Na
sala de casa, Amélia e Ernst Hamburger montam um icosaedro,
que é um poliedro convexo de 20 faces. Um dos cinco sólidos
perfeitos de Platão, ao lado do tetraedro, do cubo, do octaedro
e do dodecaedro. “Não existem outras figuras com faces
iguais”, comenta Ernst, enquanto puxa uma peça imantada,
cola outra, equilibra uma terceira, desmonta tudo e torna a montar.
Para o casal Hamburger, aposentado compulsoriamente, a dificuldade
de montar o icosaedro é fichinha. Eles conhecem até o átomo
por dentro, como a natureza o fez, e mesmo depois dos 70 não
costumam ficar em casa muito tempo. São físicos,
ele ocupado em bolar projetos educativos para o ensino de ciência
para todos os graus, em especial para as primeiras séries
escolares, e em organizar exposições de física,
projetos como aqueles que costumam ser vistos na Estação
Ciência, casa que dirigiu durante muitos anos. Aliás, é para
lá, ou para o Instituto de Física, que Ernst vai
todo dia. Amélia vai também, porque, embora não
dê mais aula, orienta alunos de pós-graduação,
em especial e com muita satisfação uma aluna da Unicamp
que busca o título de doutora com pesquisa sobre o Laboratório
Vandergraf, aquele mesmo onde Amélia começou a estudar
Física Experimental.
Nos fins de semana, talvez apareçam alguns dos cinco filhos
que Amélia e Ernst criaram: Vera, diretora de arte; Sônia,
produtora; Esther, crítica de TV e Cinema; Cao... Bem, Cao
todo mundo sabe quem é. Revolucionou programas de TV para
crianças (“Castelo Rá-Tim-Bum”) e agora
está na crista da onda com o filme O ano em que meus pais
saíram de férias. No fundo da casa, jardim, bananeira
de cachos carregados, jabuticabeira, amoras e um cão labrador
gordo e manso brincando com a filha do mesmo tamanho.
A novidade que Amélia exibe não é bem novidade.
Tem 20, 30 anos. São poesias de uma física, que a Fapesp
acaba de publicar na série Boletim de Idéias, com apresentação
de Carlos Vogt, o poeta da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo. O título do livrinho já pede
alguma reflexão: In forma ação da medida. Por
dentro, uma lembrança dos temas/termos de Ciro dos Anjos,
com a diferença de que o poeta mineiro usava a linguagem científica
mais para efeito sonoro, enquanto Amélia põe lógica
na ciência e deixa os versos livres, com alguma rima, quando
espontânea.
Se não edita seus próprios livros, Amélia está supervisionando
a editoração das obras completas na área de
física de Mário Schenberg, que sairão em dois
volumes de 900 páginas cada um até o final do ano.
Independente deste, outro volume está em preparo com a produção
política desse professor de física, que foi também
parlamentar militante e crítico de arte.
Ernst Hamburger confessa: na vida acadêmica sempre gostou de
dar aula e de fazer pesquisa. Por isso não pára de
trabalhar na aposentadoria. Não lamenta a chegada do tempo-limite
para o serviço público nem defende esticar a idade
para a compulsória até os 75 anos, conforme projeto
do senador Pedro Simon (PMDB/RS), que agora se encontra na Câmara
dos Deputados (leia na página ao lado). Como Amélia,
acha que se deve dar chance e lugar aos mais jovens, mas com a garantia
de que o aposentado possa trabalhar na instituição,
sem ganhar nada mais por isso. Afinal de contas, a aposentadoria
aos 70 é um privilégio de poucos diante da realidade
brasileira que, de acordo com a psicóloga Anete Souza Farina,
aposenta seus trabalhadores aos 40 anos, negando-lhes novo emprego
(leia o texto abaixo).
Alguma lembrança triste? Apenas ter sido testemunha da violenta
repressão aos estudantes e professores nos anos quentes de
1968/69.
Numa coisa o casal Hamburger está dividido: ele é santista
(em segundo lugar são-paulino); ela, corintiana roxa.
E por falar em Corinthians, a sala de outro docente da USP aposentado
(não pela compulsória, mas já seria se esperasse
mais um pouco) está lotada de fotos, flâmulas e símbolos
do Timão. É onde fica e de onde dirige o Laboratório
de Bioquímica Oral da Faculdade de Odontologia o professor
José Nicolau, formado em duas áreas complementares
de ciência: farmácia e odontologia.
Contratado pela USP em 1958, com pós-graduação
nos Estados Unidos, Universidade de Chicago, Nicolau se aposentou
antes pro forma, porque o seu dia-a-dia continua na Faculdade de
Odontologia, pesquisando, ensinando os jovens alunos e prestando
serviço à comunidade. Dia 31 de maio, recebe o título
de Professor Emérito.
Um tesouro – Igor Gil Pacca, aposentado compulsoriamente
há sete anos pelo Instituto de Astronomia, Geofísica
e Ciências Atmosféricas (IAG), conta que, no tempo
em que dava aulas no Instituto de Física, certo dia fotografou
um belo arco-íris na Cidade Universitária. Lembrou-se
então de que, segundo crença popular, numa das pontas
do arco deveria haver um baú de ouro enterrado. Na hora
não pensou nisso, mas, passadas várias décadas,
constatou que o mito continha uma verdade: o tesouro estava lá.
