Ciência em versos

A verdade, na ciência,
é fugidia como um relâmpago.
Revelação na noite escura,
verdade enquanto dura
A Luz.
Sempre verdade, num quadro à luz do dia.
Imagem de David Bohm que, em prosa,
Já é poesia

(Trecho do poema “Lógica”, de Amélia Império Hamburger, professora aposentada do Instituto de Física da USP)

 
 
 
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Na sala de casa, Amélia e Ernst Hamburger montam um icosaedro, que é um poliedro convexo de 20 faces. Um dos cinco sólidos perfeitos de Platão, ao lado do tetraedro, do cubo, do octaedro e do dodecaedro. “Não existem outras figuras com faces iguais”, comenta Ernst, enquanto puxa uma peça imantada, cola outra, equilibra uma terceira, desmonta tudo e torna a montar. Para o casal Hamburger, aposentado compulsoriamente, a dificuldade de montar o icosaedro é fichinha. Eles conhecem até o átomo por dentro, como a natureza o fez, e mesmo depois dos 70 não costumam ficar em casa muito tempo. São físicos, ele ocupado em bolar projetos educativos para o ensino de ciência para todos os graus, em especial para as primeiras séries escolares, e em organizar exposições de física, projetos como aqueles que costumam ser vistos na Estação Ciência, casa que dirigiu durante muitos anos. Aliás, é para lá, ou para o Instituto de Física, que Ernst vai todo dia. Amélia vai também, porque, embora não dê mais aula, orienta alunos de pós-graduação, em especial e com muita satisfação uma aluna da Unicamp que busca o título de doutora com pesquisa sobre o Laboratório Vandergraf, aquele mesmo onde Amélia começou a estudar Física Experimental.

Nos fins de semana, talvez apareçam alguns dos cinco filhos que Amélia e Ernst criaram: Vera, diretora de arte; Sônia, produtora; Esther, crítica de TV e Cinema; Cao... Bem, Cao todo mundo sabe quem é. Revolucionou programas de TV para crianças (“Castelo Rá-Tim-Bum”) e agora está na crista da onda com o filme O ano em que meus pais saíram de férias. No fundo da casa, jardim, bananeira de cachos carregados, jabuticabeira, amoras e um cão labrador gordo e manso brincando com a filha do mesmo tamanho.

A novidade que Amélia exibe não é bem novidade. Tem 20, 30 anos. São poesias de uma física, que a Fapesp acaba de publicar na série Boletim de Idéias, com apresentação de Carlos Vogt, o poeta da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. O título do livrinho já pede alguma reflexão: In forma ação da medida. Por dentro, uma lembrança dos temas/termos de Ciro dos Anjos, com a diferença de que o poeta mineiro usava a linguagem científica mais para efeito sonoro, enquanto Amélia põe lógica na ciência e deixa os versos livres, com alguma rima, quando espontânea.

Se não edita seus próprios livros, Amélia está supervisionando a editoração das obras completas na área de física de Mário Schenberg, que sairão em dois volumes de 900 páginas cada um até o final do ano. Independente deste, outro volume está em preparo com a produção política desse professor de física, que foi também parlamentar militante e crítico de arte.

Ernst Hamburger confessa: na vida acadêmica sempre gostou de dar aula e de fazer pesquisa. Por isso não pára de trabalhar na aposentadoria. Não lamenta a chegada do tempo-limite para o serviço público nem defende esticar a idade para a compulsória até os 75 anos, conforme projeto do senador Pedro Simon (PMDB/RS), que agora se encontra na Câmara dos Deputados (leia na página ao lado). Como Amélia, acha que se deve dar chance e lugar aos mais jovens, mas com a garantia de que o aposentado possa trabalhar na instituição, sem ganhar nada mais por isso. Afinal de contas, a aposentadoria aos 70 é um privilégio de poucos diante da realidade brasileira que, de acordo com a psicóloga Anete Souza Farina, aposenta seus trabalhadores aos 40 anos, negando-lhes novo emprego (leia o texto abaixo).

Alguma lembrança triste? Apenas ter sido testemunha da violenta repressão aos estudantes e professores nos anos quentes de 1968/69.

Numa coisa o casal Hamburger está dividido: ele é santista (em segundo lugar são-paulino); ela, corintiana roxa.

E por falar em Corinthians, a sala de outro docente da USP aposentado (não pela compulsória, mas já seria se esperasse mais um pouco) está lotada de fotos, flâmulas e símbolos do Timão. É onde fica e de onde dirige o Laboratório de Bioquímica Oral da Faculdade de Odontologia o professor José Nicolau, formado em duas áreas complementares de ciência: farmácia e odontologia.

Contratado pela USP em 1958, com pós-graduação nos Estados Unidos, Universidade de Chicago, Nicolau se aposentou antes pro forma, porque o seu dia-a-dia continua na Faculdade de Odontologia, pesquisando, ensinando os jovens alunos e prestando serviço à comunidade. Dia 31 de maio, recebe o título de Professor Emérito.

