueira Neto, a perda se estende também à população, que fica sem um veículo informativo que, quando bem usado, cumpre sua função de mobilizar e persuadir as pessoas, como no caso de campanhas de vacinação. “O outdoor tem um alcance que nenhuma outra mídia tem. Você só precisa passar por ele para ver. Quando usado com criatividade e bem colocado, ele pode valorizar a paisagem urbana e contribuir para dar bom humor ao cotidiano estressante do paulistano”, defende.

Figueira Neto ressalta que não é a favor do uso excessivo da mídia exterior que poluía São Paulo. Como exemplo, ele cita um estudo realizado pela Central de Outdoors (associação de empresas de mídia exterior), na década de 80, que concluiu que 400 outdoors eram suficientes para cobrir a capital paulista e oferecer aos anunciantes uma mídia de alto alcance. “Claro que atualmente esse número seria maior, mas o que se tinha antes da lei era um exagero insustentável, tanto para o público, que sofria com a poluição visual, como para os anunciantes, que perdiam impacto de suas propagandas diluídas entre tantas outras”, avalia.

Como caminho mais moderado, o professor defende a seletividade e, acima de tudo, uma fiscalização eficiente das empresas de mídia, que muitas vezes colocam peças em lugares proibidos e utilizam o mesmo número de registro para diversos outdoors. “A Prefeitura deveria tirar cartazes sem registro, vetar a mídia exterior em certos locais e fechar empresas que não seguem as determinações da lei. Ela tem que se antecipar e não jogar uma bomba em cima de tudo”, critica.

Segundo a arquiteta Regina Monteiro, diretora de Meio Ambiente e Paisagem Urbana da Emurb (Empresa Municipal de Urbanismo), da Prefeitura, as empresas já haviam sido procuradas meses antes para discutir esses excessos e estavam avisadas há tempos da proposta da lei. “A paisagem da cidade não é espaço para mídia. As empresas devem usar outros veículos que vão aonde o consumidor está”, afirma.

A arquiteta lembra ainda que, como opção, a Prefeitura disponibilizará abrigos de ônibus e relógios, cuja verba de publicidade será revertida para reformas na própria paisagem urbana, como a passagem de fios elétricos sob as ruas.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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