Lá é onde está hoje o conjunto de prédios
do IAG e o tesouro é o próprio IAG. O professor tem
parte nisso, pois trabalhou muito para organizar e transferir aquela
unidade de ensino e pesquisa da Água Funda para o campus
do Butantã. A mudança foi necessária para
integrar o ensino e a pesquisa e porque as condições
no parque da Água Funda já não eram favoráveis à observação
do céu iluminado de São Paulo. Pena foi abandonar
aquela área verde de 1,4 milhão de metros quadrados
e esquecer o suave ronco dos bugios.
Contando tudo, Gil Pacca já tem 63 anos de trabalho: 40
na USP, 16 antes disso em empresas. Especialista em Física
da Radiação, foi colega de César Lattes, o
brasileiro que por pouco não leva o Nobel de Física
pela descoberta do méson Pi, depois foi chamado para dar
nova estrutura ao IAG, antes denominado Observatório de
São Paulo, um dos institutos oriundos da Comissão
Geográfica e Geológica criada ainda no tempo do Império.
Gil recorda como era bom trabalhar com o diretor Abraão
de Moraes e da promessa do reitor Miguel Reale, quando do sepultamento
do diretor, de transformar o IAG em unidade independente, com três
departamentos: Astronomia, Geofísica e Meteorologia. A transferência,
iniciada na gestão do professor Lobo e Silva, concluiu-se
no tempo de Flávio Fava de Moraes, que garantiu os recursos
necessários para iniciar a construção dos
blocos, vendendo para a Fapesp um terreno da Universidade ao lado
da avenida Politécnica.
Iates, barcos, jet ski, Gil Pacca não tem (nem é fácil
encontrar aposentado que tenha ou revele ter) para usufruir a aposentadoria
nas ondas do mar, mas possui uma chácara em Serra Negra,
onde o caseiro cuida de hortaliças, de galinhas e colhe
café, que é para o professor não comprar em
supermercado. Gil gosta de viajar, mas prefere ficar mais tempo
na USP, cumprindo o contrato de todo aposentado com a instituição,
que contém um termo de adesão e permissão
de uso.
Num laboratório blindado para o magnetismo exterior, Gil
Pacca mostra pedras magmáticas, diz que elas têm memória
magnética e podem conter informações sobre
a história do interior da Terra e sobre o movimento dos
continentes. Exames acurados são capazes de revelar que
a pedra se formou num determinado lugar e milhões de anos
depois estava em outro muito distante da origem.
Milagre tecnológico – O professor José Sebastião
Witter, do Departamento de História, que já dirigiu
o Museu Paulista, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e a
Coordenadoria de Comunicação Social (CCS), tinha
o sonho de se aposentar aos 70 anos. Mas, dez anos antes de atingir
essa idade e já com ponte de safena, o seu cardiologista
mandou parar. Só que ele não parou de trabalhar,
mesmo consciente de que está vivo “graças à tecnologia”. “O
trabalho é o melhor remédio”, afirma, sem deixar
de dar um conselho, meio irrealista, aos que estão começando: “Aos
35 anos tirem dez anos de férias, viajem, façam cursos,
mestrado, doutorado, conheçam o mundo, divirtam-se; aos
45, recomecem e trabalhem até morrer”.
Conta que um de seus amigos, Raul de Andrada e Silva, apelidado
de “neto de duas estátuas”, porque descendente
de José Bonifácio de Andrada e de Caetano de Campos,
dizia que todo professor deveria pedir aposentadoria dois meses
antes da compulsória, “dando tempo para ser recontratado”.
Não foi o seu caso.
Witter começou a dar aulas aos 17 anos e garante que férias
de verdade nunca tirou, só burocraticamente. Agora, presta
consultoria para a Universidade de Mogi das Cruzes. Sua mulher,
Geraldina Porto Witter, também da USP, psicóloga
aposentada, já passou pela PUC de Campinas, pela Universidade
de Mogi e agora dá aula na Unicastelo, em Itaquera. Não é por
dinheiro, garante Witter: “Não penso nisso, não
tenho carro de luxo, não tenho motorista”. Uma das
suas atuais ocupações é preparar um livro
com entrevistas de mogianos que têm boas histórias
de vida e da cidade. Uma jornalista ouviu o pessoal.
Se dependesse do professor Witter, a idade limite para aposentadoria
seria de no mínimo 80 anos. O que seria do arquiteto Oscar
Niemeyer se fosse servidor público e impedido de trabalhar
depois dos 70? “Ficar em casa, de chinelos, deprimido, diabético,
com dor na coluna, cansado da mulher, olhando outros velhos, não
faz meu gênero”, conclui Witter, cheio de vida.