Um tesouro – Igor Gil Pacca, aposentado compulsoriamente há sete anos pelo Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG), conta que, no tempo em que dava aulas no Instituto de Física, certo dia fotografou um belo arco-íris na Cidade Universitária. Lembrou-se então de que, segundo crença popular, numa das pontas do arco deveria haver um baú de ouro enterrado. Na hora não pensou nisso, mas, passadas várias décadas, constatou que o mito continha uma verdade: o tesouro estava lá. Lá é onde está hoje o conjunto de prédios do IAG e o tesouro é o próprio IAG. O professor tem parte nisso, pois trabalhou muito para organizar e transferir aquela unidade de ensino e pesquisa da Água Funda para o campus do Butantã. A mudança foi necessária para integrar o ensino e a pesquisa e porque as condições no parque da Água Funda já não eram favoráveis à observação do céu iluminado de São Paulo. Pena foi abandonar aquela área verde de 1,4 milhão de metros quadrados e esquecer o suave ronco dos bugios.

Contando tudo, Gil Pacca já tem 63 anos de trabalho: 40 na USP, 16 antes disso em empresas. Especialista em Física da Radiação, foi colega de César Lattes, o brasileiro que por pouco não leva o Nobel de Física pela descoberta do méson Pi, depois foi chamado para dar nova estrutura ao IAG, antes denominado Observatório de São Paulo, um dos institutos oriundos da Comissão Geográfica e Geológica criada ainda no tempo do Império. Gil recorda como era bom trabalhar com o diretor Abraão de Moraes e da promessa do reitor Miguel Reale, quando do sepultamento do diretor, de transformar o IAG em unidade independente, com três departamentos: Astronomia, Geofísica e Meteorologia. A transferência, iniciada na gestão do professor Lobo e Silva, concluiu-se no tempo de Flávio Fava de Moraes, que garantiu os recursos necessários para iniciar a construção dos blocos, vendendo para a Fapesp um terreno da Universidade ao lado da avenida Politécnica.

Iates, barcos, jet ski, Gil Pacca não tem (nem é fácil encontrar aposentado que tenha ou revele ter) para usufruir a aposentadoria nas ondas do mar, mas possui uma chácara em Serra Negra, onde o caseiro cuida de hortaliças, de galinhas e colhe café, que é para o professor não comprar em supermercado. Gil gosta de viajar, mas prefere ficar mais tempo na USP, cumprindo o contrato de todo aposentado com a instituição, que contém um termo de adesão e permissão de uso.

Num laboratório blindado para o magnetismo exterior, Gil Pacca mostra pedras magmáticas, diz que elas têm memória magnética e podem conter informações sobre a história do interior da Terra e sobre o movimento dos continentes. Exames acurados são capazes de revelar que a pedra se formou num determinado lugar e milhões de anos depois estava em outro muito distante da origem.

Milagre tecnológico – O professor José Sebastião Witter, do Departamento de História, que já dirigiu o Museu Paulista, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e a Coordenadoria de Comunicação Social (CCS), tinha o sonho de se aposentar aos 70 anos. Mas, dez anos antes de atingir essa idade e já com ponte de safena, o seu cardiologista mandou parar. Só que ele não parou de trabalhar, mesmo consciente de que está vivo “graças à tecnologia”. “O trabalho é o melhor remédio”, afirma, sem deixar de dar um conselho, meio irrealista, aos que estão começando: “Aos 35 anos tirem dez anos de férias, viajem, façam cursos, mestrado, doutorado, conheçam o mundo, divirtam-se; aos 45, recomecem e trabalhem até morrer”.

Conta que um de seus amigos, Raul de Andrada e Silva, apelidado de “neto de duas estátuas”, porque descendente de José Bonifácio de Andrada e de Caetano de Campos, dizia que todo professor deveria pedir aposentadoria dois meses antes da compulsória, “dando tempo para ser recontratado”. Não foi o seu caso.

Witter começou a dar aulas aos 17 anos e garante que férias de verdade nunca tirou, só burocraticamente. Agora, presta consultoria para a Universidade de Mogi das Cruzes. Sua mulher, Geraldina Porto Witter, também da USP, psicóloga aposentada, já passou pela PUC de Campinas, pela Universidade de Mogi e agora dá aula na Unicastelo, em Itaquera. Não é por dinheiro, garante Witter: “Não penso nisso, não tenho carro de luxo, não tenho motorista”. Uma das suas atuais ocupações é preparar um livro com entrevistas de mogianos que têm boas histórias de vida e da cidade. Uma jornalista ouviu o pessoal.

Se dependesse do professor Witter, a idade limite para aposentadoria seria de no mínimo 80 anos. O que seria do arquiteto Oscar Niemeyer se fosse servidor público e impedido de trabalhar depois dos 70? “Ficar em casa, de chinelos, deprimido, diabético, com dor na coluna, cansado da mulher, olhando outros velhos, não faz meu gênero”, conclui Witter, cheio de vida.

Os professores José Nicolau (acima, à esquerda), José Sebastião Witter (acima, à direita), Pacca (à esquerda), Hamburger (à direita) e Amélia (abaixo): os diferentes modos de continuar produtivo depois da aposentadoria
© Cecília Bastos


Ainda um privilégio

A professora Anete Souza Farina, do Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho do Instituto de Psicologia da USP, afirma que, num país que descarta seus trabalhadores aos 40 anos, a aposentadoria compulsória aos 70 é um privilégio. Segundo ela, a aposentadoria é um processo de descarte social que inscreve, automaticamente, um estigma. Em geral, poucos se preparam para esse período da vida, porque a inatividade tem um peso social associado ao envelhecimento e à velhice. Naqueles que supõem ter um plano para a aposentadoria, fatores como isolamento, distanciamento e solidão podem provocar o adoecimento físico que, em geral, é explicado pela “longevidade”.

Ganhar dinheiro após a aposentadoria, observa Anete, não é regra. A inserção dos aposentados nas instituições privadas de ensino ocorre eventualmente, e essas instituições pensam como a própria sociedade, obviamente: a idade máxima para contratação
está em torno de 60 anos, considerando um tempo de cinco anos de atuação, em atividades de pós-graduação.

De acordo com a psicóloga, freqüentemente os aposentados preferem continuar de forma menos acelerada as atividades docentes na própria Universidade, como uma forma de manutenção de vínculos, obrigações e autodesenvolvimento. As diferentes formas de viver a aposentadoria dependem das relações construídas para além do trabalho. O papel desenvolvido junto à família poderá minimizar os efeitos da aposentadoria, bem como outros vínculos que não estejam relacionados ao trabalho. A aposentadoria não desencadeia por si só o adoecimento. Isso depende de fatores como os outros significados que a vida tem para o aposentado.


Emenda sem acordo

O Senado aprovou em maio de 2005 projeto de emenda constitucional (PEC-457/2005) de autoria do senador Pedro Simon (PMDB-RS) elevando de 70 para 75 anos a idade-limite para aposentadoria compulsória no serviço público. O texto também eleva o limite de idade para indicação dos ministros do Supremo Tribunal Federal e dos demais tribunais superiores para 70 anos. Remetida para a Câmara dos Deputados, a matéria revelou-se polêmica e recebeu várias emendas. A última manifestação sobre o projeto data de 22 de março deste ano, quando o deputado Ronaldo Cunha Lima (PSDB/PB) pediu a sua inclusão na
pauta de votação.

O autor da emenda constitucional justifica o projeto dizendo que “a expectativa de vida do brasileiro vem aumentando bastante, alterando significativamente o perfil populacional. Esse fato ganha consistência com a ampliação da urbanização e a formação de uma classe média que, tendo melhores condições educacionais, beneficiou-se do desenvolvimento econômico registrado no País nas últimas décadas. A Constituição Federal ainda não assimilou totalmente tais mudanças demográficas, pois proíbe que alguém com mais de 70 anos possa ser servidor público ou mesmo nomeado para cargos de magistrado e outros de semelhante relevância”.

A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Amatra) foi das primeiras entidades a se manifestar contrária à aprovação da PEC, argumentando que ela traria engessamento das carreiras, “em virtude da possibilidade oferecida pela proposição de longa e desproporcional permanência dos membros da magistratura e do Ministério Público nos órgãos de cúpula, gerando desestímulo ao recrutamento e dedicação à atividade judiciária e ministerial”. Na Câmara, alguns deputados consideraram o texto inconstitucional por tratar de modo diferente setores do mesmo serviço público. Por exemplo, a lei deveria vigorar de imediato para servidores do Poder Judiciário, mas o resto do funcionalismo deveria aguardar lei complementar. O deputado José Carlos Aleluia (PFL/BA) apresentou emenda introduzindo alteração progressiva da idade limite para a compulsória, enquanto outras emendas defendiam a aplicação imediata da lei a todos os servidores públicos.

Coisa boa – Está correto aumentar para 75 anos a idade da aposentadoria compulsória, porque hoje as pessoas chegam a essa idade ainda com grande capacidade de trabalho. “A sociedade brasileira tem cada vez mais idosos e menos jovens”, observa o professor Hélio Zylberstajn, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), especialista em assuntos previdenciários e de aposentadoria. É claro, segundo ele, que muitos professores não recebem com alívio a notícia da compulsória, porque acham a carreira acadêmica linda e estão apaixonados pelo que fazem. Mas, acrescenta, há os que aos 50 anos se aposentam e vão trabalhar em instituições privadas, ganhar dinheiro, o que, segundo entende, é eticamente condenável, uma vez que a aposentadoria significa incapacidade de trabalhar. Para Zylberstajn, agir assim é aproveitar-se de uma bela aposentadoria para subsidiar as instituições particulares. O conselho do professor para as pessoas nessa condição é o seguinte: se quiserem ganhar dinheiro em empresas, renunciem primeiro à aposentadoria.

 

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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