Os professores José Nicolau (acima, à esquerda),
José Sebastião Witter (acima, à direita),
Pacca (à esquerda), Hamburger (à direita) e Amélia
(abaixo): os diferentes modos de continuar produtivo depois da
aposentadoria
Ainda um privilégio A professora Anete Souza Farina, do Centro de
Psicologia Aplicada ao Trabalho do Instituto de Psicologia da
USP, afirma que, num país que descarta seus trabalhadores
aos 40 anos, a aposentadoria compulsória aos 70 é um
privilégio. Segundo ela, a aposentadoria é um processo
de descarte social que inscreve, automaticamente, um estigma.
Em geral, poucos se preparam para esse período da vida,
porque a inatividade tem um peso social associado ao envelhecimento
e à velhice. Naqueles que supõem ter um plano para
a aposentadoria, fatores como isolamento, distanciamento e solidão
podem provocar o adoecimento físico que, em geral, é explicado
pela “longevidade”.
Ganhar dinheiro após a aposentadoria, observa Anete, não é regra.
A inserção dos aposentados nas instituições
privadas de ensino ocorre eventualmente, e essas instituições
pensam como a própria sociedade, obviamente: a idade máxima
para contratação
está em torno de 60 anos, considerando um tempo de cinco
anos de atuação, em atividades de pós-graduação.
De acordo com a psicóloga, freqüentemente os aposentados
preferem continuar de forma menos acelerada as atividades docentes
na própria Universidade, como uma forma de manutenção
de vínculos, obrigações e autodesenvolvimento.
As diferentes formas de viver a aposentadoria dependem das relações
construídas para além do trabalho. O papel desenvolvido
junto à família poderá minimizar os efeitos
da aposentadoria, bem como outros vínculos que não
estejam relacionados ao trabalho. A aposentadoria não
desencadeia por si só o adoecimento. Isso depende de fatores
como os outros significados que a vida tem para o aposentado. Emenda sem acordo
O Senado aprovou em maio de 2005 projeto de emenda constitucional
(PEC-457/2005) de autoria do senador Pedro Simon (PMDB-RS) elevando
de 70 para 75 anos a idade-limite para aposentadoria compulsória
no serviço público. O texto também eleva
o limite de idade para indicação dos ministros
do Supremo Tribunal Federal e dos demais tribunais superiores
para 70 anos. Remetida para a Câmara dos Deputados, a matéria
revelou-se polêmica e recebeu várias emendas. A última
manifestação sobre o projeto data de 22 de março
deste ano, quando o deputado Ronaldo Cunha Lima (PSDB/PB) pediu
a sua inclusão na
pauta de votação.
O autor da emenda constitucional justifica o projeto dizendo
que “a expectativa de vida do brasileiro vem aumentando
bastante, alterando significativamente o perfil populacional.
Esse fato ganha consistência com a ampliação
da urbanização e a formação de uma
classe média que, tendo melhores condições
educacionais, beneficiou-se do desenvolvimento econômico
registrado no País nas últimas décadas.
A Constituição Federal ainda não assimilou
totalmente tais mudanças demográficas, pois proíbe
que alguém com mais de 70 anos possa ser servidor público
ou mesmo nomeado para cargos de magistrado e outros de semelhante
relevância”.
A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça
do Trabalho (Amatra) foi das primeiras entidades a se manifestar
contrária à aprovação da PEC, argumentando
que ela traria engessamento das carreiras, “em virtude
da possibilidade oferecida pela proposição de longa
e desproporcional permanência dos membros da magistratura
e do Ministério Público nos órgãos
de cúpula, gerando desestímulo ao recrutamento
e dedicação à atividade judiciária
e ministerial”. Na Câmara, alguns deputados consideraram
o texto inconstitucional por tratar de modo diferente setores
do mesmo serviço público. Por exemplo, a lei deveria
vigorar de imediato para servidores do Poder Judiciário,
mas o resto do funcionalismo deveria aguardar lei complementar.
O deputado José Carlos Aleluia (PFL/BA) apresentou emenda
introduzindo alteração progressiva da idade limite
para a compulsória, enquanto outras emendas defendiam
a aplicação imediata da lei a todos os servidores
públicos. Coisa boa – Está correto aumentar para 75 anos
a idade da aposentadoria compulsória, porque hoje as pessoas
chegam a essa idade ainda com grande capacidade de trabalho. “A
sociedade brasileira tem cada vez mais idosos e menos jovens”,
observa o professor Hélio Zylberstajn, da Faculdade de
Economia, Administração e Contabilidade (FEA),
especialista em assuntos previdenciários e de aposentadoria. É claro,
segundo ele, que muitos professores não recebem com alívio
a notícia da compulsória, porque acham a carreira
acadêmica linda e estão apaixonados pelo que fazem.
Mas, acrescenta, há os que aos 50 anos se aposentam e
vão trabalhar em instituições privadas,
ganhar dinheiro, o que, segundo entende, é eticamente
condenável, uma vez que a aposentadoria significa incapacidade
de trabalhar. Para Zylberstajn, agir assim é aproveitar-se
de uma bela aposentadoria para subsidiar as instituições
particulares. O conselho do professor para as pessoas nessa condição é o
seguinte: se quiserem ganhar dinheiro em empresas, renunciem
primeiro à aposentadoria.
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